Wednesday, February 05, 2014

MIROLOGIA OU LOUCURA COLECTIVA

De repente, a onda gigante da praxe recuou e avançou uma súbita onda de mirologia (adoração por Miró) que à esmagadora maioria dos portugueses não diz nada e está a ser soprada por quem, se tanto gosta da obra do pintor catalão, deveria promover a recolha privada de fundos, comprar o lote pelo preço justo, e oferecê-la a um museu para ilustração dos seus compatriotas menos sensíveis às artes.  Ponto comum nestas ondas gigantes que frequentemente nos dão cabo das costas são as massas que elas sacam dos bolsos dos contribuintes. 

Soube-se hoje que o primeiro-ministro reconheceu que caso Miró não correu bem mas garantiu que as obras de arte vão ser vendidas na mesma. Os 85 Mirós vão voltar para Portugal e será feito um novo procedimento de alienação, esclareceu ainda o primeiro-ministro. Não correu bem porquê? Quem foi, ou quem foram, os responsáveis pelo erro que os contribuintes têm de pagar? Não sabemos. Na esfera pública, nunca se sabe quem erra, sabemos sempre quem paga esses erros.

Soube-se ainda que Ministério Público vai avançar com segunda providência cautelar sobre a venda dos, subitamente famosos em Portugal, quadros, comprados por atacado por esse mecenas das artes, adorador da cultura, o impoluto, até prova em contrário, a cargo da justiça, José Oliveira e Costa. O Ministério Público, que viu negado em tribunal provimento à sua primeira interposição cautelar no caso, visa com esta nova acção, a ministra das Finanças, o secretário de Estado da Cultura e a Christie's.

É de mistério público, caramba! 
Como raramente ganha um caso, o mais provável é que o Ministério Público perca mais este. E que esta cena do jogo da cabra cega, que tanto entretem os divertidos magistrados, fique por aí. Com transportes e seguros para lá, e para cá, e para lá, comissões e indemnizações para lá, e sabe-se lá para mais onde, sobrará algum para abater à imensidão do roubo que continua impune? E de que ninguém fala, ninguém sabe onde para, ninguém conhece culpados, só são conhecidas as vítimas, os pagadores de impostos. 

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Entre Outubro de 2004 e  Janeiro de 2005 "The Phillips Collection" apresentou uma exposição paralela de obras de Calder e Miró, dois artistas que, para além das afinidades estéticas, nutriam grande amizade recíproca. Nem de um nem de outro a mostra atingia as oito dezenas de obras. Tratou-se de uma exposição temporária que, como é vulgar nestes casos, suscitou a comparência de muitos milhares de visitantes. Quantos visitantes poderiam as 85 obras de Miró em exposição permanente captar em Portugal? Não mais do que aqueles que hoje visitam os museus portugueses. Que são poucos. Lamentavelmente, são muito poucos.

Esta questão dos Mirós recorda-me a questão do "Cinema Londres" e outras causas peregrinas defendidas por quem sabe reclamar mas não vai, geralmente, além disso. Conheço gente que critica a "ausência de uma política de cultura" que não põe os pés num teatro ou num museu. Não faltam espaços culturais em Portugal. O que falta são visitantes e espectadores. Por falta de dinheiro? Qual quê! Vejam a afluência que geram os concertos e festivais de música pop, metálica, e outros sons que os meus ouvidos não suportam. São milhares e milhares envolvidos por ondas de histeria colectiva. Sabem lá eles quem foi Miró!

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Ainda há relativamente pouco tempo, era notícia a dificuldade sentida na sustentação da  "Casa das Histórias" em Cascais, instalada num edifício emblemático da obra consagrada internacionalmente do arquitecto Souto Moura. Que país é este, onde uma parte da sua elite, convencidamente culturalmente avançada, pretende investir, porque é disso que se trata, dezenas largas de milhões de euros em obras de um pintor catalão quando  que não tem recursos para assegurar uma exposição permanente das obras da sua artista plática mais conhecida e valorizada, numa casa que é, também ela, uma obra de Arte de tão elevado quilate? E onde, apesar de ser gratuita a entrada, o número de visitantes é escasso? Um país onde habita, em muitos casos, um provincianismo endémico.
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Correl. - O BPN tinha cerca de 200 obras de Miró em 2006
O que faríamos da colecção Miró caso ficasse em Portugal
Habilidades

12 comments:

Rui Beja said...

Antes de mais, parabéns pela qualidade da escrita que apresenta no seu blogue! Infelizmente, quanto à posição defendida no texto, estamos em total desacordo...
Primeiro Ponto - Eu não tenho, nem o caro Dr. tem, capacidade científica para avaliar da qualidade e do interesse cultural e patrimonial da coleção dos Mirós; Portugal tem uma lei do património que, em tese, procura salvaguardar obras de interesse público; acontece que, estranhamente, esta coleção não foi inventariada nem classificada! Num país civilizado, com leis da república e tudo, é normal que 85 Mirós sigam para Londres sem terem sido avaliados e classificados?!
Segundo ponto - Quem tenha visitado Barcelona, sabe as horas que se passam à porta do Museu Picasso ou da Fundação Miró para poder entrar. Nestas filas, encontramos turistas de todas as nacionalidades; poucos catalães, de resto. Ou seja, os milhares de turistas que visitam Lisboa - a capital até está na moda, com a afluência turística a aumentar anualmente - visitarão, naturalmente, um eventual museu Miró... Repare, Lisboa tem uma série de palacetes encerrados com capacidade para acolher uma coleção destas (o palacete das Laranjeiras, onde o inefável Paulo Portas fixou a sua residência oficial, daria um lindíssimo Museu Miró). Ah, e o pavilhão de Portugal na Expo 98, do consagrado Siza Vieira, que está encerrado e a degradar-se, não daria um brilhante museu de arte moderna?!
Último ponto - A brincadeira do BPN custou ao estado português 7 mil milhões de euros; repito: 7 mil milhões de euros! Os Mirós darão 40 ou 50 milhões de euros... O argumento económico não faz o mínimo sentido! O governo não vai deixar de fazer cortes brutais nas pensões e nos ordenados, se vender os Mirós...
Eu sei que o país já empenhou ou vendeu as jóias da coroa várias vezes, cada vez que precisávamos de um empréstimo, lá íamos nós empenhar a baixela da família real junto dos credores ingleses... O vexame continua?! Grande abraço, cumprimentos do meu pai. Rui Beja.

Rui Fonseca said...

Antes de mais, obrigado Rui pelo seu comentário e por me chamar a atenção para as minhas insuficiências em matéria de capacidade científica para avaliar as obras de Miró.

1 - Percebo, no entanto, mal que a avaliação das obras de arte se faça adoptando critérios científicos. Desconhecia. Insuficiência notória. Onde é que essa formação em avaliação científica da arte se pode adquirir?

2 - Pergunta-me se é normal que ...
Respondo : é.
As obras não são património do Estado e tendo entrado há menos de dez anos em Portugal não tinham que ser classificadas.
A decisão de venda é legítima, e mais que legítima, necessária por constituir um dos activos que devem ser alienados para amortização da dívida brutal forjada por um covil de ratos.

3 - Fala-me de Barcelona e dos visitantes do museu Miró. Pois bem. Eu falo-lhe da "Casa das Histórias" e da história dessa casa onde era suposto haver permanentemente obras da artista portuguesa mais conhecida e valorizada internacionalmente.
Já passou por lá?
Não há meios para sustentar a permanência das obras inicialmente previstas.

Viu quantos visitantes ali costumam entrar, e a entrada é gratuita.Coloquei adenda no meu apontamento sobre isto.

3 - É recorrente o argumento de que 50 milhões são trocos ...
Não são, Rui. A soma é sempre o resultado de várias parcelas e nenhuma, nenhuma mesmo, pode ser desprezada.

Uma última observação: Imagine que as obras pertenciam a um japonês e apareciam no mercado para venda. Acharia ajuizado que o governo português aparecesse no leilão a cobrir todos os lances para trazer os Mirós para Portugal.

É diferente?
Explique-me porquê e pago-lhe um jantar.


Rui Beja said...

1 - Um licenciado, mestre ou doutorado em história de arte, tem os conhecimentos científicos - ciência social - para avaliar a importância da colecção. Infelizmente, ou felizmente, nós os dois não somos licenciados, nem mestres ou doutorados em história de arte.
2 - Não acha que uma coleção de 85 Mirós, que abrangem toda a carreira de um dos maiores génios da arte moderna mundial, não tem valor patrimonial para ser objecto de uma avaliação governamental?! O argumento de que as obras estão em Portugal há menos de 10 anos não colhe; por razões profissionais, tenho enviado obras para fora do país, e todas elas, mesmo as que pertencem a jovens e desconhecidos artistas, têm que passar pelo crivo da Secretaria de estado da Cultura; ou seja, temos que ter um documento governamental a autorizar a exportação da obra. Por isso pergunto: como é que 85 quadros seguem para Londres sem qualquer autorização do Ministério da Cultura?!
3 - A Casa das histórias é um péssimo exemplo, o acervo do museu é uma desilusão, quase não há originais expostos... Mas não comparemos Miró com Paula Rego!
A verdade é esta: o Museu Berardo, cuja colecção tem na sua base a história da arte do século XX, tem milhares de visitantes e ainda recentemente foi considerado um dos melhores museus europeus! E em todo o mundo, mesmo em Portugal - veja-se, a Fundação de Serralves - os museus de arte moderna e contemporânea são focos de atracção turística, ou seja, fonte de receita.
3 - Por último: a questão do dinheiro está colocada totalmente ao contrário! Se o objectivo é arranjar dinheiro para pagar o buraco do BPN, então porque é não se vendem os Jerónimos, o Padrão dos Descobrimentos, a Sé de Lisboa, com certeza que arranjavamos um chinês interessado neste património... A ironia serve para explicar o seguinte: se a coleção, depois de uma avaliação séria - feita por historiadores, que são cientistas sociais - considerar que a coleção não tem relevância, então avancemos para a venda das obras; se, pelo contrário, for considerado um património relevante e importante, então devemos preservar as obras; E é claro que eu não quero que o estado português vá licitar as obras; os Mirós já pertencem ao estado português!

Rui Fonseca said...

Caro Rui,

Se os licenciados, mestres ou doutorados em história da arte soubessem avaliar cientificamente uma obra, estariam todos riquíssimos porque então teriam capacidade de antecipar a valorização futura de uma obra criada hoje. Mas não têm. As obras de arte valem o que dão por elas, nem mais nem menos.

Mas, Rui, o meu amigo está a conduzir a sua discordância nesta questão para um plano onde eu nunca a coloquei.

Repare bem: eu nunca disse, nunca escrevi, nunca direi, que as obras de Miró, estas ou outras quaisquer, não têm grande valor. Claro que têm, só por completa ignorância alguém poderá dizer o contrário. Quanto valem? O que por elas derem em leilão ou outra forma de transacção. Nem mais nem menos por mais ou menos que digam os supostos cientistas na matéria.

Mas não é esse o ponto que está em causa. O que está em causa, por mais voltas que lhe queiram dar, é o facto de ser, do meu ponto de vista, completamente absurdo que se pretenda que o governo, em nome do Estado, compre uma colecção de 85 Mirós por atacado.Imagine, Rui, que o Oliveira e Costa, que na altura nadava em dinheiro dos outros, se tinha lembrado, em dia de maior diarreia mental, comprar, além dos 85 Mirós, mais 12 Picassos, 39 Dalis, 22 Andy Warhol, 8 Pollocks, 59 Damien Hirsts, e mais uns tantos, tudo coisas de elevado gabarito, segundo os valores atingidos em leilões de alto nível.
O lance do famosamente impune Costa teria custado qualquer coisa como 800 milhões de euros e valeria hoje mais ou menos o mesmo. Que fazer com a extravagância? Comprá-la toda, ou só os Mirós porque sim.

Perguntei-lhe, e não me respondeu, se a colecção fosse posta à venda por um tipo qualquer acha que o Governo deveria comprá-la? É diferente?
Porquê?

Refere que "A Casa das histórias é um péssimo exemplo, o acervo do museu é uma desilusão, quase não há originais expostos... Mas não comparemos Miró com Paula Rego!"

Pois é uma desilusão, mas sabe porquê.
Não há guita, Rui. Aquilo com que se compram melões e Mirós.

Depois, Rui, você acha que não devemos comparar Miró com Paula Rego. Porquê?
Tudo é comparável e Paula Rego tem hoje uma projecção mundial apreciável. Quem é que lhe diz que daqui a uns anos a sua obra não estará a um nível valorativo superior até ao de Miró?
Os cientistas???

Anonymous said...

Não há guita para umas coisas, mas há poderes para outras. Para a Jerónimo Martins, para o Banif, etc. e muita outra coisa!

Cristóvão de Aguiar

rui beja said...

1 - O que se avalia é do interesse das obras de arte avaliadas passarem a pertencer ao património nacional, ou seja, se, tendo em conta as coleções de arte pertencentes ao estado, é importante manter determinadas peças em Portugal; pelo menos, é isso que diz a lei do património; em suma, os licenciados, mestres e doutorados em história de arte não são comerciantes de arte, não avaliam o património tendo em conta o valor de mercado! Por exemplo,nenhum historiador avalia a importância do urinol - "a fonte" - do Marcel Duchamp, pelo seu valor de mercado; aquele urinol ao contrário é importantíssimo para a história de arte porque representou uma revolução na história de arte, não porque valha milhões caso fosse colocado a leilão!
2 - O caro dr. continua a repetir o mesmo erro: as peças já pertencem ao Estado, a parvalorem é uma empresa detida totalmente pelo estado! É claro que eu não defendo que se vá comprar uma coleção de arte num momento em que o país está a passar mal, o que está aqui em causa é uma coleção que já pertence ao estado!
3 - A questão da Casa das histórias é muito simples: a Paula Rego não doou originais para o museu, apenas desenhos e obras gráficas...
Em suma: há uma coleção de Mirós que já pertence ao estado, ou seja, que não vai custar um tostão aos contribuintes; o estado não cumpre as leis que aprova e envia a coleção para o estrangeiro sem qualquer inventariação ou avaliação(parece que as obras seguiram pelo correio diplomático!); tudo isto é, de facto, indefensável...

Rui Fonseca said...

Rui,

Diz v. que "há uma colecção de Mirós" ...que não vai custar um tostão aos contribuintes".

Milagre, portanto?

Anonymous said...

Para esses iluminados que assumem que para se avaliar Miró tem que ser em bases cientificas(???) deverá ser legitimo só poder dar opinião sobre uma ópera ou simples canção ou fado, quem tenha andado no conservatório.

rui beja said...

O bpn faliu e nós herdamos os Mirós... O estado português não os comprou com o dinheiro dos contribuintes! E, já agora, para o iluminado corajoso, que escreve sob anonimato: o que é que acha de vendermos os Jerónimos e a torre de belém? Já que tem opinião sobre ópera ou fado, também nos pode dar a sua douta opinião sobre uma magna questão: não acha que se poderia vender os Jerónimos para abater no défice? Aliás, o país todo, o Paulo Portas, o Coelho, tudo vendido em hasta pública para acabar com o malfadado défice...

Rui Fonseca said...

Rui,

Diz v. que "o Estado português não os comprou com o dinheiro dos contribuintes"

Eu também penso que o Estado não os comprou, ...

mas se, como v. defende eles são pertença do Estado, quem é que os paga, ou pagou?

Em matéria de finanças públicas tudo o que é pago em nome do Estado é pago ou com impostos ou com taxas. De onde é que veio ou virá o dinheiro para comprar (ou que comprou) os quadros senão do bolso dos contribuintes?

Rui Beja said...

Repito: os quadros pertenciam ao bpn; o bpn foi nacionalizado e os quadros passaram a pertencer ao estado! Não é claro?! O Estado não os comprou, herdou-os da "massa falida" do bpn!

Rui Fonseca said...

E que grandessissima herança, Rui!

Uma herança que custará aos contribuintes portugueses, segundo os cálculos que têm vindo a público, mais de seis mil milhões de euros!