28 de Fevereiro de 1969
...
Quando o sismo te sacudiu e tu, instintivamente, pulaste da cama, o rumor zangado das pedras das paredes relembrou-te que quando a terra abana se procure abrigo nas zonas mais reforçadas do espaço próximo. Deste um salto para o vão da janela, e aquela vista, sempre deslumbrante, daquela vez sugou-te num vórtice paralisante que te cerrou os olhos até as pedras sossegarem. Durante os longos instantes de suspensão da vida quando o planeta rearruma as partes, só o som telúrico se fez ouvir, o medo emudeceu os bichos.
Barb!Barb!Barb!... ....Mila!Mila!Mila! ... .... Não há luz? Não há luz?
Oh!Meu Deus, não vejo nada ... não vejo nada ... não vejo nada...
Barb! Barb!Barb! ... Mila!Mila! ...Oh! Meu Deus, o que é isto? o que é
isto? Não há luz, ... não vejo nada, ... não há ninguém que me ouça?
Barb!Barb!Barb! ...
Era a dona da casa, a gritar lá dentro, na zona reservada, apavorada e ninguém respondia. Logo que o susto foi engolido porque o abalo telúrico parecia terminado, começou a ouvir-se o som de gente a sair para a rua àquela hora da meia madrugada.
Socorro! Socorro! Socorro!
Percebeste, então, que, já acomodada a vista à escuridão do quarto, a velha senhora, sem resposta da Barb, nem da Mila, nem do Conde, conseguira chegar à janela e gritava por socorro do alto do quarto andar para a rua.
Saio, não saio, ninguém no corredor, pensaste em bater à porta de onde vinham os gritos de socorro, mas saiu ao teu encontro o fantasma do Conde.
Que era feito da Barb? E da Mila? E do Conde? E do Fred? Bateste à porta do Fred, mas a porta não se abriu e o outro hóspede, soubeste depois, não se deteve com dúvidas, abalou porta fora logo que enfiou roupa para o frio. Dos quartos das reformadas só saía para o corredor o
seus habituais ressonares, como se o ranger das pedras tivesse sido sentido no outro lado do prédio.
Saíste para o corredor, a velha continuou a gritar, até que percebeste que alguém forçava a porta de entrada, entrou de afogadilho um pimentão de capacete e machado, era um bombeiro, maduro demais para subir apressado os quatro lanços da escada, chegou sem fôlego, de lanterna acesa. Arranja-se um copo de água, amigo? O que é que se passa?
Não sei.
Não sabe? Não mora aqui? Bateu e voltou a bater na porta de onde ouvia gritar, sem resultado porque a velha não parava de gritar. Hum! A porta está fechada por dentro ... pois está ..., e, feitos os cálculos, meteu o bombeiro um pé à porta, que rangeu mas não se abriu, o bombeiro já suava em bica, e a velha não parava de gritar. Quem é ela?
É a dona da casa, aluga quartos.
E não vive mais ninguém em casa? Vive, mas ninguém responde.
Quem é que vive aqui?
Aqui fora somos cinco hóspedes, talvez seis, vi sair um, o outro também deve ter saído, as reformadas continuam a ressonar, dessa porta para dentro vive a dona da casa, a empregada, a filha dela e um senhor Conde.
Hum! Hum! Hum! Tenho de sair a pedir ajuda e avisar a polícia, você fica? Não, não, saio consigo.
Antes de sair dali, o bombeiro deu mais uma sapatada na porta, a velha calou-se, e ficaram os dois à espera um largo par de minutos. Iam a sair, abriu-se a porta, e, para lá da porta, vislumbrou-se a cara assustada da velha, a tentar vislumbrar quem estava ali escapando a vista aos raios frouxos da lanterna do bombeiro com a mão direita em pala na testa.
O que é que se passa? Houve um terramoto?
Houve, houve, e a senhora está muito assustada, não é? Mas esteja tranquila, já passou, já passou ...
Não sei onde se meteram a minha empregada e a minha afilhada, que é filha dela...Chamei, chamei, mas ninguém me responde...
Já viu bem se não estão em casa?
Ver bem, como?, se estamos sem luz e nem sequer sei onde tenho as velas e os fósforos ...
Posso entrar para observar?
... Entrem, entrem, ...
O bombeiro avançou com a lanterna levantada acima da cabeça, tu foste atrás.
Onde dorme a sua empregada?
Naquele quarto, no mesmo quarto com a filha.
O bombeiro bateu na porta, ninguém respondeu, mas a porta não estava fechada à chave e o bombeiro entrou. Havia duas camas estreitas, numa delas sobressaía apenas o cocuruto da cabeça, todo o corpo estava enrolado nas mantas. Percebeu-se o movimento da respiração da pessoa deitada, e o bombeiro acordou-a com uma sacudidela forte depois de ter ensaiado modos suaves.
Sentou-se a Mila apavorada, a esfregar os olhos, perceptivelmente sem saber o que fazia aquele homem com uma lanterna suspensa da cabeça, o susto começou a diluir-se quando se apercebeu que a madrinha estava lá.
Mila, onde está a tua mãe?
A Mila nem sequer percebia a pergunta, estava a dormir e a sonhar, as ondas do abalo sísmico tinham passado por ela como um doce embalo que lhe aconchegara o sono.
Hã???
A tua mãe?... Sabes onde para a tua mãe?
Nenhuma ideia, ela adormecia logo que caía na cama, a mãe chegava só depois de deixar tudo arrumado, normalmente nunca antes da meia-noite.
Vive mais alguém cá em casa?
Cinco hóspedes lá fora, quatro nos quartos que dão para o corredor, um no quarto que dá para a escada, aqui dentro só mais o senhor Conde mas esse esta noite está de serviço, ... agora me lembro que ainda não telefonou...
Nem vai telefonar tão cedo, as comunicações estão cortadas em várias zonas da cidade. A sua empregada deve ter saído, a maior parte das pessoas saíram para a rua, quem me viu abrir a porta foi este senhor.
Ah! Ainda bem que alguém ficou em casa ...
A velha senhora parecia agora sossegada, agradeceu muito a atenção do senhor bombeiro, depois fechou-se com a Mila para lá da porta da área reservada, e tu saíste com o bombeiro a iluminar a descida da escada.
Está quente, não está?
Hum!Hum! Parece uma noite de verão ...
Mas não estava. Lembro-me que, quando cheguei a casa, era quase meia noite, fazia frio ... Terá o sismo aquecido o ar ou esta sensação de calor é uma reacção do nosso corpo à contracção provocada pelo medo?
Talvez, não sei, mas também sinto que este ar morno, não digo quente mas morno, não é normal em fevereiro. Talvez tenha acontecido o mesmo ao planeta ... expandiu-se e quebrou-se a louça!
Parece que é o contrário: é por se estar a contrair que chocam as placas tectónicas entre elas.
E aquecem o ar?
Não. O ar aquece por outras razões, dizem.
Dizem uns; os outros dizem o contrário.
Mas que está mais quente, está. Anda meio mundo na rua a esta hora ... a propósito, que horas são?
Quatro e meia.
Com a pressa de sair não trouxe o relógio...Tudo na rua e pouca roupa, muitos em pijama. Não devem sentir frio.
Quem é que sente frio depois de apanhar um susto destes?
Ninguém. Frio sente quem se contrai quando o susto acontece. Depois, descontrai-se, expande-se, aquece. Deve ser isso.
Hum! Hum! Nem sempre. Quando o tempo está quente, relaxamos ou contraímos o corpo? Relaxamos. Quando está frio, contraímos ...
É verdade, e isso explica a razão porque estando frio o pessoal sente calor.
É uma sensação que vem do interior, do contentamento de estarem vivas depois de se terem sentido empurradas para a beira do abismo.
Pode ser.
E se fôssemos beber umas cervejas?
É para já! Mas a estas horas onde é que se encontra um bar aberto? Nem nos cabarés. Com um susto destes os clientes e as fornecedoras devem andar cá por fora.
Talvez no bar da estação... ouvi dizer que está aberto toda a noite.
Embora lá!
Continuaste atrás dos dois filosofantes sismólogos a descer as escadas que ligam o cume da colina à praça, e, também a ti apeteceu uma cerveja. O bar estava aberto e assaltado por uma multidão de gente sequiosa e exaltada. Discutiam quem estava à frente na fila, que, naturalmente, não era uma mas um leque todo aberto delas, a enfiar por uma porta estreita
de onde saíam, mais raramente do que exigia a impaciência dos que queriam entrar, canecas grandes, de espuma a saltar, erguendo os troféus por cima dos que esperavam no leque. E todos, os que esperavam e os que saíam, transpiravam como numa tarde quente de verão, mais os do miolo e mais próximos da porta que os das abas, mais afastados da entrada.
Os barris já devem estar a ficar secos..., terá dito alguém lá à frente.
Esgotou-se a cerveja!, ouviu-se cá atrás, e os crentes na mensagem desistiram e foram apanhar fresco, o ar ali estava insuportável.
Subias a avenida entre grupos que subiam ou desciam, alegres por estarem vivos, já eram cinco da manhã, o mundo não tinha acabado, dali a duas horas era tempo de saíres de casa, às sete como de costume.
Voltaste para trás, e, quando começavas a subida da escadaria até aqui acima, setenta e três de pedra até à entrada e vinte de madeira na casa, encontras o terceiro hóspede também de volta à hospedaria.
...
"O sismo, que aconteceu na madrugada do dia 28 de fevereiro de 1969,
teve o seu epicentro a 200 quilómetros de Sagres, alcançando os 7,9 na
escala de Richter. Treze pessoas morreram e os estragos foram também
elevados, especialmente no sul do país. - Wikipedia