Tuesday, August 06, 2024

FUGA DE INFORMAÇÃO

 

1958, Outubro - Dezembro

 

- Viva o povo trabalhador, desculpem meus senhores se vos ofendi!

Era o Toscano, um dos três oficiais de diligências, a falar para ninguém porque era quase sempre o primeiro a chegar, e aquela laracha saía-lhe quer houvesse quer não alguém numa das três secções do tribunal. Um dia, o Toscano, vendo o rapaz, talvez quinze, dezasseis anos, com ar de quem estava à espera que lhe perguntassem o que fazia ali, ficou a saber que um tal Rodrigo, queria falar com o senhor Pompeu.
- Com quem?
- Com o senhor Pompeu.
Não se adiantou mais o Toscano na inquirição ao jovem; conteve-o a sua condição profissional e o seu dever de reserva. 
 - Com o sr. Pompeu, hem!? Entra e espera aqui junto a esta porta.
 A porta estava fechada mas Toscano abriu-a, atirou lá para dentro o gracejo do costume, - Viva o povo trabalhador! Desculpem-me, meus senhores, se vos ofendi... e passou adiante.
Voltou a passar por lá, talvez meia hora depois, quando chegou um gigante, uns cinco ou seis anos mais velho que Rodrigo, mas, pelo menos, com mais uns quinze ou vinte centímetros de altura. Rodrigo reconheceu-o imediatamente: muito conhecido na cidade, era o Nuno, basquetebolista no clube local, tinha um irmão gémeo, outra torre, os dois eram imbatíveis a encestar. 
Vendo o basquetebolista a aproximar-se do Rodrigo, Toscano adiantou-se a informá-lo que o rapaz queria falar com o Pompeu.
 - Com o Pompeu? Tu queres falar com o Pompeu?
 - Sim, sim, disseram-me para estar aqui hoje o mais cedo possível para falar com o sr. Pompeu. 
- Muito bem. Entra e senta-te aí nessa cadeira.
O território ocupado pela segunda secção não teria mais de vinte metros quadrados, contados a partir da porta de entrada, dezasseis, se descontado o espaço ocupado até ao balcão onde eram atendidos os que, geralmente advogados ou solicitadores, entravam ali. 
Sentou-se o Rodrigo na única cadeira colocada junto do lado direito do balcão da entrada na secção. Pela esquerda, por uma porta nesse lado do balcão, entravam para o espaço reservado os funcionários. 
Foi por lá que entrou o basquetebolista para trabalhar do lado direito; ao fundo, com a luz vinda da rua a atravessar a janela que iluminava a sala, era o local de trabalho do chefe da secção, um escrivão de direito, soube Rodrigo depois. Junto ao balcão, do lado direito, havia outra secretária, pequena, com uma máquina de escrever Remington e uma cadeira vaga.
O basquetebolista vestia fato cinzento, gravata azul discreto, camisa branca, corte clássico. Começou por tirar o casaco, pendurou-o com cuidado nas costas da cadeira, soltou o botão de cima, alargou o laço da gravata. E a assobiar, só para ele, la cucaracha, la cucaracha, retirou de uma gaveta da secretária, cuidadosamente, um maço de papel azul, observou demoradamente o topo e a base, a verificar o alinhamento das folhas, pareciam alinhadas por corte de guilhotina; da mesma gaveta tirou um papel azul que estaria debaixo do maço; de outra gaveta retirou o que pareceu a Rodrigo uma sovela e um novelo de linha de sisal. Pegou no maço de papel, colocou-lhe em cima o papel solto, a sovela e novelo de sisal, trouxe tudo para cima do balcão, e só então deve ter reparado que o Rodrigo continuava sentado à espera de um tal Pompeu.
 - Queres falar com o sr. Pompeu, é isso?
 - É isso mesmo.
 - Hum! Hum! O que é que fazes agora?

Pelo tom da pergunta, o basquetebolista deve ter reconhecido Rodrigo, que, de vez em quando, depois de sair das aulas entrava no ginásio para assistir durante alguns minutos a treinos de basquetebol.

- Agora não faço nada ... quero dizer, não faço nada do que gostaria fazer.
- E o que é que gostarias fazer?
- Continuar a a estudar ...
- Essa é boa! E por que é que não continuas?

Enquanto dialogava com Rodrigo, o basquetebolista tinha retirado um fio que amarrava o maço, cruzando-se em baixo, a meio e em cima, para o desamarrar. Depois dirigiu-se à máquina de escrever na sua secretária, meteu um papel pautado, azul, retirado de uma estante com uma ou duas resmas branco no enrolador da máquina, e escreveu um texto, certamente breve porque o basquetebolista num abrir e fechar de olhos tinha o que tinha a fazer feito, apesar de ter dedos longos, mais hábeis para agarrar a bola de basquetebol do que para a dactilografia. Veio até ao balcão, inseriu a página que dactilografara no maço, e, a seguir, a folha onde escrevera qualquer coisa. Com a sovela a rebocar o fio de sisal amarrou o conjunto cruzando o fio no mesmo traçado em ziguezagues de onde o retirara antes. Amarrado o conjunto, bateu o lado superior, duas, três vezes, até concluir que todas as folhas estavam bem alinhadas no topo, mas uma ou outra desalinhada na base.

- Acreditas que o papel se alongue só para me chatear?, ...
perguntou o basquetebolista a Rodrigo, que não retirara a vista do complicado trabalho de desmontagem e remontagem de um maço de papel, um processo jurídico, veio Rodrigo a saber mais tarde, aquele maço de papel era um processo jurídico. 
... que te parece? Não dizes nada? Se os fios passaram pelos mesmos orifícios como é que se desnivelaram as folhas na base depois de alinhadas no topo?
 - Foi a primeira vez?
 - Foi quê?
 - A primeira vez que este desalinhamento te aconteceu?
 - Não, não, acontece sempre e nunca ninguém me conseguiu explicar este fenómeno.
 - Talvez a sovela se engane no caminho …
 - Estás a falar a sério?
 - Admito que sucessivas passagens da sovela e dos fios possam alargar os orifícios possibilitando que as páginas se movam ligeiramente em todos os sentidos.
O basquetebolista pareceu surpreendido.
- Não me pareces burro de todo, mas não acredito que o Pestana aceite essa teoria do alongamento das páginas por repetição de passagens da sovela e dos fios pelos mesmos orifícios embora me pareça uma hipótese aceitável. Nunca tinha pensado nela. Sabes, estou aqui há pouco tempo, há pouco mais de um mês. Cheguei cá dois meses depois de ter saído da tropa, com um ano de serviço militar cumprido em Goa, depois de outro em Lamego.
 - Goa? Estiveste em Goa? Como é aquilo?
- Goa até parece portuguesa, igrejas por todo o lado, as casas branquinhas, azul, verde, amarelo nos umbrais das portas, se não fosse o mar parecia-me que estava no Alentejo; a esmagadora maioria da população é indiana ou misturada, tudo gente simpática. Foi um ano de férias, quase sempre na praia, mas a minha mãe envelheceu uns anos naquele aquele ano em que passei férias em Goa. Acredito que saí a tempo. Aquilo não  vai aguentar-se muito tempo, lá ninguém acredita nisso, eles já avisaram que mais dia menos dia, se a tropa portuguesa não sair a bem sai a mal; eles são muitos milhões, corre, até entre os oficiais a piada, que podemos ser corridos por fuga a afogamento se os invasores mijarem todos ao mesmo tempo…Há quatro anos capturaram Dadrá e Nagar Haveli; foi um aviso; os norte-americanos continuam a avisar-nos que é melhor sair com honra que sair mijados, mas o velho Caturra não se apercebe da mudança dos ventos; ele nunca sai do buraco…
… pois essa tua ideia do alargamento dos orifícios, natural, digamos assim, não convence o Pompeu, tenho a certeza que não o convence,… tenho de ajustar as folhas com um corte de tesoura.
 - Com um corte de tesoura? Mas isso vai retirar validade aos documentos cortados ...
 - Negativo. Pouca coisa, cortes de décimas de milímetros, era o que fazia o tipo que estava aqui antes de sair por ter sido promovido a escrivão em não recordo onde, na Beira.
Tirou o basquetebolista um tesourão de alfaiate da gaveta de onde tirara a sovela e o rolo de sisal, pressionou bem o lado desalinhado e, zás!, um corte de mestre, à guilhotina não ficaria melhor. Olhou o resultado, ficou satisfeito.
 - Que tal?
 - Parece ter ficado bem…
 - Parece? Essa é boa. Vê se descobres que folhas foram atingidas pela tesoura.
 - Não, assim à vista desarmada, não vejo sinais de cortes.
 - Assim à vista desarmada? Que é isso, precisas de óculos?  
 - Não, felizmente, não, mas penso, se me é permitido pensar, que o tribunal deveria recrutar um sapateiro …
 - Ehm!
 - Quero dizer que um sapateiro estará mais experimentado em trabalhos de sovela, fio e amarração perfeita das folhas de um processo jurídico que um funcionário judicial …
 - …
 - Penso eu, se me é permitido pensar…
 - É, é, então não é?! Pensar, podemos todos … dizer, pode dizer-se em particular, em quem podemos confiar, percebes?, e mesmo assim…
 Feita a operação de perfeito alinhamento forçado das folhas, o basquetebolista colocou o processo em cima da secretária do chefe de secção, escrivão de direito, aberto na folha inserida. 
 - O sr. Pompeu, provavelmente, não vem …
 - Vem, vem, vem sempre, que horas são? Hum! Dez horas. Não estará cá antes das onze. Tens de continuar à espera. Se ele te mandou cá estar hoje, vai estar com certeza.
 - Não foi o sr. Pompeu que me mandou cá estar …
 - Essa é boa! Se não foi ele, quem foi?
 - É preciso dizer?
 - Não, claro que não …
 - Tanto quanto julgo saber o sr. Pompeu terá dito num local onde se costumam juntar vários amigos … 
-  No Café da Madame…
… que precisava de um rapaz para recuperação de um trabalho atrasado, e alguém que me conhece propôs o meu nome … é tudo o que sei.
 - Muito bem. Continua aí sentado. O Pompeu deve estar mesmo a chegar.
Entretanto, tinha-se acercado do balcão um homem que queria pagar a décima.
 - Isso é com as Finanças. O senhor sai, as Finanças ficam do lado direito da entrada.
 Outro queria entregar um requerimento na Câmara.
 - Não é aqui. É no primeiro andar. Suba a escada de pedra …
 - Pela direita ou pela esquerda?
 - Tanto faz. Lá em cima está um contínuo que o pode encaminhar para a porta certa.
 
 - Rodrigo, imaginas quantas vezes tenho de servir de recepcionista para todo o edifício? Podiam perguntar ao guarda, que está sempre na porta de entrada, mas não perguntam e o polícia deixa entrar para aqui toda a gente, conhecida ou desconhecida, para ele tanto faz.
O Pompeu, escrivão de direito, chegou ao gabinete faltava pouco para o meio dia.
 Entrou, cumprimentou o basquetebolista, que aproveitou para, discretamente, informar o escrivão de direito que estava ali aquele rapaz para falar com ele.
 Dialogaram escrivão e basquetebolista sem que Rodrigo ouvisse patavina. Depois o escrivão sentou-se, o basquetebolista aproximou-se de Rodrigo.
 - Tens experiência de dactilografia?
 - Sou capaz de dactilografar qualquer texto sem olhar para o teclado.
 - Sem erros???, perguntou incrédulo o basquetebolista.
 - Posso demonstrar …
 - Caramba! Quando podes começar?
 - Já hoje, depois de almoçar qualquer coisa aqui perto.
- Aqui perto, ... aqui perto ... há tasca da Dona Luísa. Hoje não posso, mas um dia destes vais comer à tasca da Dona Luisa, boa e barata ...  Fica combinado. Não venhas antes das três.
- Entendido.

O escrivão de direito era homem para os seus quase cinquenta anos, alto, mas muito menos alto que o basquetebolista, cabelo russo, meio loiro, andaria por ali mistura com sangue irlandês ou viking. Em contraste com a fatiota de funcionalismo público do basquetebolista, o escrivão vestia casaco de padrão de xadrez castanho claro, laranja madura, calça meio beje, sapatos castanhos de bom corte.  O basquetebolista procurava afirmar-se funcionário pela encadernação, o escrivão de direito atingira a respeitabilidade de um lugar apenas subordinado aos juízes.

Rodrigo voltava para o tribunal quando sentiu que alguém, que se aproximara dele pela esquerda, lhe colocou uma manápula no ombro direito.
 - Então, que tal te correu a entrevista com o Pompeu?
 - Não houve entrevista. O Nuno falou com ele, contrataram-me para trabalhar aqui no tribunal …
 - Para trabalhar?! Coisa estranha, caramba! Se for assim, se for para trabalhar, serás exemplar único.
 - ?
 - Dá o teu melhor mas não exageres nem ambiciones demais. O que é demais é excesso. Só vence quem não se cansa. Quem se mata morre cedo, enfim há muita jurisprudência sobre o assunto. Já, agora, como é que te chamas?
 -  Rodrigo.
 - Eu sou o Toscano, um dos três maus das fitas no tribunal.
 - E o que vais fazer? Já sabes o que vais fazer?
-  Dactilografia ... ouvi, não me disseram mas parece-me ter ouvido, sentenças ...
-  Se for o que eu penso, dactilografar para o livro de sentenças, vais ter uma tarefa essencial; há muito que não cai lá uma; isso será trabalho para muito tempo. Bom trabalho!

O basquetebolista chegou às duas e trinta.
 - Rodrigo, temos aqui um trabalhinho mesmo à medida das tuas fantásticas capacidades dactilográficas. Trata-se, nada mais nada menos que a transcrição de sentenças de querela, em casos de direito criminal, a fina flor dos processos judiciais.
-
 - Trago-te os processos do arquivo, um de cada vez, está visto. As folhas dactilografadas serão, em primeira análise revistas por mim e depois pelo Pompeu. Terminado um processo, volto ao arquivo, levo um e trago outro. Combinado?
 - E quem guarda o processo enquanto não estiver dactilografada a respectiva sentença e nem tu nem eu tivermos saído ou ainda não tivermos reentrado?
 - És sempre assim?
 - Assim, como?
 - A pensar em tudo o que possa acontecer por mais improvável que seja?
 - Não, não, de modo algum. Ocorreu-me porque entrar aqui parece-me fácil demais. E se alguém leva daqui o processo que me entregaste e ainda não devolvi, a responsabilidade de quem é?
 - Hum! Devias concorrer a agente da judiciária.
 - Já tenho uma longa lista de alguns deveres, vou acrescentar mais essa …
 - A Judiciária é a elite das polícias. Com a transcrição das sentenças de processos de crime ficas com uma preparação ímpar para um futuro agente da Judiciária.  Há mais de quatro anos, quatro anos? não sei, talvez mais,  que o livro das sentenças não é actualizado, disse-me o Pompeu há dias, e pareceu-me preocupado, daí ter tentado pescar um voluntário … Sem livro de sentenças em dia, quando é preciso certidão ou um juiz quer consultar um processo em arquivo, tem de vir o processo do arquivo no caso de sentenças proferidas nos últimos nem sei quantos anos; se forem anteriores, basta consultar ou extratar do livro de sentenças, convenientemente encadernado e datado na lombada o ano respectivo. Estás a perceber, agora, o alcance do teu trabalho? Vou ao arquivo para trazer o primeiro processo, o que aguarda transcrição há mais tempo.
 
 
 
 - Demorei, pois demorei, a coisa não está fácil, a desarrumação daquele arquivo é incrível, mas não há problema: como cada sentença é transcrita em folhas separadas das outras, ordenam-se todas no fim do trabalho pelas antiguidades das datas das sentenças. Confuso?
 - Não, creio que não.
 - Então mãos à obra!
No fim daquela tarde, quando o basquetebolista deu os trabalhos do dia por encerrados às cinco e meia, Rodrigo também devia sair. O escrivão tinha saído uns dez minutos antes.- Então, já temos a primeira sentença transcrita?
 - Falta pouco, mas não está ainda terminada.
 - Não há problema. Eu tenho de sair já, tenho os meus compromissos pessoais, percebes?
 - Farei por isso. Mas onde devo arrumar o processo?
 - Não vens amanhã?
 - Conto vir.
 - Então quer venhas ou não, deixas o processo onde está, ninguém vai tirá-lo ou mexer nele, descansa.
 - Mas se o processo por uma razão que agora é imprevisível desaparecer, quem é responsável pela … fuga, que pode ser um roubo ou coisa com consequências idênticas?
 - Qual fuga, qual roubo, qual caraças, aqui ninguém tira nada. Estamos num tribunal, Rodrigo, isto não é o da joana.
 - Já percebi que não. Mas se acontecer, quem é que responde pelo desaparecimento do processo?
 - És um irremediável teimoso ou um desconfiado sistemático?
 - Se calhar sou as duas coisas. Mas ainda não disseste quem responde pelo desvio deste ou qualquer outro processo que me venhas a entregar e do qual eu não tenha concluída a transcrição da sentença até à hora em que tu e eu sairmos.
 - Caramba. Se isso te torna menos ansioso, eu assumo a responsabilidade por eventuais desaparecimentos de processos a aguardar a finalização da transcrição. Chega?
 - Não.
 - Essa é boa! Que mais?
 - Entregas-me um papel escrito por ti a garantires-me aquilo que acabas de dizer-me.
 - Papel? Garantia? Tu estás maluco?
 - Não, nada disso. Mas ou esperas que eu acabe esta transcrição e eu te entregue o processo ou garantes-me por escrito que não tenho responsabilidade nenhuma pelo eventual desaparecimento de um processo ainda em transcrição.
 - Muito bem. Quanto tempo te demora a ti, dactilógrafo de eleição, a completar essa transcrição?
 - Mais meia hora, pelo menos. Tenho de decifrar esta linguagem jurídica retorcida e esta letra de receita médica, mas penso que meia hora basta.
 
 - Então, Rodrigo, já passou meia hora.
 - Aqui está.
O basquetebolista nunca chegava antes das dez, nunca saía depois das cinco e meia; o escrivão chegava depois e saía mais cedo. Havia momentos em que no espaço da secção só permanecia Rodrigo, o basquetebolista saía frequentemente para fumar no exterior do edifício ou encontrar-se com uma mulheraça elegante, quase da altura dele. Qualquer das cenas eram visíveis, bastava o Rodrigo aproximar-se da janela atrás da cadeira desocupada do escrivão, mas nem precisaria espiar: o basquetebolista avisava, Rodrigo vou até ali fora para uma fumaça rápida ou, Rodrigo vou sair por uns instantes, tenho uma pessoa à minha espera lá em baixo.
Naqueles momentos, em que só o Rodrigo permanecia no seu posto, quem aparecesse enganado com a porta, o dactilógrafo remetia-os para o polícia na entrada do edifício.
 - Não vi polícia nenhum!
 - Veja melhor, ele está lá.
 Certo dia, um dos remetidos pelo Rodrigo para o polícia voltou
 - Desculpe, mas não está lá fora nenhum polícia à porta …
 - Aqui, não posso fazer nada por si, lamento.
 Estava a paciência de Rodrigo a esgotar-se com a persistente interrupção da sua incumbência quando voltou o basquetebolista.
 - O que é que se passa aqui?
 - Desde que saíste entraram uns quatro ou cinco sem que o polícia os tenha impedido, como se isto fosse um posto de informações para turistas … a este cavalheiro, imagina, alguém disse que o consultório do dentista era aqui … alguém que quis gozar com ele ou gozar com o tribunal.
 - O senhor, disse o basquetebolista ao doente dos dentes, saia e pergunte ao polícia que está à porta …
 - Já lá fui, não está polícia nenhum.
 - Procure outro ou alguém que o informe… não há polícia, não há polícia, o que não falta são polícias nesta cidade … Oh Rodrigo, não viste, por acaso, se algum dos que entraram aqui levou um processo que deixei em cima do balcão quando saí por uns momentos???
 - Se levou ou não levou, não vi.
 - Mas reparaste que deixei um processo em cima do balcão antes de sair …
 - Não, não reparei. Estou concentrado no trabalho, não reparo em nada senão nas sentenças. Se alguém entra e pergunta, despacho-os logo para o polícia sem sequer olhar para eles. Há dias, parece anedota mas não é, entrou alguém a perguntar o que eu nem sequer ouvi e respondi-lhe, vá lá abaixo e pergunte ao polícia. Essa é boa!, respondeu quem tinha perguntado, agora o polícia é que responde a um advogado? Mas tudo ficou esclarecido porque depressa percebi o equívoco e disse que tinhas saído por uns instantes. Esse, não voltou.
 - Mas não me disseste nada, porquê?
 - Ora porquê, porque supus que o advogado te tivesse encontrado quando saiu …ele a sair e tu a entrar uns instantes depois, desliguei, tinha de transcrever uma sentença antes das cinco e meia da tarde. 
 - Hum! Onde é que o diabo meteu o processo que deixei aqui em cima do balcão, tenho a certeza que deixei, quando fui lá abaixo por uns instantes?, perguntava, repetidamente, o basquetebolista, certamente a ele mesmo porque não havia mais ninguém ali, e o Rodrigo ficava surdo, concentrado na dactilografia  de uma qualquer sentença, sem tirar os olhos do documento em transcrição.
 - Oh! Rodrigo, importas-te de me ouvir por uns instantes?
 - …
 - Porra, Rodrigo! Ouve-me!, berrou o basquetebolista, a dar um murro no balcão.
 - Ahn?
 - Por onde é que andaste antes de desembarcar aqui?
 - O quê?, perguntou Rodrigo sem parar a dactilografia nem desviar o olhar do texto que transcrevia.
 - Onde é que ganhaste essa técnica de te desligares do mundo quando estás em frente de um teclado, para onde nem sequer reparas? O que fizeste antes?
 - Fiz antes e faço agora quando chegar à Junta.
 - À junta? Que junta?
 - A junta de freguesia. Sou o escrivão da junta da minha freguesia.
 - Escrivão? Que é isso?
 - É quem escreve as contas da junta e dactilografa o expediente, cartas, relatórios, atestados, coisas assim. Também faço registos de nascimento e, nesses casos, dactilografo nos espaços em branco nos papeis pré-impressos … aos tantos dias, do mês tal, nasceu em tal parte, da freguesia tal, um indivíduo do sexo masculino, feminino, filho de, e de … assim por aí fora, sem olhar nem para o papel nem para o teclado … só a olhar para quem chega para fazer o registo …
 - Não deves ser normal, quero dizer, não és normal de certeza …
 - Se isso é um cumprimento, obrigado.
Enquanto Rodrigo não parava a dactilografia, o basquetebolista procurava em todos os poucos sítios possíveis para onde tivesse voado o processo que ele deixara em cima do balcão.
 - Tenho a certeza, eu tenho a certeza, eu tenho a certeza, eu tenho a absoluta certeza … 
Cansado de tanto procurar sem encontrar, sentou-se na cadeira do escrivão, esticou as pernas até onde lhe consentiu o espaço disponível, e adormeceu.
 - Nuno!
 - Ahn!
 - São cinco e meia, terminei agora mesmo a dactilografia da sentença neste processo. Fica-te entregue, espero que não me digas amanhã que desapareceu. Já registei esta entrega no livro de controlo de recebidos e devolvidos, conforme combinado.
 - É o que eu digo … Quantos anos tens tu?
 - Dezasseis.
 - Pareces mais velho, muito mais velho, para a tua idade: caturra e autista.
 - Não sei o que isso é, mas se pensas que sou, e se nós somos o que os outros pensam que somos, então sou o que dizes.
 
 Quando, no dia seguinte, Rodrigo entrou já lá estava o basquetebolista.
 - Hoje chegaste cedo…
 - Pois.
 - Hoje não há trabalho para mim?
 - Ah! não? porquê?
 - Não vejo processo para dactilografar a sentença e vejo-te muito ocupado …
 
 - Já apareceu o processo desaparecido de cima do balcão?
 - Por que é que dizes que o processo desapareceu de cima do balcão?
 - Foste tu que disseste. 
 - Pois disse, mas agora já não tenho certeza disso. Nesta maluqueira de trazer e levar processos a um arquivo completamente desordenado, pode ter acontecido levar para arquivo o processo que pensei ter deixado em cima do balcão …aquilo não é arquivo, não é nada … são processos e mais processos encavalitados uns nos outros … andaram a trabalhar nestas condições durante anos… Vim mais cedo, já cheguei há três horas, não acreditas, pois não? Nem eu. Mas vim de lá, há momentos antes de chegares, à procura da agulha naquele palheiro … Não tenho alternativa senão dizer ao Pompeu o que se passa no arquivo, que é preciso que alguém o arrume de forma conveniente …… mas não vamos dizer-lhe que há um processo vivo desaparecido, percebes?  Há muitos processos que já deveriam ter sido enviados para o arquivo central do distrito, mas para isso é preciso, antes de mais ter o arquivo organizado e eu não tenho tempo para organizar o arquivo nem obrigação de corrigir o que foi mal feito até há pouco tempo … se não fosse a ideia patusca do Pompeu arranjar um voluntário para dactilografar as sentenças, tudo continuaria sem problemas de maior. Assim, penso que estou metido numa alhada. Tens alguma ideia?
 - Rodrigo!!!
 - Ahn?
 - Pergunto se tens alguma ideia … mas tu não ouves … Tens ou não tens???
 - Ahn?
 - Tens alguma ideia??? Pergunto-te se tens alguma ideia para nos safarmos desta?
 - Nos safarmos???
 - Muito bem; o problema não é teu, é meu; esquece.
 - Disseste que ias falar com o Pompeu para contratar alguém que venha organizar o arquivo … Já falaste?
 - Não, ainda não falei; Mas não é por falar ao Pompeu que aparece o processo desaparecido, entendes?
 - Entendo. Talvez com  a organização do arquivo apareça o processo que te preocupa. É assim tão importante esse processo?
 - Se é!... Com a tua pergunta ocorreu-me uma questão: há dias, disseste-me, que esteve aqui junto ao balcão um advogado que tu, sem olhares para quem falavas, como é teu costume,  recambiaste para o polícia à porta, e que eu, a entrar, me devo ter cruzado com ele, a sair. Tens algum registo do que possa ter dito?
 - Hum! Se era advogado, deve ter falado em processo, … talvez ... é o que vêm cá fazer os advogados, não é? … a mim, pelo que tenho ouvido, advogado quando aqui entra é para consultar processos ou juntar documentos, requerimentos, seja o que for, aos processos … que depois tens de juntar, acompanhados de juntadas, dactilografadas por ti e assinadas pelo Pompeu, com aquele interessante trabalho de sapateiro … Já agora, se queres uma ideia minha, quando falares com o Pompeu para contratar quem organize o arquivo sugere-lhe também que o tribunal contrate um profissional com experiência de sovela e fio de sisal.
 - Então, se bem te entendo, o tal advogado falou em processo, saiu e quando aqui chego o processo tinha sido levado …
 - Pode ter sido, sim. Não garanto, não vi nada, nem advogado nem processo algum em cima do balcão …mas pergunto, se me é permitido perguntar, é assim tão importante esse processo?
 - É quente …
 - É quê?
 - Quente. Sabes o que é um processo quente? Se for muito quente pode queimar quem o pegue.
 - Hum! Fico na mesma mas também não vou perguntar mais nada. Estou afastado dele, não vou querer aproximar-me.
 - Mas ficaste intrigado … não digas que não … a intriga aquece, e atrai mesmo quem se quer afastado.
 - É bem possível que seja como dizes. Há dias ouvi nos reservados uns lamirés que me deixaram à alerta.
- Nos reservados? Quais reservados?
 - Nos reservados aos juízes e delegados da procuradoria da república.
 - Essa é boa! Como é que aconteceu isso?
 - Foi fácil. Vinha a chegar no mesmo instante em que chegava o Toscano. Estava aflitíssimo, precisava de descarregar o mais depressa possível, caso contrário teria provocado uma situação memorável à entrada do tribunal. Tinha comido, na véspera, ameixas sem conta, estamos no tempo delas, no dia seguinte quando aqui cheguei deram-me as ameixas uma volta cá dentro que não se não saíssem a bem sairiam da maneira mais catastrófica mesmo à entrada da porta de entrada dos juízes. Disse ao Toscano, ele viu-me tão aflito, enfiou-me na primeira porta que viu nos reservados. Fiz o que tinha a fazer, a porta bem fechada por dentro, e mantive-me quedo e calado o tempo suficiente para me convencer que não havia ninguém nos urinóis, e …safei-me de lá sem ser visto. Enquanto esperava sentado e sossegado, entraram dois juízes, não sei se eram juízes, o que sei é que entraram para os reservados dos juízes dois falantes que comentaram um caso, não percebi que caso, que envolve uma decisão tomada por um juiz, não percebi que juiz, que parece estar a incomodar bastante a classe. Foi o que ouvi, não percebi se era caso morno, caso quente ou muito quente.
  - Estás a ver a falta de segurança que existe neste tribunal? Até tu, apêndice …
 - Apêndice?
 - É a designação dada aos voluntários como tu. Apêndice é um anexo ao processo principal, geralmente um parecer de especialista requerido por qualquer das partes, ou um acórdão anterior …
 - Já aprendeste muito nuns mês …
 - Aprendi? Não tomes por cem por cento certo aquilo que te digo, e que é apenas aquilo que julgo ter apreendido. Certo, quase certo, é que a segurança da papelada aqui no tribunal parece ser tão displicente que permite que qualquer um mais atrevido pode pegar num processo e levá-lo sem que ninguém dê por isso.
 . E pode servir-lhe de alguma coisa?
 - Pois pode. A informação é fundamental nas guerras, e nas guerras jurídicas também.
 - Se o advogado, ou seja lá quem tiver sido, saiu e tu não te encontraste com ele, é possível que tenha evitado encontrar-se contigo se levava clandestinamente o que queria pedir-te mas tu não estavas quando ele entrou. Mas, afinal, de que caso se trata nesse processo roubado de cima do balcão?
 - Nasceste, Rodrigo, para uma carreira na judiciária…
 - E tu para escrivão de direito …
 - Negativo. Não gosto disto. Quero sair daqui logo que consiga recuperar a forma perdida durante o tempo que estive em Goa para voltar a jogar e um dia passar a ser treinador das camadas jovens.
 - Tu é que sabes, mas penso que uma carreira de funcionário de tribunal tem as suas vantagens …
 - Por exemplo, tens salário garantido, entras tarde, sais cedo, tens três meses de férias, grandes hipóteses de promoção a escrivão de direito … Quem me dera!
 - Tens muito que esperar. Tens dezasseis …
 - Vou fazer dezassete no princípio do ano que vem.
 - Dá no mesmo. Antes da tropa feita não arranjas emprego aqui nem em nenhuma função pública.
 - Para a Índia não devo ir; aquilo não se vai aguentar por muito mais tempo, disseste tu. Se não houver guerra, não vai haver necessidade de tanta tropa.
 - Isso é o que tu pensas. Acaba na Índia vai começar nas nossas colónias de África, verás. Só o velho é que não vê, e, não vendo o velho, os que o veneram também perderam a visão a média distância, não sei se me faço entender …
 - Perguntavas-me, afinal de que caso se trata nesse processo roubado de cima do balcão.
 Muito honestamente, tenho que dizer-te, mas só a ti, que não sei … Anteontem, quando aqui cheguei, foi anteontem, não foi que o processo desapareceu?, o processo ainda não me tinha sido entregue pelo Pompeu para registo de entrada na secção. Foi só quando ele chegou, que, passado pouco tempo, meia hora se tanto, voltou a sair, deu-me o processo e saiu, avisando que não viria de tarde. Como tinha marcado encontrar-me com uma pessoa, encontro rápido, aproveitei a saída do Pompeu, e fui até lá abaixo. Quando voltei, demorei quase nada, quando voltei, tu contas-me o que se tinha passado com o tal suposto advogado, e, ia caindo para o lado, o processo tinha desaparecido de cima do balcão, onde eu o tinha deixado, tenho a certeza que o deixei lá para fazer o registo, que não fiz nem li porque nem olhei para ele com olhos de ver.
 - Estás entalado.
 - Pois estou. Vou à recepção central ver se arranjo alguma maneira de me desentalar, nem que seja por pouco. Tenho lá um tipo amigo, também basquetebolista …
 - …
 - Então desentalaste alguma coisa?
 - Fiquei a saber o essencial para não ser um desastre completo. O processo foi iniciado por um relatório de ocorrências feito, já há uns tempos, pela polícia de segurança pública.  Tanto quanto se sabe na praça pública, verdade ou não, a filha de um empresário muito conhecido e, sobretudo, dizem, com grande fortuna, foi espancada pelo marido quando surpreendida na cama com um tenente em serviço num quartel local. Mas espancada sem dó nem piedade, a ponto de ter sido internada no hospital distrital, considerando a gravidade da situação clínica ou, hipótese também provável, querer a família ver a filha o mais longe possível das más línguas de cá deste sítio. Resumindo, queriam abafar o escândalo. É uma verdadeira história de cordel, dessas com que, antigamente os ceguinhos faziam rimas, e cantavam nas feiras para amealharem uns tostões. Hoje, quanto mais se tenta abafar a verdade mais se propaga, com velocidade superior, o boato; quem não sabe o que se passa nestes assuntos que envolvem os mais afortunados, inventa. Também deves ter ouvido qualquer coisa acerca disto, não?
 - Não, não sei de nada.
 - Vives num mundo à parte, só teu.
 - Talvez… Estou a terminar agora, dentro de dois minutos, no máximo, a transcrição de mais uma sentença. A esta hora, se começo com outra, não termino antes das seis, seis e meia. O que preferes? Saio já ou esperas que termine outra?
 - Ah!, não. Terminas essa e começas amanhã outra. Precisas de descansar, … e eu também…
 - Quantas faltarão ainda?
 - Como é que posso saber? Nem sei nem sei quem possa saber. Enquanto não se reorganizar o arquivo ninguém sabe o que lá está, percebes?
 - Perfeitamente. Já agora, aproveito para fazer-te uma pergunta: depois de amanhã é fim de mês, os funcionários já começaram a receber hoje, tu também, se bem entendi o que ouvi, quando é  que eu também recebo?
- Tu??? Disseram-te quando é que vinhas ganhar quando te mandaram vir falar com o Pompeu?
- Não.
 - Hum! Penso que não tens direito a nada. Tanto quanto julgo saber não há verba para voluntários. Mas amanhã pergunto ao Pompeu.
 
Rodrigo saiu mais cedo que o basquetebolista, o escrivão de direito tinha avisado que não voltaria de tarde.
No dia seguinte, o voluntário decidiu consentir-se uma manhã de descanso e apresentou-se só às três e meia da tarde. Já lá estava o basquetebolista, boa tarde!, disse Rodrigo e o outro, nada.
 - Pareces preocupado?
 - Pareço, não! Estou preocupado, preocupadíssimo mesmo…
 - Há novidades? Que sejam do meu interesse …
 - Do teu interesse? Ah! Do teu interesse, não será. Falei com o Pompeu, e ouvi o que receava: não há verba para te pagar. Lamento, estás a fazer um trabalho impecável e muito necessário, o Pompeu reconhece isso, mas … nada feito, porque não há verba. Foi aos arames, ele que é um poço de calma, quando me perguntou se ainda faltavam muitos processos com sentenças por transcrever. Disse-lhe que não sabia, fez-se da cor de um tomate, se pudesse tinha-me despedido imediatamente, sem culpa formada. Acalmou quando o convidei a ir ver o arquivo, aquilo não é um arquivo é um perfeito caos, ficou sem fala;  quando voltámos estava à espera para entrar um fulano com um processo debaixo do braço.
 - Olá doutor, o que o trás por cá?
 - Devolver este processo que levei há dias para consultar. Obrigado!
 - Muito bem, deixe ficar.
 E o processo devolvido ficou nas mãos do Pompeu
 - Era o processo desaparecido, só podia ser o processo desaparecido. Quando o advogado saiu, o Pompeu entregou-mo para arquivar, não me falou no registo, também não perguntei, depois saiu antes do meio dia. Não perguntou nada, não disse nada, fiquei convencido, e continuo convencido, que terá sido ele quem entregou aquele processo ao advogado e se esqueceu da falta, aliás grave, do registo na secção quando o colocou no balcão, e até amanhã, não volto de tarde.  
 - Quem também vai sair já sou eu!
 - Rodrigo, tu vais sair sem ter terminado o trabalho???
 - Falta muito?
 - Penso que falta pouco.
 - Sendo assim, o senhor escrivão de direito não terá grande dificuldade em pescar outro voluntário pelo mesmo preço. 
 
Por alturas do fim do ano, cruzaram-se na rua o Rodrigo e o basquetebolista.
 - Olá Rodrigo, que tens feito?
 - Tudo menos o que gostaria de fazer.
 - Percebo. Também eu. Posso convidar-te para almoçar numa tasca, que conheço, perto daqui? O prato do dia, hoje, são carapauzinhos fritos com arroz de tomate. Agrada-te? Também têm tripas todos os dias, para quem gosta. Preferes as tripas ou os carapauzinhos? Têm outras coisas mas não recomendo. Ali, ou os pratos do dia ou vamos a outra tasca.
 - Os carapauzinhos …gosto de carapauzinhos, desde que não os deixem esturricar.
 - Muito bem: esturricados para mim, não esturricados para ti. Valeu?
 - Vamos lá.
O basquetebolista não comia, devorava carapauzinhos esturricados acompanhados de garfadas bem cheias de arroz de tomate ao mesmo tempo que falava.
 - Sabes, Rodrigo, hoje estou convencido que o Pompeu sabia que tinha deixado o processo desaparecido em cima do balcão e tinha-se posto a andar.
 - Mas é possível que um processo saia do tribunal para consulta de um advogado sem registo de saída?

- Possível é, é tudo possível, mas, sendo possível, não significa que seja legal. Cometem-se tantas ilegalidades, Rodrigo, que mais uma, menos uma, não se nota. A regra é: faz o que te apetece e deixa que eu faça o mesmo. Os processos podem ser consultados consoante as condições que a lei permite. O Pompeu, e como o Pompeu outros iguais ao Pompeu, são pessoas respeitáveis, os advogados são respeitáveis, os delegados do ministério público respeitadíssimos, os juízes excelentíssimos respeitadíssimos. Problemas entre eles só acontecem se houver conflitos, se colidirem interesses pessoais; Entendes ou queres que faça um desenho?

- Sim, um desenho daria jeito.
 - Estás a gostar dos carapauzinhos? São uma maravilha, não?
 - Se são! Mas, aqui, os preços não são para a minha bolsa.
 - Arranja-se um desconto. Apresento-te à Dona Luísa, passas a ter desconto de funcionário do tribunal. Na tasca do Luisinho, funcionário público tem desconto generoso. Pagas metade da tabela.
 - Dona Luísa ou Luisinho?
 - Não te passa nada. Deves concorrer à judiciária, já te disse. O Luisinho e a Dona Luísa são uma e a mesma pessoa, uma questão de desdobramento de personalidade, digo eu que não sou psiquiatra nem nada que se pareça. Percebes ou também precisas de desenho? …
 - Penso que não, mas … deu-te um beijo na nuca.
 - É só um carinho para os clientes do costume. Não se pega, não é contagioso … Oi! … … … isso tira-te a vontade de papar aqui carapauzinhos?, ou carapau crescido, dobradinha todos os dias, berbigão fresquinho, uma maravilha, às vezes têm burriés do mar, já alguma vez comeste burriés? Tens de provar. Não, hoje, hoje não há…
 … mas voltando à questão do processo desaparecido, por nenhuma coincidência aceitável, a partir do momento em que aquele processo desapareceu para parte incerta, os boatos, verdades ou meias verdades, pularam excitando mesmo aqueles que, até aí, não tinham um mínimo conhecimento do caso da filha do grande industrial; muitos pormenores passaram a circular na praça pública, até as fotografias apensas ao relatório de ocorrências da polícia mostravam o estado confrangedor em que ficou o corpo, e não só o rosto, da agredida. Inicialmente, foi dito, por quem não sei, que a senhora tinha-se desequilibrado e estatelado na escada da casa e do trambolhão teria ficado naquele estado fotografado pelos médicos que a observaram nas urgências. Contra o pai, que quis que o caso não caísse na rua e porque, além do mais, tinha muita consideração pelo genro, engenheiro responsável pelas actividades das fábricas … fábricas de conservas, mas também pela frota de pesca, incluindo participações na frota de pesca de bacalhau, impôs-se a mãe, era o que faltava!, argumentava ela, era o canalha não ir parar à prisão só para evitar que toda a gente soubesse o que se tinha passado! Além do mais, não era segredo nenhum que, há muito tempo, o engenheiro usava e abusava da sua condição de chefe para dormir com algumas das mulheres que trabalhavam nas fábricas.
 (E, diz-se, não consta do processo, que teria respondido ao marido quando ele a ameaçou com o divórcio se ela avançasse para além do relatório da polícia, razoavelmente parado.
 - É para já. Venha o divórcio, se não avançares, avanço eu. Ficas mais livre, mais à vontade, e eu, verei o que fazer…
 - O quê???
 - Pensas que não sei que fazes o mesmo que o canalha que só não matou a nossa filha porque não calhou? Sim, não te metes, como ele com as mulheres da fábrica; não, tu voas mais alto, tens dinheiro tens as que quiseres, oferta não te falta …)
 - E avançou ela com nomeação de advogado.
 - O advogado que apanhou o processo desaparecido pela, talvez, propositada displicência do Pompeu e pela tua pressa em dar um salto à rua mal ele saiu?
 - Pois se foi ele que devolveu o processo, demonstrado ficou que foi ele quem o tirou, que te parece futuro agente da judiciária?
 - Assim parece… Mas, …tu chegaste a abrir e ler o processo devolvido?
 - Não. Fiz o que o Pompeu mandou fazer, levei-o para o arquivo.
 - Não, mas por que perguntas isso?
 - Ocorreu-me uma hipótese …mas continua, faz favor.
 - Que hipótese?
 - Não vale a pena aumentar o já inúmero de hipóteses que circulam. Continua, … continua … mas proponho que continuemos a nossa conversa lá fora, agora já há aqui muita gente.
 - Concordo. Vou pagar e saímos a seguir...
- És tramado! Agora, transitado o processo para o foro judicial, ninguém pode garantir qual será o resultado do julgamento em tribunal: o agressor pode ser condenado ou ilibado, mas ao mesmo pode estar sujeita a agredida;  a família, neste caso o nome da família ficou irremediavelmente arrombado com o sucedido, recuperará parte do rombo se o agressor for condenado. Estás a ver o desenho?
 - Mal. O que pode pior acontecer à agredida?
 - Pode ser considerada culpada.
 - Essa é boa!
 - Não é boa, é má, para a agredida é má: numa sociedade onde subsiste ainda uma sujeição generalizada das mulheres perante os homens; defenderem abertamente a agredida seria colocá-las do lado das suspeitas de, eventualmente, poderem fazer o mesmo. A indignação da mãe não será, implicitamente, determinante da reacção da generalidade das mulheres na sociedade actual. Talvez as mulheres da tua geração, com a evolução da equiparação entre homens e mulheres nas relações sociais, condenará a extrema violência cometida por um homem, de mais a mais oficial do exército. Por outro lado, os homens, velhos ou novos, condenarão a agredida. Tu, por exemplo, … qual é a tua opinião, no fim de contas, o teu julgamento neste caso?
 - Não tenho opinião …nunca pensei nisso … a opinião pública opina mas não julga, … ou julga?
 - Isso é muito verdade. A opinião pública não tem qualquer prerrogativa para sentenciar nestes casos mas aqueles a quem a lei atribui a responsabilidade de decidir não são imunes aos valores morais prevalecentes na sociedade reflectidos na opinião pública e sobre estes são ainda relevantes os mandamentos religiosos, por mais obsoletos possam parecer. Lê-se na Bíblia, ouvi dizer, nunca li a Bíblia, ... tu alguma vez leste a Bíblia? também não ... na Bíblia, o adultério da mulher (mas não o do homem)  é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem (mas não da mulher). Há sociedades em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Percebes isto? 
– Percebo o que dizes, não percebo a dualidade de critérios. Mas se o caso vai a julgamento, porque o relatório de ocorrências saiu para a rua, o agressor, que terá do seu lado, segundo o que disseste, a generalidade da opinião pública, além da aprovação bíblica, será confrontado com os resultados da extrema violência evidente nas fotografias, e radiografias, suponho, obtidas no hospital. E essa violência, que poderia ter matado a agredida terá, só pode ter uma influência decisiva na sentença judicial. Ou não?
 - Depende de quem julga. Os juízes, nestes casos, dispõem, a meu ver, de um grau de discricionariedade muito amplo. E a jurisprudência também conta, mas vai, por estar voltada para o passado, em princípio, colocar-se do lado do agressor. O resultado final é imprevisível mas o agressor pode ser ilibado.
 - E o industrial ultrajado por um processo baseado num relatório da polícia que ele quis que fosse abafado. Não tendo sido, quererá que seja responsabilizado quem divulgou, amplamente, junto da opinião pública, tudo o que constava de um processo sem autorização prévia de um juiz. E essa responsabilidade pode recair sobre as costas do Pompeu e, por tabela, sobre as tuas.
 - Já agora também sobre as tuas … Não sobre as tuas, não, de modo algum. Sobre as costas do Pompeu também não é provável. O Pompeu, como todos os escrivães judiciais têm os advogados nas mãos. Os advogados precisam de pequenos favores, nem sempre lícitos dos escrivães, os escrivães não precisam dos advogados. Se um advogado se lembrasse de conflituar com um escrivão de direito teria toda a classe dos escrivães contra ele. Por outro lado, também entre os juízes, prepondera o espírito corporativo. Mesmo entre advogados a crispação, quando existe, é silenciosa. No fim de contas, o desvio e divulgação do processo temporariamente desaparecido, e depois subitamente aparecido, nenhuma influência terá sobre o desfecho do caso, salvo o divórcio do casal pai da agredida e, também muito provavelmente, o divórcio do agressor e agredida. Mas levará tempo, essa fase será demorada, há muito dinheiro em jogo.
 - Hum! E o tenente? O que aconteceu ao tenente? Afinal de contas, também ele foi apanhado em flagrante, de rabo para cima, para baixo, ou de costas, dá no mesmo.
 - Não te passa nada, Rodrigo. Francamente, não sei. Não sei nada do que consta do processo. O Pompeu mandou-o arquivar, arquivei, tinha mais a fazer, não li nada do processo.
 - Mas trata-se de um processo ainda bem longe de estar terminado …
 - Lá isso é verdade. Faço o que me mandam, nem mais nem menos para não comprometer a minha carreira no tribunal.
 - Então como sabes tanto pormenor sobre o processo se não o leste sequer?
 - Oh! Rodrigo, sei o que toda a gente já sabe. Não se fala noutra coisa em toda a parte da cidade.
 - E tanta informação nunca te despertou o mínimo interesse em ir ao arquivo para dar uma vista de olhos.
 - Voltei, contigo sei que posso falar à vontade. Voltei mas não o encontrei. Sabes em que estado de desorganização se encontra o arquivo …
 - Desapareceu outra vez?
 - É possível não sou único com permissão de entrar naquele arquivo. Alguém o pode ter levado de lá.
 - Ou, então, aquele processo nunca lá entrou.
 - O que é que te leva a pensar isso?
 - Penso que o processo do já famoso caso do dia não entrou na secção.
 - Essa é boa! Então que processo voou e voltou?
 - Recordo-me de ter dactilografado a sentença constante num processo, julgado há uns seis anos, com contornos que me fazem lembrar este: violência extrema do marido sobre a mulher apanhada na cama, essa sim, com um tenente… casos como este são relativamente frequentes. Alguém, muito provavelmente o Pompeu, que tem mais anos de tribunal do que tu a ires e vires do arquivo, entregou, com condição devolução, para consulta do advogado nomeado pela mãe da agredida, o processo crime de violência doméstica ocorrido há oito anos. Percebe-se porquê, não?
 - Sim, …e, então?
 - Sabe-se, objectivamente, que agredida e agressor casaram-se há seis anos, casamento católico, muito provavelmente  sem escritura ante nupcial; não têm filhos, o que muito desgosta os pais dela, atribuindo o agressor, sem provas possíveis, a causa da infecundidade à mulher, devolvendo esta a causa ao marido; a arguida é filha única, na manhã do dia da agressão, avisou o pai que não iria ao escritório por se encontrar indisposta, saindo a meio da manhã da sua casa para a casa dos pais, onde apenas se encontrava a mãe; a mãe saiu passado pouco tempo para ir à farmácia; quando voltou, tempo depois mais que suficiente para ir à farmácia,  encontrou a filha desfigurada, semiconsciente, chamou o motorista pessoal para que colocasse a filha no banco de trás do carro, e, ala! para o hospital!  É isto que ouvi e que me parece que, se não é tudo verdade, não andará longe. Aliás, o relatório da polícia e o parecer médico, incluindo fotografias e radiografias estão nas mãos do juiz. Quando vão sair?  A Justiça é lenta e não sei se alguém agora a quer ver apressar-se. O industrial não despediu o engenheiro, mas o engenheiro despediu-se. Há muitos interesses em jogo, o industrial não vai querer que a fortuna venha a cair nas mãos do engenheiro, de descendentes ou familiares dele …Mas se o casamento foi católico, o divórcio vai ser difícil, para não dizer impossível; e a agredida recusa-se a dizer, e ninguém a pode obrigar a dizer quem estava na cama com ela no momento em que o agressor entrou no quarto, e quem estava com a agredida saltou para fora sem ser reconhecido.
Uhm! É uma mão cheia de informação, tenho de reconhecer, mas também muita especulação…
 - Não inventei, não invento nada, limito-me a ouvir; fiquei com a atenção muito sintonizada no assunto depois de tanto dactilografar sentenças.
 - Mas, já agora diz-me, se souberes, claro, se não foi o advogado que levou o processo desaparecido quem é que o tirou de lá?
 - Podes ter sido tu.
 - Eu?
 - É uma hipótese. Naquele dia dactilografei sentenças de meia dúzia de processos …
 - Seis processos???
 - É verdade. Como sabes tinha, e ainda tenho um registo dos processos que me entregaste e dos que te devolvi. Não fiquei com nenhum. Admito que, no meio de tantas idas e vindas ao arquivo, convenceste-te que tinhas deixado um processo no balcão que não viste quando voltaste da tua ida à rua. E não deixaste, deste-mo para eu dactilografar. É uma hipótese… que achas? A vida, afinal, é todo ela um mar de hipóteses  onde cada um anda a nadar consoante as circunstâncias permitem.
 - Isso é uma grande tirada, filósofo Rodrigo… Soube esta manhã, não é mais uma hipótese, soube de fonte segura, quando ia a caminho do tribunal, que mãe e filha saíram daqui para o sul. Sabes porquê?
- Porquê o quê?
- Por que é que elas saíram daqui para o sul?
- Não sei, mas tu dizes-me. Isto está cada vez mais parecido com uma conversa de comadres ... por este andar, sendo todas as hipóteses possíveis a rua novela não terá fim.
- Sabes há quantos meses a filha do industrial foi espancada pelo marido?
- Não sei, mas tu sabes e dizes-me.
Agora fiquei na dúvida se a judiciária te convém...
- Deixa-te disso. Estás a ser muito repetitivo. Uma vez, aceita-se, duas já é demais, e tu, volta e meia vens com a mesma conversa ... 
- Mãe e filha foram para o sul porque a filha engravidou no coito interrompido, em meados de Agosto. Estará no quinto mês de gestação. E esta, que te parece? Não é uma hipótese, é um facto comprovado.
- E sabe-se já quem é o progenitor?
- Não, nada, absolutamente nada. A agredida continua a recusar-se a identificá-lo.
- Interessante: legalmente, no registo de nascimento da criança, o pai é o engenheiro; são casados, e, ainda por cima, casados catolicamente, como progenitor só pode ser considerado o marido. 
- É uma grande embrulhada, não é? Deve ser por isso que o processo ainda está, e vai continuar por muito tempo, nas mãos do juiz. Sei, por outro lado, que a Judiciária já está a investigar ... Entretanto, digladiam-se os advogados, há muitos interesses em jogo; o engenheiro não vai querer abdicar dos seus direitos à fortuna da família ainda que não reconheça a paternidade da criança; o industrial continua a desviar património em seu nome para qualquer intocável refúgio; os advogados, que facturam consoante os resultados, continuam a confraternizar, como velhos amigos, que são, no café da Madame.

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