Monday, February 27, 2017

INVESTIMENTO PAROQUIAL

O E. convidou mais uma vez amigos das mais diversas procedências para jornada turístico-gastronómica, desta vez, outra vez, nos sítios onde nasceu e cresceu até abalar para a capital e tornar-se prestigiada figura pública. Calcorrearam-se ruas, visitaram-se locais, pisados por muitas cargas de história antes de saborear as iguarias de caça num simpático restaurante na aldeia do nosso anfitrião. 

Na freguesia, de que aquela aldeia é sede,  contavam-se em 2011, i.e., antes da união de 2013 com outra freguesia vizinha, menos de 2900 habitantes, cerca de 62% da população contada em 1981. Hoje, cinco anos depois da última contagem conhecida, a população da aldeia não deve ter aumentado, mas deve ter-se alargado o escalão etário mais velho, acima de 65 anos, que em 2011 já representava cerca de 1/3 do total,  e encolhido o mais jovem, até aos 24 anos, não mais que 18,2%. 

Trata-se de uma evolução demográfica típica observada na irreversível concentração urbana, mais acentuada no interior do país, que replica um fenómeno que atravessa todas as sociedades em transição da economia agrária e industrial para a economia de serviços. 
No caso desta aldeia, como de outras que orbitam nas proximidades de cidades ainda com alguma vitalidade económica, a deserção populacional só é parcialmente travada porque se transformam de algum modo em zona residencial daqueles que trabalham na cidade solar. 

O nosso amigo, entre outras virtudes, que são muitas, e lhe minimizam porventura alguns defeitos da sua condição humana, mantém com a sua terra e os seus conterrâneos uma ligação tão duradoura e intensa, que o levam até a acarinhar iniciativas que uma análise friamente tecnocrática rejeitaria liminarmente. 

Em Agosto de 2009, já a crise tinha eruptido, anotei aqui indignação pelo início da construção de uma estrutura enorme no ponto mais alto de um dos cumes do monte, a que exageradamente chamamos serra, sobranceiro ao lugar onde nasci. Destinava-se  a enormidade, pela informação dada à minha perplexidade, à construção de um pavilhão para a prática de futsal, a equipa local brilhava nos campeonatos regionais e interiorizara a ambição de chegar ao escalão cimeiro.
Mas há por cá agora tantos jovens talentos que mereçam um investimento daqueles?, perguntou a minha curiosidade mal contida.
Haver, não há, mas contratam-se! Vêm até cá rapazes de vários sítios?
De perto?
De perto e de longe. Com as facilidades que há, hoje em dia, do longe se faz perto.
Engoli em seco as minhas dúvidas sobre o mérito da despesa, de algum modo suportada por algum programa inscrito no orçamento do Estado. 
Sete anos depois, continua especado no monte uma bisarma de aço, só colunas e travessas, sujeita à corrosão do tempo, à espera de apoios financeiros que não virão. Do futsal local não tenho notícias. 

Vem este salto dos sítios do nosso amigo para os meus a propósito do entusiasmo que observei este sábado passado, dele e dos seus conterrâneos,  naquela aldeia ribatejana, onde a agricultura e a indústria já tiveram dimensão que explicou o crescimento demográfico e juventude, que arrebatou troféus que encheram a vitrina na Casa do Povo local, à volta da construção de um centro social no antigo campo da bola e de um novo campo de futebol em terrenos anexos a Casa do Povo, já adquiridos e com financiamento prometido.  

Calei o meu cepticismo a recordar-me do campo de futsal da minha aldeia, qual avantesma à minha espera sempre que vamos a penates. 
Mas espero, sinceramente, que o meu cepticismo venha a revelar-se completamente infundado, e um dia destes o nosso amigo seja convidado para, pelo menos, dar o ponta pé de saída do encontro inaugural no novo estádio da sua terra.  

SEM CULPA



- Ricci, tens andado a fazer asneiras. Estas análises estão uma vergonha. Tens de ir outra vez à oficina, Ricci. Avisei-te que tinhas de mudar de vida mas foi o mesmo que nada.
O doutor Riosa ainda não me conhece bem depois de três décadas de consultas periódicas. Faz agora dez anos que entrei no consultório convencido, como de costume, que estava como novo e saí de lá com diagnóstico reservado: temos de fazer mais umas análises, Ricci, mas suspeito que tenhas de colocar uma válvula. Ia morrendo com a ameaça mas aguentei e, passado um mês, tinha uma válvula nova. E o calvário de ter de o consultar de três em três meses.
- Ricci, está tudo bem mas tens de ter mais juízo: menos gula e mais exercício.
Até à semana passada. Avariou a válvula de um momento para o outro? Não Ricci, nada avaria de um momento para o outro. Avaria-se a pouco e pouco, e um dia, zás!, tem um colapso.
Ia morrendo pela segunda vez. Subitamente, senti-me terrivelmente cansado, incapaz de voltar para casa. A muito custo lá me recompus.
Tinha eu contado uma história quando entrou a enfermeira para a visita de rotina. Contrariamente ao que me habituara, então como vai hoje o nosso doentinho, passou bem a noite, como é que se sente, dirigiu-se à cama do lado, nem bons dias nem boas noites, correu os cortinados separadores, esteve lá dentro uns instantes, e saiu apressada de modo nada habitual. Na expectativa do que teria motivado uma saída tão repentina da senhora enfermeira, apressou-se-me o coração mas nenhum dos outros sensores reclamou estado de emergência. A válvula tinha sido submetida ao primeiro ensaio de stress e respondia bem ao esforço súbito que lhe tinha sido pedido. No dia seguinte, o mais tardar dois dias, seria devolvido ao mundo depois de uns dias de encarceramento forçado.
Instantes depois, entrou apressado o interno, seguido da enfermeira, para além dos cortinados corridos. Durante uns momentos largos não surgiram do outro lado nem notícias nem sussurros sequer. Aumentou-se-me o ritmo cardíaco mas a válvula continuou a portar-se bem. A um silêncio absoluto respondia garbosamente a minha válvula. Um ou dois minutos depois da entrada do interno e da enfermeira, apareceu à porta apressado o médico assistente: il giudice é morto, disse o interno em voz baixa mas eu ouvi sem dificuldade. O coração tinha entretanto abrandado a carreira e a válvula, estou certo, lá dentro já ninguém dava por ela.
Pressenti depois que conferenciavam, mas desta vez, mesmo de ouvido sintonizado naquele comprimento de onda, não conseguia ouvir fosse o que fosse. Da conferência em segredo deve ter saído ordem para me anteciparem o passeio matinal porque a enfermeira, sem conseguir esconder a perturbação que a levara a esquecer-se de me dar os bons dias, me disse, signor Ricci hoje vamos começar o nosso passei matinal mais cedo, agrada-lhe? Se me agradava… Melhor ainda: iria tomar o pequeno-almoço fora do quarto.
Já no corredor, pergunta-me a enfermeira se o meu parceiro de quarto tinha tido uma noite sossegada. Sossegadíssima, respondi-lhe, não lhe ouvi a mínima queixa desde que o tinham trazido para o quarto deviam ser umas seis da manhã, não? Sim, sim, eram seis e pouco, confirmou a enfermeira. Já não consegui dormir mais. Aliás, acordo normalmente cedo, seis, seis e meia, e depois não durmo mais. 
A enfermeira tinha-me informado à hora de jantar da noite anterior que, como o hospital estava cheio e eu iria sair no dia seguinte, ou no outro, o mais tardar, iriam colocar na cama ao lado um doente com coração transplantado que se encontrava nos cuidados intensivos pós-operatórios. Disse-lhe que até ficava satisfeito por poder ter alguém ao lado com quem falar. Mas com calma, tranquilamente, nada de futebol ou política, o signor Ricci não se esqueça que foi operado há três dias e este doente que virá fazer-lhe companhia  tem um coração novo há apenas dois. OK, nada de futebol nem política. Religião? Também não convém signor Ricci, infelizmente nem em nome de Deus, que é omnipotente e omnipresente, os homens deixam de se matar.
E foi assim que o do coração novo passou a meu companheiro de quarto a partir das seis e pouco da manhã seguinte.
Após coisa de um quarto de hora de silêncio absoluto, os dois a olhar o tecto comum, eu já pensava em tudo menos na válvula, arrisquei um bate-papo, ameno conforme a prescrição da enfermeira, sem futebol, nem política, nem religião, um tema trivial, o passado, que é o que mais têm os que já têm uma certa idade. Falar do passado é tão trivial entre os mais velhos como beberem sofregamente o presente os que são mais novos. E, porque não nos conhecíamos, abriram-se-me inconscientemente os arquivos secretos da memória.
O senhor é de Rimini, suponho, comecei por dizer para dizer alguma coisa. Nem chus nem bus, O do coração novo se ainda estava lá não dei por isso. Olhei-o pelo canto do olho e vi que permanecia imóvel, tal qual o haviam deixado, a cabeça puxada para trás, os olhos abertos, a boca contraída. Parecia absorto, tossicou pouco depois. De qualquer modo receei que não se sentisse bem, e insisti: Que tal se sente com esse coração novo? Uma maravilha, não? Eu, que só substituí uma válvula, recuperei vinte anos, pelo menos, penso eu.
Nada. O do coração novo continuava aparentemente meio atordoado. Insisti na tentativa de diálogo: Estou a incomodá-lo? no, no, no, murmurou ele com uma entoação cooperativa.  Entendi: pode continuar, e continuei. Como tinha sido intervencionado há muito menos tempo que eu, fiz a honras de toda a conversa, o do coração novo ouvia atentamente, tossicava raramente e mais raramente ainda lá vinha com o cooperativo no, no, no se eu lhe perguntava se a conversa o incomodava.
Há quarenta anos que não vinha a Rimini, sabe? Si, si, si, murmurava ele. Emigrei e proibi-me de voltar a passar o Rubicão. Mas a Mãe morreu, faz agora dez anos, a casa estava abandonada e em ruínas, os do município intimaram-me a vender, doar, ou fazer obras. Cheguei há uma semana mas levei uns meses a preparar a viagem. Vou hoje, vou amanhã, o que mais me apetecia, francamente, era cumprir o que jurara e nunca mais aqui pôr os pés. Mas já que tinha de vir, viria para vender a casa mas também para estar com os que não via há tanto tempo. E, sem fazer contas às consequências do passar do tempo, carreguei comigo lembranças para toda a gente de que me lembrei. Canivetes par os homens, chocolates para as senhoras e os mais pequenos. Nada menos que dois quilos de chocolate, está a ver o exagero? O do coração novo voltou a reagir do mesmo modo: si, si, si. E eu continuei.
Vim no comboio, que chegou a Rimini já era noite. Hospedei-me no hotel junto à estação, jantei e já não saí. Sentia-me cansado e, mais que cansado, preocupado com o confronto que o dia seguinte me reservava entre as minhas expectativas e a realidade do mundo em que nascera e crescera. Quantos daqueles que tinham ficado se manteriam ali ainda de pé? Dormi mal. Pior que dormir mal, a imaginação à solta levantou fervura e deitou fora qualquer provável realidade. Quando me levantei, eram sete da manhã, estava mais extenuado do que quando me deitei. Si, si, si, balbuciou o do coração novo.
Quando desci para o pequeno-almoço, o padeiro ainda não tinha chegado. Atirei-me esfomeado ao pão duro da véspera, que com duas tiras de queijo e um café não me tiraram uma sensação de esgotamento físico que nunca tinha experimentado. Voltei ao quarto com a intenção de tentar dormir um pouco, estendi-me durante dez, quinze minutos, mas nem o sono chegava nem o cansaço se ia. Desci e saí à procura de um táxi que me levasse ao bairro da minha infância. A viagem demorou dez minutos, se tanto.
Quando chegámos foi preciso o taxista dizer, cá estamos, para me aperceber que tinha chegado a um mundo muito diferente daquele que tinha abandonado. Ainda lá está o café onde nos juntávamos mas o sol nado já não aparece na praça por detrás dele. Levantaram-lhe atrás torres de apartamentos que tornam o sítio irreconhecível ao fim destes anos todos. Entrei no café, ninguém visível. Está alguém em casa? perguntei alto. Apareceu-me uma rapariguita com ar de felosa assustada, à espera de ordens. Para justificar a entrada pedi um café duplo. Melhor, muito melhor do que o de há quarenta anos que, de resto, naquele tempo, não havia, nem bom nem mau. Eram tempos do diabo … si, si, si, disse o do coração novo, e fiquei espantado com tanta atenção.
Tempos de candonga. Lembra-se da candonga? O do coração novo não respondeu à primeira. Do azeite? Si, si, si. Do racionamento? Meio litro por família por mês. Mas arranjava-se mais na candonga. Saía-se à noite, quando já ninguém andava na rua, a menos andasse ao mesmo, e íamos buscá-lo onde o tinham enterrado para fugir à expropriação. Hoje cinco, amanhã dez litros, ia para uma talha de onde o tirávamos por uma torneira à medida que o consumíamos. Naquele tempo não podíamos passar sem azeite. Um dia diz o Pai: Este azeite tem uma acidez esquisita. Já todos lá em casa tínhamos dado por ela mas ninguém falara. Naquele tempo, comer e calar era a regra de ouro para sobreviver. Mas se o Pai dizia… Concordámos que, sim senhor, o sabor daquele azeite já não era o que tinha sido e, pior que isso, piorava de dia para dia. Mas, enquanto durou, bebeu-se. Quando acabou, a Mãe ao lavar a talha encontrou no fundo um rato morto. Felizmente o azeite já tinha sido todo bebido… si, si, si, O do coração novo continuava à escuta.
Dava eu uma vista de olhos pelo jornal, apareceu-me um rapaz do meu tempo. Reconheci-o pelo andar e depois pela voz. Não se lembrava de mim mas, mesmo assim, levou o primeiro canivete. Ficou encantado com o brinde e disposto a servir-me de guia naquele território desconhecido. Perguntei-lhe pela gente do meu tempo. Fulano? Já morreu. E Beltrano? Desse não me lembro, mas, se não morreu, já cá não vive há muito. E Sicrano? Ui! Esse desapareceu com os boches. E… E… E…? Morreram já. E…? Foi a enterrar a semana passada. Homens e mulheres do meu tempo se não tinham morrido ou emigrado tinham desaparecido no vendaval da guerra. Sobrava aquele. Dei-lhe mais cinco canivetes e dez embalagens de chocolate para os netos. Não tinha netos. Então come-os tu, que eu como o resto.
E da Floria, lembras-te da Floria? Que é feito dela? A mulher do Juiz? Morreu. Morreu? Ah morreu há muitos anos já. Si, si , si, sussurrou outra vez o do coração novo. Era uma mulher linda … O meu guia assobiou. Mas, morreu como? Ora morreu, … se bem me lembro, morreu de parto. Teve um filho e seis filhas, morreu, era nova ainda. Era a mulher do juiz. Dizem que o juiz queria à viva força fazer um filho à Floria, tanto experimentou que a matou. Mas ele tinha um filho, disseste tu. Pois tinha, era o mais velho. Mas ali havia coisa, sabes? O juiz olhava para o rapaz e não se via ao espelho. Que é feito dele? Não sei. E o Juiz? Dizem que o Juiz anda para aí à espera que o chamem para uma operação. Espreito o do coração novo e não lhe vejo reacção notável. Prossigo.
Senti-me abalado, quase culpado por ser sobrevivente. O meu guia, a quem não cheguei a perguntar o nome por vergonha de não me recordar dele, olhou-me desconfiado e perguntou-me: sentes-te mal? Não, respondi, já passa. Reclinei-me na cadeira, cerrei os olhos, e mantive-me assim por tempo suficiente para juntar à minha volta meia dúzia de curiosos que, entretanto, tinham entrado no café, e começaram a dar palpites. Quando me julguei razoavelmente recomposto levantei-me e fui até à rua apanhar ar. Vem daí, disse ao meu guia, vem comigo até ao notário. Sabes onde fica? Lá fomos.
No notário já tinha o comprador da casa à minha espera. Tinha incumbido da venda uma agência local, não iria ver a casa, estava em escombros, há muitos anos que a Mãe a abandonara por ser demasiado grande para uma pessoa só. Por outro lado, sentia-me demasiado debilitado fisicamente e psicologicamente deprimido para visitar a casa onde nascera e tinha vindo ali para vender. Cumpridas as formalidades, agradeci ao meu guia e voltei para o hotel. Almocei e subi para o quarto para descansar.
Mas não descansei. Quanto mais tentava evitar a projecção do filme mais se desenrolava a bobina que começara a rodar perto dali há quarenta anos. Estávamos em 44, eu tinha na altura dezassete anos e ia começar o primeiro ano de Química em Bolonha. Escapei por pouco ao recrutamento. Os boches tinham sido obrigados a abandonar Florença em Junho, a meio de Setembro havia bombardeamentos a Sul de Rimini, a comida esgotava-se em todas as casas, a água e a luz apareciam de quando em vez, as pessoas procuravam refúgio no campo e nos montes mais próximos, longe, pensavam elas, dos alvos do tiroteio. Na última semana de Setembro, chovia que chovia, entraram em Rimini tropas gregas e, dali até Bolonha, os tanques foram a vedeta dos combates. Si, si, si, voltava a concordar comigo o do coração novo.
De papo para o ar e de olhos cerrados como agora me encontro, à medida que desbobinava a minha história comia os chocolates que não tinham encontrado o destinatário, e que eram quase todos. Naquela noite, devo ter ingerido meio quilo de chocolates. Aqui, o do coração novo voltou a cabeça para o lado onde me encontrava e sorriu, simpático. Depois voltou à posição inicial, a cabeça puxada para trás, a boca serrada, o olhar fixo no tecto.
Tínhamos um lugar de fruta no rés-do-chão da casa onde vivíamos. No rés-do-chão ao lado era a farmácia, mas o farmacêutico e família habitavam uma moradia a uns quarteirões dali. Entre ambos os edifícios havia as entradas, separadas por um muro baixo, para pequenos logradouros onde do nosso lado se cultivavam legumes e criavam galinhas. O farmacêutico parqueava no seu um Fiat Topolino azul, o único que se via em toda a rua, que era o seu encanto e mirava-o de todos os ângulos. Passava as tardes a limpar-lhe o pó quando não aparecia ninguém para aviar na farmácia. Mas o que o farmacêutico tinha de mais precioso era a filha, a Floria. Mais velha que eu, dois ou três anos, era a minha paixão, secreta, porque jamais teria coragem para lhe dizer isso mesmo. Não só por ser mais novo, e naquela idade a diferença conta mais que a conta, mas porque ela era a filha do farmacêutico e, eu, o filho dos do lugar da fruta.
Quando as informações da aproximação das tropas aliadas chegam a Rimini, Floria já estudava Farmácia em Bolonha há três anos. Raramente a via, ultimamente.
Embalado nas minhas recordações, só quando aqui cheguei voltei o olhar para o recém-operado, que continuava imperturbável a olhar o tecto. Receio que esteja a incomodar …é melhor calar-me, não? No, no, no, sussurrou ele, e eu continuei a desbobinar o filme arquivado há quarenta anos atrás.
Numa tarde de um fim-de-semana de Agosto de 44, toda a família tinha ido para a igreja, eu ficara na loja a tentar desiludir algum assalto, teria exames de admissão em Bolonha daí a dias, que muito provavelmente seriam adiados pela aproximação dos confrontos pela ocupação de Rimini, mas a ouvir à distância o ribombar da artilharia dos exércitos aliados a tentar  desalojar os nazis das fortalezas naturais que os protegia, quem é que conseguia concentrar-se nos meandros da Química? Sentava-me, levantava-me, espreitava pela janela o largo e as ruas desertas, chovia torrencialmente, o relampejar e troar da tempestade cruzava-se com o ribombar dos canhões, estava prisioneiro em casa. Andava num para a frente e para trás à espera de sem saber nem pensar em quê, quando, subitamente, ouço baterem à porta. Antes de abrir, e conforme as regras daqueles tempos, fui à janela ver quem batia. Era Floria. Entrou encharcada,   tinha vindo passar o fim-de-semana com os pais, e, por razões que desconhecia não encontrara ninguém em casa, nem na farmácia. Batera na porta ao lado porque, ao passar defronte da loja, tinha reparado que havia gente lá dentro.   
Voltei a olhar ao lado, o recém-operado pareceu-me desta vez mais interessado na história que lhe contava, mantinha-se na posição em que o tinham colocado, mas os olhos fechados fixaram-se outra vez no tecto quando, momentaneamente, interrompi o relato com a mirada. 
Talvez tenham ido para a igreja. Com todo este estrondear, as pessoas estão agora mais ansiosas e assustadas, e a reunião na igreja dá-lhes talvez aquela réstia de esperança de paz que, isolados, não encontram em casa. Mas está completamente encharcada, precisa de mudar de roupa, disse eu, sem saber o que dizer porque na loja vendíamos fruta, a roupa que havia era a roupa de trabalho, e, mesmo assim para mudar de roupa, o espaço era menos que curto. Pensei sugerir-lhe que subíssemos ao primeiro andar, havia escada de acesso interior, mas não me pareceu que ela aceitasse vestir roupa da mãe, e, então disse-lhe,    tenho aí um chapéu-de-chuva, posso levá-la a casa, mais molhada que o que já está não fica, e livra-se de uma pneumonia, ou coisa parecida, a Floria sabe desse assunto muito mais que eu. Está bem, respondeu ela com um sorriso que me fez estremecer mais que os trovões no céu e os canhões nas montanhas. E lá fomos. Em menos de dez minutos tínhamos atravessado o dilúvio e entrávamos em casa do farmacêutico. Entretanto, eu tinha ficado tão encharcado como ela, apesar de termos reduzido o mais possível o espaço ocupado debaixo do guarda-chuva. Oi!, agora és tu que precisas de mudar de roupa, disse ela, momentos depois de reaparecer com roupa enxuta. Saiu e voltou com cuecas, meias, calças, camisa e casaco, que por ser o farmacêutico mais baixo e mais largo que eu, me vestiram à palhaço pobre com fatiota de palhaço rico. Ela riu-se da minha figura, e eu, a rir-me, caíram-me as calças e as cuecas por serem largas, como já disse. Atrapalhei-me a vestir-me, ela não parava de rir, e, foi mesmo assim, acabámos abraçados por um tempo tão longo que nunca outro me pareceu tão curto. Quando o farmacêutico e a mulher chegaram a casa já eu tinha saído vestido com a minha roupa, meio enxuta com o calor de verão que, apesar da chuva, havia dentro de casa. No dia seguinte, esteve um dia soalheiro, a praia a convidar quem não se assustasse com a guerra a estoirar por perto. Floria tinha prometido ir num talvez fosse até lá, mas não foi. Percorri o dia inteiro as ruas, as lojas, os restaurantes, as igrejas, tudo o que estivesse aberto ao público, mas não a vi. De casa dos pais, vi sair e entrar o farmacêutico às horas habituais para abertura e encerramento da farmácia, vi sair a mãe, vi entrar e sair a empregada, não vi entrar nem sair a Floria. Foi para Bolonha, pensei. Irei ter com ela. Cedo ou tarde, hei-de encontrá-la.
Nova olhadela para o lado, o recém-operado, a olhar fixamente o tecto, não me pareceu enjoado com tanta tagarelice, continuei.
Em Setembro, os confrontos entre o avanço dos aliados e a resistência nazi tinham tornado a circulação de civis entre Rimini e Bolonha uma aventura de alto risco. Adiei dia após dia a ida, o risco era cada vez maior com o avanço dos aliados e a resistência dos nazis onde o terreno lhes garantia ainda alguma protecção. A resistência dos nazis só viria a quebrar-se a partir do fim ano mas a libertação de Bolonha só viria a acontecer na primavera de 45 deixando a violência dos bombardeamentos a cidade destroçada. Só não me atormentava a ideia de lhe ter acontecido na viagem algum mau encontro porque não via na cara do farmacêutico qualquer indício de preocupação.
Um dia, era segunda-feira, esteve a farmácia entregue ao ajudante do farmacêutico porque o licenciado não apareceu durante todo o dia. Ao fim da tarde, entrei na farmácia com a desculpa de comprar uma pomada qualquer que não precisava, e perguntei ao ajudante se tinha acontecido algum impedimento ao farmacêutico. Respondeu-me o homem que não senhor, o senhor doutor estava felicíssimo, durante o fim-de-semana tinha-se casado a filha com um juiz de direito, tinham-se conhecido em Bolonha, ele era uns anos mais velho que ela, mas não muito, o normal entre casais é o homem ser mais velho que a mulher, assim ela tem depois mais tempo para ser viúva. Dito isto, o homem olha para mim com ar espantado, o que é que se passa contigo? sentes-te mal?, senta-te aqui, beba este copo de água, como a coisa não passasse com copos de água e ao ajudante faltasse competência para ir mais longe, fui ao consultório do doutor Gaeta, que, depois de auscultar diagnosticou que não havia falha grave, mas que lhe aparecesse no consultório daí a três meses depois de tomar uma medicação que, se não me fez bem onde devia, me provocou uma diarreia que me obrigou a voltar ao Gaeta antes dos três meses prescritos. Afinal era normal, disse-me que continuasse, a diarreia acabaria por passar. E passou, mas o coração estava abalado para o resto da vida, penso eu, ainda que o doutor Gaeta insista que nem toda a gente nasce com válvulas de primeira.
Inclino-me novamente para o meu vizinho, e vejo-o imperturbável. Prossigo.

Tinham passado sete meses sobre a data do casório quando o farmacêutico voltou a faltar na farmácia, disse-me o ajudante que a filha tivera de ir de urgência para o hospital, tinham-se-lhe rebentado as águas antes de tempo, no dia seguinte estava o farmacêutico onde sempre costumava estar salvo se, por falta de clientela, apurava o brilho de Topolino, a aviar drogas e a receber felicitações por ser avô de um rapaz, prematuro é certo, mas também Napoleão nascera prematuro, e fora imperador em França. E não só Napoleão, quase toda a gente sabia de gente célebre nascida prematuramente, o farmacêutico já dava graças a Deus pelo bom augúrio que prematuridade do neto parecia garantir. Nesse mesmo dia decidi sair de Rimini logo que as condições permitissem. E foi assim que no Verão de 45 comecei a trabalhar num restaurante em Lugano, mais tarde como encarregado, e dono quando o anterior proprietário decidiu vende-lo. Ocasionalmente iam os meus pais e amigos visitar-me em Lugano. Só voltei a semana passada, volta aziaga porque o realejo se foi abaixo outra vez quando saí do notário a recordar as informações do motorista, e fui obrigado a voltar pela terceira vez à oficina. E o senhor, foi a primeira vez que isto lhe aconteceu? perguntei inclinando-me para a direita, quando entrou a enfermeira. 


AÇUCENA

Julho/1950

Ninguém sabe como este quarteto chegou aqui. Como é que ninguém sabe se hoje é sábado, esta loja de mercearia e vinhos aqui em frente está cheia de gente, a outra, ali em cima, está na mesma, no clube, está sempre gente a entrar e a sair? É estranho, é. Eles, a pé não devem ter vindo, não é impossível, mas seria muito difícil. Depende, se não vêm de longe é possível que tenham vindo a pé. De perto não terão vindo, ninguém deu conta de os ter visto nestes últimos tempos nos sítios mais próximos. De comboio, nem pensar, a companhia não aceita o transporte de animais, um cachorrinho pode passar mas uma cabra, é impossível levar uma cabra no comboio. Mas qual é o interesse em saber de onde e como é que vieram aqui parar um homem mal-encarado, uma mulher, por sinal bem jeitosa, um puto e uma cabra, para darem um espectáculo de ilusionismo, é de ilusionismo, não é, foi o que eu ouvi dizer. Pode ter interesse saber de onde eles vêm, sim senhor. Nos tempos que correm, o que por aí não falta é gente para tudo. A começar pelos ciganos. Já alguma vez alguém viu um cigano a trabalhar? Quanto muito, eles fazem uns cestos de verga, elas lêem a sina a quem acredita nessas patranhas, como é que eles vivem se não roubam? E, reparem, ela é vistosa mas tem muito ar de cigana. Cigana, não deve ser. Não há ciganos tresmalhados das caravanas. Pode haver, alguns, poucos é certo, acabam por se fixar à volta de um negócio qualquer. Há ciganos ricos, sabias? Como estes vieram até aqui, não faço ideia nenhuma. A pé, não vieram de certeza, trazem tralha a mais para poderem carregar com ela. Não é assim tanta. Não é?!, já repararam nas malas, duas malas grandes, um banco, a instalação do lampião de carbureto, a cabra, alguém os trouxe. Quem ou trouxe os levará.  
A que horas começa isto? Ouvi dizer que às nove. O puto, o puto não tem mais que dez anos, rufou no tambor há bocado, empinou-se como um galito da índia, e berrou como gente crescida que o espectáculo, “um espectáculo de ilusionismo e destreza, vai começar dentro de meia hora, impreterivelmente às nove em ponto!”. Rufou em quê? Eu não vi tambor nenhum. Essa é boa! Quem é que não ouviu o tambor? Peço desculpa, mas eu não disse que não ouvi um tambor, o que eu disse é que não vi tambor nenhum, não vi tambor mas vi o rapaz com um pau em cada mão a bater como quem bate em tambor mas ele não tinha tambor, de onde vinha o som de um tambor, não sei.
Agora está o homem com metade de cara a instalar a iluminação a carbureto, já temos iluminação pública mas as lâmpadas foram colocadas em postes tão altos e as lâmpadas têm tão poucas velas que, mesmo com o prato de esmalte à volta, a luz chega cá abaixo mais mortiça que a de um candeeiro a petróleo.
Desconhece ainda este artista o truque de sacar electricidade da companhia, é gente honesta ou não tem meios para chegar quase ao topo do poste onde se fixa a lâmpada ou prefere usar o que tem, uma lanterna a carbureto, coisa que a maior parte da assistência desconhece mas que, só por si, cria no ambiente um halo mágico neste começo de noite Verão que nem a electricidade nem o candeeiro a petróleo poderiam oferecer.  
Aí está outra vez o rapaz a rufar no tambor. Ouves?
Senhoras e senhores, vai começar o maior espectáculo do mundo! Às nove em ponto! Impreterivelmente, às nove em ponto, vamos dar início a um espectáculo de ilusionismo, destreza e magia inesquecível! Só paga quem gostar, quem não gostar não paga! Pode ver, se não gostar não paga! Se gostar paga o que entender!
Viste algum tambor? Pois não, só ouvi.  O galito-da-índia empertigou-se outra vez, e bateu com os paus como quem bate em tambor, mas não tinha tambor, é estranho, é mesmo estranho. Não é nada estranho, é ilusionismo, e os paus chamam-se baquetas, fica sabendo. Obrigado pela informação, andamos sempre a aprender, mas donde virá o som de tambor?
Chegara atrasado, o ajuntamento na praça despertara-lhe a curiosidade de ver o que se passava para lá daquela barreira de gente crescida, tão densa que não dava para espreitar de fora. E, a enfiar um braço e depois o outro para abrir caminho por entre as pernas dos homens e mulheres - Hei! Que diabo me está a meter a mão pelas pernas acima? - Chegou-se à frente do círculo que rodeava o mágico, a cigana, o filho da cigana e a cabra, tudo pouco iluminado por uma lanterna de carbureto, e acocorou-se para ver o espectáculo sem incomodar ninguém.
Ele não sabia, só veio a saber depois, que aquele homem franzino, talvez cinquenta e picos anos, óculos grossos, cabelo ralo, e uma cicatriz profunda por onde parecia ter sido retirada uma fatia do lado direito da cara e do queixo, era o mágico, o ilusionista, o artista, nem que aquela mulheraça morena, na casa dos trinta, mais alta e forte que o homem era cigana, nem que o puto agarrado à cabra era filho dela. Nem que a luz da lanterna que iluminava o círculo era de carbureto. Nem tinha ideia, nem poderia ter, porque estava ali, fora da tribo, uma cigana. Sabia que o animal era uma cabra, e podia saber que a mulher era cigana se a sua atenção não se tivesse dirigido toda para as mãos do mágico logo que furou a barreira. A cabra, porque havia uma lá em casa, a cigana porque, de tempos a tempos, acampavam nómadas no campo da bola, ao cabo da rua descendente. E via-os a eles a fazer cestos e elas a venderem-nos e a ler sinas. E até ouvira contar que uma destas ciganas, num fim de tarde de verão, se abeirara de um velho gaiteiro, já bem bebido, que em troca da sina, que lhe dava pouco tempo de vida, lhe afinfou um beijo e não lhe pagou a conta. Morreu o velho nessa mesma tarde, e, por esse ou outro azar, não voltaram os ciganos a acampar no campo da bola, donde não ser tonto de todo concluir-se não serem sempre os prognósticos acertados bons para o futuro dos negócios. Estava ali para ver o que era aquilo, chamado, como todo os outros, pelo rufar do tambor no largo onde se juntavam as três ruas principais do sítio. Acocorado à frente da roda de gente, depressa percebeu que era melhor sentar-se no chão, encolher as pernas, abraçá-las e apoiar o queixo no cruzamento das mãos enquanto ia tentando perceber as manobras do mágico com os baralhos de cartas.
A cada rodada de palmas a premiar cada truque, batia por ver bater, sem perceber patavina do que acontecia acima do nível em que se encontrava. Levantou-se para ver melhor, e ninguém protestou. Agora sim, via bem como o artista maravilhava a assistência com um baralho de cartas, e ouvia os apartes de alguns atrás dele pondo-se a adivinhar os truques do mágico, aquele que estava mesmo atrás dele garantindo ao vizinho do lado que tudo aquilo era jogo combinado. O artista deve ter ouvido o remoque porque se dirigiu logo ao pequeno espectador ali à sua frente.  
Ora aqui temos um senhor espectador insuspeito de me conhecer de algum lado. Que idade tem o nosso amigo? Sete anos. Muito bem. Conhece-me de algum lado? Certamente que não. Pois muito bem. Vou entregar a este senhor que está atrás de si este baralho de cartas, e a quem peço o favor de as baralhar...muito bem …e ao senhor ao lado deste que corte e reúna o baralho... muito bem... Peço agora ao senhor ao lado, o senhor, sim se faz favor, o senhor tira uma carta, uma carta qualquer... ao acaso... mostre  à assistência por favor... é o cinco de copas... o cinco de copas... toda a gente pode ver que é o cinco de copas... um senhor baralhou, outro cortou, outro retirou uma carta ao acaso... que é...toda a gente pode ver... o cinco de copas! Peço agora ao primeiro senhor, que baralhou, que coloque o cinco de copas no baralho, na posição que quiser... E ao senhor, que cortou, que descubra no baralho onde se encontra agora o cinco de copas... ... ... Não encontra? Como é que não encontra se agora mesmo o cinco de copas foi colocado no baralho pelo senhor que baralhou? Peço ao senhor que baralhou e meteu o cinco de copas no baralho se o cinco de copas está ou não está no baralho ... ... ... Não está? Como é que não está se o senhor mesmo meteu lá? … Peço à respeitável assistência um pouco de silêncio, por favor... Alguém sabe onde se encontra o cinco de copas? Onde? Na minha manga? Faça o favor de vir até aqui verificar se tenho alguma carta na minha manga, que é curta, porque está um calor dos diabos... não está! pois não está na manga, porque o cinco de copas está ... faça o favor de ver o nosso pequeno espectador se não lhe terá saído o cinco de copas do rabo?  
Ia indo o largo abaixo com a ovação do público!  
Começou a cigana a ronda pela assistência a recolher algumas moedas mas a retribuição foi escassa, e alguns iam a debandar quando, rufando tambor sem tambor, o rufar vindo não se sabe donde, o filho da cigana anunciou,
agora!!!!, …, berrou e rufou o rapaz, .... vai trabalhar a cabra!!
Ouviu-se novo rufar, agora pianíssimo, a cigana deu um toque no traseiro da cabra, o animal subiu para um banco... e, com ligeira ajuda levantou as patas da frente, mantendo-se de pé, erecto para sermos mais precisos, até, subtilmente, ter recebido indicação para voltar à sua posição natural. Vieram as palmas e muito espanto.
Agora!!!,  mais difícil ainda! rufou piano,  novo toque no traseiro, o caprino ensaiou um coice para trás e ficou em pino! ... E as palmas soltaram-se outra vez com o tamanho do pasmo da assistência.
Retribuiu o animal com encore para definitivo convencimento dos mais incrédulos, que nunca imaginariam um animal, por natureza indomável, sustentar-se, ainda que por breves instantes, com os chifres entre as patas dianteiras.  
Nova ronda de recolha de fundos, mais conseguida desta vez, o público manteve-se firme a aguardar o número final.
Volta a ouvir-se, mas continua-se a não saber-se de onde, o rufar fortíssimo do tambor , aproxima-se o artista da assistência a solicitar que lhe emprestem por momentos uma notas de vinte. Que, garante, serão devolvidas, sem dano algum.  Ninguém tinha notas de vinte. Nem o mágico, confessou ele.  
E moedas de cinco, alguém tem? Se alguém tiver moedas de cinco e as quiser dar a comer à cabra, a cabra promete devolvê-las com juros. Magnífica cabra, que além de se colocar em posição indigna da sua espécie, come notas, ou moedas se não houver notas, e ainda paga juros por cima! Se havia quem tivesse alguma moeda de cinco não arriscou no investimento.  
Sem mais que desse para comer à cabra, pegou o mágico numa folha de jornal, que estaria ali desde o começo do espectáculo, rasgou-a em pedaços que a cabra digeriu com aparente satisfação.  
Senhoras e senhores, pede-se agora o máximo silêncio e a vossa máxima atenção para o milagre, porque é um verdadeiro milagre aquilo que os vossos olhos irão ver, operado por este animal ímpar!
Enquanto o milagre era anunciado, a cigana rodava de novo com a bandeja, e o óbolo crescia desta vez ao lado dos olhos espetados na cabra.  
Pequeno espectador, sabe mungir uma cabra? Não sabe. Alguém, de entre a digníssima assistência, sabe mungir uma cabra? Alguém saberia, mas riu-se como toda a gente.
O senhor aí, que baralhou as cartas e perdeu o cinco de copas, quer fazer o favor de mungir a cabra?  
O senhor aí aceitou o desafio, sentou-se num banco ao lado da cabra, e, a mungi-la para um balde, fez cair no balde, vindo talvez de outro mundo, meia dúzia de notas de vinte, uma fortuna para um saltimbanco.
Pegue nelas, são suas! São suas, mas compromete-se a devolver-me metade depois de as por ao bolso. Valeu?
Valeu. Acontece que ao tirar as notas do bolso para devolver metade, o senhor aí encontrou o bolso vazio. E agora? Agora terá de nos deixar pernoitar em sua casa, uma vez que já é tarde para encontrar pensão.
E foi assim que a trupe da cabra entrou ao serviço do senhor aí,  que tinha estabelecimento de comes e bebes e dois quartos para alugar.
Causou engulhos à mulher do lojista ver subir as escadas que levavam à parte habitacional da casa, no rés-do-chão instalavam-se a mercearia à frente e as bebidas atrás, um pelintra de meia cara, uma fulana bem acabada demais, um puto e uma cabra.
Levou o lojista quase a noite inteira a explicar o que sabia sobre a trupe que se obrigara a acolher em sua casa, e, já de madrugada, concluiu o casal que continuavam com mais dúvidas que certezas. Desde logo, pela Açucena, a cigana. Como é que um fulano sem corpo nem cara inteira tinha palmado uma mulher, que transpirava tentações por todos os poros, a um clã tão móvel quanto hermético, cioso da sua estirpe? Por mais extraordinárias que fossem as habilidades do mágico para iludir o pagode num espectáculo improvisado na rua não era concebível como poderia ter ele metido na manga ou no bolso uma cigana e um filho sem que a tribo andasse no encalço dele. Se calhar anda…, disse a mulher, e o lojista tremeu, mas disfarçou, com a hipótese de um dia destes lhe entrar pela casa dentro uma quadrilha para apagar com sangue uma nódoa daquele tamanho. E a cabra? Já alguma vez se viu dormirem no mesmo quarto um casal, um filho e uma cabra? Não era normal, nada normal mesmo, mas o homem insistira que a cabra era parte da trupe, sem cabra o espectáculo não valeria nem metade, aquela cabra era uma tentação para quem, sendo oficial do mesmo ofício, soubesse que o animal estava ao alcance de um rapto. Além de que, e isso era ainda mais admirável, a Açucena, a mulher, o filho dela e a cabra teriam sido sacados da tribo no mesmo golpe mágico porque a cabra era da Açucena e ele, o artista, de seu só tinha o baralho de cartas. Quanto à cabra pernoitar com eles num dos quartos da casa pode parecer aberrante a gente pouco conhecedora da evolução das relações entre homens e bichos mas há gente que tem animais em casa, gatos, gatos toda a gente tem, cães, sim também cães grandes, não apenas lulus, que dormem na cama com os donos... Que nojo! Pois será, mas uma cabra, não é por ser cabra, sobretudo aquela que é artista, que será menos limpa que um gato, ou um cão, seja ele qual for...
Acabaram por concordar o lojista e a mulher que o melhor seria que a trupe se fosse embora no dia seguinte, na pior das hipóteses ficariam mais um dia num casinhoto, anexo à casa, que vagara recentemente por morte do inquilino.
Sabes, pelo menos, onde é que lhe teriam tirado quase metade da cara e do queixo?
Não, o lojista não fazia a mínima ideia, mas um lanho daqueles não tinha sido certamente obra de naifada em rixa de feira. Ainda não tinha tido tempo para averiguar detalhes da vida do quarteto mas amanhã logo se saberia.

Já alguma vez viu o poço da morte?
Já. O lojista tinha visto uma vez pelo São João, enquanto a mulher e as amigas tinham enfiado para o palácio da bola de cristal, ele e uns compinchas tinham visto "o espectáculo mais arrepiante do mundo".
O agora carto mágico tinha sido durante mais de vinte anos corredor de motos no poço. Fizera par com tipos que embalavam na vertigem da velocidade completamente desprendidos do risco de vida, mas, para além de uma ou outra costela empenada, nunca ele tinha sofrido acidente que o mandasse para o hospital.  
Um dia, apresentou-se ao patrão do poço um rapaz de raça cigana, já conhecido no meio, a oferecer os seus méritos. Foi aceite e, daí a uns dias, já corria comigo no poço. Era um rapaz calmo, ponderado, confiante, sem arriscar para além do risco possível num trabalho daqueles, já vivia com a Açucena há uns tempos largos, esperavam um filho daí a três meses, não bebia álcool, aliás havia um compromisso de honra entre os corredores de mota de não tocarmos nem em álcool nem em drogas. Aquilo que, cá de cima, parece uma loucura de tipos perdidos, é menos arriscado do que parece desde que haja treino e confiança no parceiro.
Até acontecer o insuspeitável, ainda que fossem poucas ou nenhumas as precauções para evitar desastres. Quem se apresentava e mostrava o que valia, se houvesse vaga porque havia público que justificasse, entrava. Avaliação médica? Oh! senhor, aquilo não tinha fiscalização nenhuma. Nem seguro, nem segurança social, nada. O rapaz, que parecia mais calmo que uma pedra, começou a ter crises de nervos, mas isso só se veio a saber mais tarde. Eu nunca dei por qualquer alteração, nem a Açucena alguma vez me alertou de alguma perturbação do companheiro.
Entrámos para o poço, aquecemos os motores, demos umas voltas de ensaio, tudo habitual, e começámos mais uma sessão, estava a galeria à pinha. Como de costume, não podia correr melhor, até ao momento em que, encontrando-nos a rolar a  cruzar, sem saber como nem quando, … quando dei por mim tinha recuperado no hospital de um mês em coma. Com a cara em pior estado que este porque andei mais de um ano em operações em São João.  
Eu sei que as pessoas que assistem ao meu espectáculo geralmente imaginam o que os seus olhos não viram ou a sua atenção não prendeu. Fazem mal, porque nunca acertam e muito raramente as suas soluções andam por perto. Normalmente, o meu trabalho é simples mas requer muito treino. A imaginação daqueles que julgam descortinar soluções inventa-as tão complicadas, que não funcionam. Mas pior que não funcionarem, a preocupação de pretenderem saber como funcionam e porque não funcionam distrai-as do encanto que a magia lhes oferece mas eles não aproveitam. É por isso que os meus melhores espectadores são os que se maravilham com o que vêm sem querer ver o que não conseguem ver.
Presumo que ao meu amigo intriga o facto de um tipo tão estropiado de cara e de corpo como eu tenha por companheira a Açucena, vinte anos mais nova que eu, tão bela e elegante que não é possível que passe despercebida onde quer que se encontre. Presumo que o intrigue a si porque presumo que intrigue toda a gente. E, perante este facto, se interroguem com que artes consegui conquistá-la e, mais difícil que conquistá-la, mantê-la, dando-se ainda o caso de ser Açucena de raça cigana, gente com hábitos e leis próprias que não transigem com as leis e os costumes dos outros, dos gajos. Todos se interrogam e chegam a imaginar golpes de ilusionismo de tal modo intrincados que a mim nunca me passariam pela cabeça nem teria alguma possibilidade de os concretizar. Sei que é assim porque ouço os seus apartes durante o espectáculo ou nas proximidades quando arrumamos a trouxa. Para uns, entrei no acampamento de noite, adormeci o grupo com clorofórmio, e roubei a moça; para outros, hipnotizei-a quando ela me lia sina nas linhas da mão; para outros, a moça tomou droga que a amarrou a mim; a um ouvi cochichar que a moça é minha filha e vivemos em situação de incesto; a outro, que a moça não seria sempre a mesma, seria quem calhava aceitar a troco de umas massas, enfim, a imaginação não tem limites mas a capacidade para imaginar uma boa ideia é rara porque só é boa a ideia se funciona. Muitos, talvez a maior parte, calcula talvez que a Açucena vai com qualquer um, é uma questão de preço, eu sou apenas o último que a cacei com uns cobres até que apareça o próximo a oferecer mais.   
Só quando tomei consciência da situação em que me encontrava quando despertei do coma e, a pouco e pouco, percebi o que a Açucena me contou o que se tinha passado, antes e depois do acidente. O companheiro morrera imediatamente após o embate, eu sobrevivi por um triz, partido dos pés à cabeça, o pescoço enfiado no punho do lado esquerdo da mota.
Quando o casal se apercebeu que alguma coisa não batia certo na cabeça do rapaz, ela tentou convencê-lo a procurar um médico, mas ele rejeitou de forma tão violenta que ela decidiu não lhe falar mais no assunto. Até ao dia em que, pouco antes da refeição da noite, as perturbações nervosas que ele procurava disfarçar deitando-se alegando cansaço, foi acometido por espasmos que o assustaram e decidiu procurar médico. O clínico não teve dúvidas, ele sofria de epilepsia, devia terminar imediatamente as corridas de mota, no poço ou na estrada. Caíra-lhes o mundo em cima e ele não se conformava porque a mota era, mais que o seu ganha-pão, a sua paixão. Como essa paixão começara no dia em que ele abandonara a vida de nómada para trabalhar numa oficina de automóveis, aceitou desistir de correr em motas e voltar a repará-las. Mas depois a paixão falou mais forte que a prudência, e ele continuou a correr, destroçando a consciência de Açucena entre alertar-me, denunciando-o, e, ao denunciá-lo perdê-lo, ou viver na esperança angustiada de que uma crise tanto poderia desmotivá-lo de vez como matá-lo. Tudo dependia da ocasião em que outra inevitável crise ocorresse. Ocorreu naquela tarde em que, estando ele a rolar no elo superior, subitamente perdeu o controlo da moto, deve ter perdido os sentidos, e caiu atravessando-se à minha frente.
A Açucena, desde o dia em que entrei no hospital até ao dia em que saí não arredou pé de lá. Primeiro viveu das esmolas de quem passava, dormia onde a deixavam dormir no recinto do hospital, ofereceram-lhe e ela aceitou de braços abertos a possibilidade de ganhar algum dinheiro a trabalhar nas limpezas, passava todo o tempo que lhe era consentido na enfermaria junto de mim. Quando o filho nasceu, como não era casada, lamentou-se chorosa que o seu filho ficaria registado sem pai. Como não tem pai? Não há ninguém que não tenha pai! 
É da lei deles … 
Fiquei pai do puto. O resto já é fácil de adivinhar. Para onde vá, vão eles. Impossibilitado de voltar a correr, dediquei-me durante o tempo em que permaneci no hospital a trabalhar habilidades de ilusionismo que me atraíram desde muito jovem. E assim começámos a fazer algum dinheiro em feiras, romarias. Depois tornei-me vedor de águas, relojoeiro, electricista, o que for preciso, salvo se for preciso fazer força, porque não tenho. E foi então que começou a magia que intriga toda a gente mas também ainda me intriga a mim. Vezes sem conta pedi a Açucena que não se prendesse a mim, um estropiado de corpo e alma, que não se reconhece a si mesmo se, por acaso, que evito, vejo reflectida a minha imagem. Até que um dia me obrigou a jurar que nunca mais lhe falaria no assunto.
Ficamos em cada localidade pelo tempo que as actividades que posso realizar nos garantirem o sustento. Como vedor de águas, sou muito procurado e, sim, sou normalmente bem sucedido. Não garanto a ninguém a certeza absoluta da existência de água a pouca profundidade, os lençóis de água correm em todo o subsolo, o difícil é determinar a que fundura. Se a reacção magnética é forte, a água corre a pouca profundidade, caso contrário ninguém sabe. Nas horas vagas, como já lhe disse, faço tudo desde que não me exija aquilo que não tenho no corpo, força suficiente. Disse-me que tem vários terrenos onde no Verão se lhe encolhem as colheitas por falta de água. Posso dar-lhe o meu parecer em cada caso. Mas não me julgue mal se por acaso a natureza me troca as voltas, gasta dinheiro para abrir um poço e a água não lhe aparece ou se esgota quando é mais precisa. Ah! Também posso chamar-lhe freguesia à adega com uns truques que os deixarão pasmados. Acredita que consigo fazer saltar de um baralho colocado debaixo do meu pé direito a carta que cada cliente seu pedir? Por cada carta saída, vende o meu amigo uma rodada de vinho à assistência, mas não a mim, que só bebo água. Podemos fazer uma sessão todas os sábados à noite. Vai ter a adega cheia, garanto-lhe. Pense nisso.

Já agora, disse-me que tem um anexo devoluto. Aluga-me esse anexo por três meses, pelo menos?

Thursday, February 23, 2017

O CÉU FICA MAIS PERTO


(clicar na imagem para a ver completa)

A notícia foi divulgada ontem ao fim da tarde, e é uma esperança para aqueles que não acreditam que um dia irão para o céu se se portarem bem na Terra ou comprarem as suficientes indulgências divinas. Podem mudar de planeta. 

Cientistas anunciaram aqui, na Nature a descoberta de sete planetas orbitando uma estrela a não mais que 39 anos luz de distância da Terra. Numa ou noutra há indícios de água - cf. aqui -, e, havendo água, é provável que possa haver vinho. 
De modo que, chegar lá, é uma questão de tempo.  
E tempo é coisa que não falta a quem tem esperança. 
Para quem tem fé, o céu continua mais perto.

DÉFICE MAIS BAIXO, DÍVIDA MAIS ALTA, EM DEMOCRACIA


c/p Jornal de Negócios

(clicar no gráfico para o ver completo)

O anúncio, à espera de confirmação pelo Eurostat, que, à última hora, geralmente acaba sempre por desacertar-nos as contas, de que o défice do ano passado teria ficado em 2,1%, não mereceu reparo da oposição à direita, que prefere continuar a assobiar para o ar o tiroliroliro dos sms trocados com o sr. Domingues. enquanto, não surpreendentemente, o BE critica o governo por não ter gasto tanto quanto poderia ter gasto se não tivesse exagerado nos cortes para situar o défice abaixo das exigências de Bruxelas. 

Por outro lado, o assunto do recorde do défice mais baixo em democracia, foi contestado - cf. aqui, p.e, - com o argumento de que esse recorde ainda estaria no valor atingido em 1989, era ministro das Finanças o sr. Miguel Cadilhe. O gráfico publicado no JNegócios atribui o recorde a Mário Centeno. Por uma ou duas décimas, ainda sujeitas a confirmação do árbitro. 

De qualquer modo, esta é mais uma das recorrentes guerras do alecrim e da manjerona, porque nem as circunstâncias permitem comparações razoáveis nem o problema deste país é o défice mas a dívida incontrolada e os juros que ela continua a parir. Juros que, em termos históricos, nem resultam de taxas elevadas mas do elevadíssimo volume da dívida. 
Quando as taxas subirem, porque um dia destes subirão, o anunciado défice de 2,1% em 2016 será uma recordação do tempo em que, à falta de outros problemas, os sms trocados com o sr. Domingues eram o problema mais intrincado da política à portuguesa.  

Saturday, February 18, 2017

SOBRE O QUE NÃO DISSE CENTENO


As notícias domésticas continuam centradas no que disse o ministro Centeno, que se sobrepõem ao apuramento de outras responsabilidades incomensuravelmente muito mais graves e, deste modo, adiam para as calendas o conhecimento público de quem afundou a Caixa Geral de Depósitos.
No centro da guerrilha partidária, o senhor António Domingues, um banqueiro, e as suas não declarações de rendimentos e patrimónios.
   
Já toda a gente percebeu o que disse Centeno, porque é que Centeno não disse o que não disse, quem sabia o que ele iria dizer, quem preparou a informação que habilitou, mal, Centeno a dizer o que disse por ter assumido compromissos que, legalmente, não poderia ter assumido. O que é que falta saber? Nada.

Falta demitir o ministro, exclama mas não reclama a oposição, com medo de deitar abaixo o governo, e este cair-lhe em cima. 

"Ainda não percebi bem, Caríssimo António, por que é que o Centeno deveria demitir-se, ou ser demitido, e o chefe não. 

A partir do momento em que foi descoberto que uma lei pouco recente, para não lhe chamar antiga, tinha sido ignorada, todo o governo se tornou cúmplice da ausência de verdade. E, mais razoável seria, do meu ponto de vista que o PR tivesse decidido manter o governo em funções "em nome do interesse nacional"



De qualquer modo subscrevo o que sobre o assunto disse M Ferreira Leite: São tricas ...



Com tanta insistência neste assunto até parece que, quanto ao resto, vai tudo bem cá pelo síto." - aqui

"O Centeno varreu muito melhor do que muitos, entre os quais me conto, esperavam. 
Mas a limpeza continua ameçada pelos porcalhões dos banqueiros...
Agora, e há mais tempo do que a nossa paciência deveria ser obrigada a suportar e os nossos bolsos a pagar. 
São raros os dias em que não aparecem mais porcarias banqueiras.

Que este e outros governos tiveram que limpar, e nós que pagar.

Pode, admirável Rita, explicar-me porquê? Por que não foram nem são os banqueiros obrigados a limpar as porcarias que fizeram e continuam a fazer?

A pergunta é ingénua mas a resposta é complicada, não é?" - aqui

Thursday, February 16, 2017

SURREALISMO NORTE- AMERICANO


Chaos
Nothing to See Here

Tim O’Brien 
Time - Feb. 17 cover

Tuesday, February 14, 2017

FROM MOSCOW WITH LOVE


Há algum tempo que os media vinham insistindo na existência de provas que Michael Flynn, "National security adviser" da administração Trump, tinha estabelecido, por conta própria ou a mando de Mr. President Trump, contactos com os serviços homónimos russos antes do presidente ter sido empossado no cargo. Com a troca de informações, que só hoje foi confirmada em Washington DC, Flynn colocou-se em posição vulnerável a chantagem de Moscovo.
Que informações foram trocadas, não se sabe. O que se sabe é que Michael Flynn, cf. aqui,  demitiu-se ontem, por vontade própria ou empurrado pela força de algumas circunstâncias, que ainda subsistem nas instituições democráticas norte-americanas.

Interessante, contudo,  é a notícia publicada hoje aqui dando conta da defesa feroz de Flynn por deputados russos. Um membro da câmara alta da Duma escreveu no facebook:  "Forçar a demissão do conselheiro para a segurança nacional em consequência de contactos com o embaixador da Rússia (uma prática diplomática normal) não é sequer paranóia, mas qualquer coisa imensamente pior. Trump perdeu a oportunidade de afirmar o seu desejo de acabar com a russofobia entre os norte-americanos"

Acontece que Flynn negou durante semanas a existência desses contactos prematuros, que Mr. President não desconhecia. 
Ao fim da tarde de hoje, Trump mostrou-se preocupado por os jornais terem tido conhecimento de que as conversas entre Flynn e os russos tenham existido.

Com quem é que eles teriam ido à pesca?

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Act.- Russia Deploys Missile, Violating Treaty and Challenging Trump
E agora, Donald?



Monday, February 13, 2017

O ERRO SISTEMÁTICO DOS ANALISTAS FINANCEIROS


Pedro Romano comentava, aqui, há dias um artigo do Economist, vd. aqui, revelando o erro sistemático dos analistas nas projecções da evolução dos mercados accionistas e obrigacionistas.  A explicação de PR para uma tendência para errar, que já dura há três décadas, parece-me excessivamente rebuscada e coloquei um comentário que não mereceu acordo nem contestação do autor.

Comentário que, resumidamente, afirma a minha convicção de que as previsões dos analistas financeiros são geralmente optimistas porque esse é o cenário que interessa aos agentes financeiros. 
Hoje, em contraditório com um comentador que afirma "Se o Pedro Romano estiver certo, as instituições vão aperceber-se deste erro sistemático em particular, e alterar as suas previsões em conformidade" acrescentei:

"... nunca vi um vendedor reconhecer que o mercado (de comodities) vai cair, ou continuar a cair, nem nenhum comprador reconhecer que o mercado vai subir, ou continuar a subir. Simplemente reagem de acordo com aquilo que sabem ou pressentem. Salvo se, inside trading, tiram partido de posições privilegiadas...

Pergunte -se a um agente de imobiliário se o mercado está a subir ou a descer,  como comprador. Ou como vendedor, tanto faz. No primeiro caso, o prognóstico é que está a subir. No segundo caso, mais complicado porque mercado em queda não interessa ao negócio do agente, dir-lhe-á reticentemente que está a cair.

Os mercados financeiros não se distinguem muito, neste aspecto, dos mercados de comodities. Os agentes financeiros ganham nas compras e nas vendas mas, obviamente, interessa-lhes mais um mercado vendedor (bull market) que um mercado comprador (bearing market) porque o volume de transacções é, neste último caso, muito menos compensador."

Curiosamente, ou talvez não, porque o que não falta é gente a opinar sobre os mercados financeiros, um opinador no JNegócios - vd. aqui - depois de um circunlóquio disperso, tendo começado por afirmar que é "falta de senso absolouto" investir em dívida pública portuguesa acaba por informar que o que valeu a pena foi investir na bolsa de Paris em 2016. Saberia ele que essa era a melhor e mais segura aposta no começo do ano passado? 
Por que não nos deu uma dica?
Curiosamente no mesmo JNegócios de hoje pode ler-se que "os investidores receiam o efeito Le Pen", e, ainda no mesmo jornal, que "O Frexit poderá custar 80 mil milhões aos franceses"

Quem dá mais?