Julho/1950
Ninguém sabe como
este quarteto chegou aqui. Como é que ninguém sabe se hoje é sábado, esta loja
de mercearia e vinhos aqui em frente está cheia de gente, a outra, ali em cima,
está na mesma, no clube, está sempre gente a entrar e a sair? É estranho, é. Eles,
a pé não devem ter vindo, não é impossível, mas seria muito difícil. Depende,
se não vêm de longe é possível que tenham vindo a pé. De perto não terão vindo,
ninguém deu conta de os ter visto nestes últimos tempos nos sítios mais
próximos. De comboio, nem pensar, a companhia não aceita o transporte de
animais, um cachorrinho pode passar mas uma cabra, é impossível levar uma cabra
no comboio. Mas qual é o interesse em saber de onde e como é que vieram aqui
parar um homem mal-encarado, uma mulher, por sinal bem jeitosa, um puto e uma
cabra, para darem um espectáculo de ilusionismo, é de ilusionismo, não é, foi o
que eu ouvi dizer. Pode ter interesse saber de onde eles vêm, sim senhor. Nos
tempos que correm, o que por aí não falta é gente para tudo. A começar pelos
ciganos. Já alguma vez alguém viu um cigano a trabalhar? Quanto muito, eles
fazem uns cestos de verga, elas lêem a sina a quem acredita nessas patranhas,
como é que eles vivem se não roubam? E, reparem, ela é vistosa mas tem muito ar
de cigana. Cigana, não deve ser. Não há ciganos tresmalhados das caravanas.
Pode haver, alguns, poucos é certo, acabam por se fixar à volta de um negócio
qualquer. Há ciganos ricos, sabias? Como estes vieram até aqui, não faço ideia
nenhuma. A pé, não vieram de certeza, trazem tralha a mais para poderem
carregar com ela. Não é assim tanta. Não é?!, já repararam nas malas, duas
malas grandes, um banco, a instalação do lampião de carbureto, a cabra, alguém
os trouxe. Quem ou trouxe os levará.
A que horas começa
isto? Ouvi dizer que às nove. O puto, o puto não tem mais que dez anos, rufou
no tambor há bocado, empinou-se como um galito da índia, e berrou como gente
crescida que o espectáculo, “um espectáculo de ilusionismo e destreza, vai
começar dentro de meia hora, impreterivelmente às nove em ponto!”. Rufou em
quê? Eu não vi tambor nenhum. Essa é boa! Quem é que não ouviu o tambor? Peço
desculpa, mas eu não disse que não ouvi um tambor, o que eu disse é que não vi
tambor nenhum, não vi tambor mas vi o rapaz com um pau em cada mão a bater como
quem bate em tambor mas ele não tinha tambor, de onde vinha o som de um tambor,
não sei.
Agora está o homem
com metade de cara a instalar a iluminação a carbureto, já temos iluminação
pública mas as lâmpadas foram colocadas em postes tão altos e as lâmpadas têm
tão poucas velas que, mesmo com o prato de esmalte à volta, a luz chega cá
abaixo mais mortiça que a de um candeeiro a petróleo.
Desconhece ainda este
artista o truque de sacar electricidade da companhia, é gente honesta ou não
tem meios para chegar quase ao topo do poste onde se fixa a lâmpada ou prefere
usar o que tem, uma lanterna a carbureto, coisa que a maior parte da
assistência desconhece mas que, só por si, cria no ambiente um halo mágico
neste começo de noite Verão que nem a electricidade nem o candeeiro a petróleo
poderiam oferecer.
Aí está outra vez o
rapaz a rufar no tambor. Ouves?
Senhoras e senhores,
vai começar o maior espectáculo do mundo! Às nove em ponto! Impreterivelmente,
às nove em ponto, vamos dar início a um espectáculo de ilusionismo, destreza e
magia inesquecível! Só paga quem gostar, quem não gostar não paga! Pode ver, se
não gostar não paga! Se gostar paga o que entender!
Viste algum tambor?
Pois não, só ouvi. O galito-da-índia empertigou-se outra vez, e bateu com
os paus como quem bate em tambor, mas não tinha tambor, é estranho, é mesmo
estranho. Não é nada estranho, é ilusionismo, e os paus chamam-se baquetas,
fica sabendo. Obrigado pela informação, andamos sempre a aprender, mas donde
virá o som de tambor?
Chegara atrasado, o
ajuntamento na praça despertara-lhe a curiosidade de ver o que se passava para
lá daquela barreira de gente crescida, tão densa que não dava para espreitar de
fora. E, a enfiar um braço e depois o outro para abrir caminho por entre as
pernas dos homens e mulheres - Hei! Que diabo me está a meter a mão pelas
pernas acima? - Chegou-se à frente do círculo que rodeava o mágico, a cigana, o
filho da cigana e a cabra, tudo pouco iluminado por uma lanterna de carbureto,
e acocorou-se para ver o espectáculo sem incomodar ninguém.
Ele não sabia, só
veio a saber depois, que aquele homem franzino, talvez cinquenta e picos anos,
óculos grossos, cabelo ralo, e uma cicatriz profunda por onde parecia ter sido
retirada uma fatia do lado direito da cara e do queixo, era o mágico, o
ilusionista, o artista, nem que aquela mulheraça morena, na casa dos trinta,
mais alta e forte que o homem era cigana, nem que o puto agarrado à cabra era
filho dela. Nem que a luz da lanterna que iluminava o círculo era de carbureto.
Nem tinha ideia, nem poderia ter, porque estava ali, fora da tribo, uma cigana.
Sabia que o animal era uma cabra, e podia saber que a mulher era cigana se a
sua atenção não se tivesse dirigido toda para as mãos do mágico logo que furou
a barreira. A cabra, porque havia uma lá em casa, a cigana porque, de tempos a
tempos, acampavam nómadas no campo da bola, ao cabo da rua descendente. E
via-os a eles a fazer cestos e elas a venderem-nos e a ler sinas. E até ouvira
contar que uma destas ciganas, num fim de tarde de verão, se abeirara de um
velho gaiteiro, já bem bebido, que em troca da sina, que lhe dava pouco tempo
de vida, lhe afinfou um beijo e não lhe pagou a conta. Morreu o velho nessa
mesma tarde, e, por esse ou outro azar, não voltaram os ciganos a acampar no
campo da bola, donde não ser tonto de todo concluir-se não serem sempre os
prognósticos acertados bons para o futuro dos negócios. Estava ali para ver o
que era aquilo, chamado, como todo os outros, pelo rufar do tambor no largo onde
se juntavam as três ruas principais do sítio. Acocorado à frente da roda de
gente, depressa percebeu que era melhor sentar-se no chão, encolher as pernas,
abraçá-las e apoiar o queixo no cruzamento das mãos enquanto ia tentando
perceber as manobras do mágico com os baralhos de cartas.
A cada rodada de
palmas a premiar cada truque, batia por ver bater, sem perceber patavina do que
acontecia acima do nível em que se encontrava. Levantou-se para ver melhor, e
ninguém protestou. Agora sim, via bem como o artista maravilhava a assistência
com um baralho de cartas, e ouvia os apartes de alguns atrás dele pondo-se a
adivinhar os truques do mágico, aquele que estava mesmo atrás dele garantindo
ao vizinho do lado que tudo aquilo era jogo combinado. O artista deve ter
ouvido o remoque porque se dirigiu logo ao pequeno espectador ali à sua frente.
Ora aqui temos um
senhor espectador insuspeito de me conhecer de algum lado. Que idade tem o
nosso amigo? Sete anos. Muito bem. Conhece-me de algum lado? Certamente que não.
Pois muito bem. Vou entregar a este senhor que está atrás de si este baralho de
cartas, e a quem peço o favor de as baralhar...muito bem …e ao senhor ao lado
deste que corte e reúna o baralho... muito bem... Peço agora ao senhor ao lado,
o senhor, sim se faz favor, o senhor tira uma carta, uma carta qualquer... ao
acaso... mostre à assistência por favor... é o cinco de copas... o cinco
de copas... toda a gente pode ver que é o cinco de copas... um senhor baralhou,
outro cortou, outro retirou uma carta ao acaso... que é...toda a gente pode
ver... o cinco de copas! Peço agora ao primeiro senhor, que baralhou, que
coloque o cinco de copas no baralho, na posição que quiser... E ao senhor, que
cortou, que descubra no baralho onde se encontra agora o cinco de copas... ...
... Não encontra? Como é que não encontra se agora mesmo o cinco de copas foi
colocado no baralho pelo senhor que baralhou? Peço ao senhor que baralhou e
meteu o cinco de copas no baralho se o cinco de copas está ou não está no
baralho ... ... ... Não está? Como é que não está se o senhor mesmo meteu lá? …
Peço à respeitável assistência um pouco de silêncio, por favor... Alguém sabe
onde se encontra o cinco de copas? Onde? Na minha manga? Faça o favor de vir
até aqui verificar se tenho alguma carta na minha manga, que é curta, porque
está um calor dos diabos... não está! pois não está na manga, porque o cinco de
copas está ... faça o favor de ver o nosso pequeno espectador se não lhe terá
saído o cinco de copas do rabo?
Ia indo o largo
abaixo com a ovação do público!
Começou a cigana a
ronda pela assistência a recolher algumas moedas mas a retribuição foi escassa,
e alguns iam a debandar quando, rufando tambor sem tambor, o rufar vindo não se
sabe donde, o filho da cigana anunciou,
agora!!!!, …, berrou
e rufou o rapaz, .... vai trabalhar a cabra!!
Ouviu-se novo rufar,
agora pianíssimo, a cigana deu um toque no traseiro da cabra, o animal subiu
para um banco... e, com ligeira ajuda levantou as patas da frente, mantendo-se
de pé, erecto para sermos mais precisos, até, subtilmente, ter recebido
indicação para voltar à sua posição natural. Vieram as palmas e muito espanto.
Agora!!!, mais
difícil ainda! rufou piano, novo toque no traseiro, o caprino ensaiou um
coice para trás e ficou em pino! ... E as palmas soltaram-se outra vez com o
tamanho do pasmo da assistência.
Retribuiu o animal
com encore para definitivo convencimento dos mais
incrédulos, que nunca imaginariam um animal, por natureza indomável,
sustentar-se, ainda que por breves instantes, com os chifres entre as patas
dianteiras.
Nova ronda de recolha
de fundos, mais conseguida desta vez, o público manteve-se firme a aguardar o
número final.
Volta a ouvir-se, mas
continua-se a não saber-se de onde, o rufar fortíssimo do tambor , aproxima-se
o artista da assistência a solicitar que lhe emprestem por momentos uma notas
de vinte. Que, garante, serão devolvidas, sem dano algum. Ninguém tinha
notas de vinte. Nem o mágico, confessou ele.
E moedas de cinco,
alguém tem? Se alguém tiver moedas de cinco e as quiser dar a comer à cabra, a
cabra promete devolvê-las com juros. Magnífica cabra, que além de se colocar em
posição indigna da sua espécie, come notas, ou moedas se não houver notas, e
ainda paga juros por cima! Se havia quem tivesse alguma moeda de cinco não
arriscou no investimento.
Sem mais que desse
para comer à cabra, pegou o mágico numa folha de jornal, que estaria ali desde
o começo do espectáculo, rasgou-a em pedaços que a cabra digeriu com aparente
satisfação.
Senhoras e senhores,
pede-se agora o máximo silêncio e a vossa máxima atenção para o milagre, porque
é um verdadeiro milagre aquilo que os vossos olhos irão ver, operado por este
animal ímpar!
Enquanto o milagre
era anunciado, a cigana rodava de novo com a bandeja, e o óbolo crescia desta
vez ao lado dos olhos espetados na cabra.
Pequeno espectador,
sabe mungir uma cabra? Não sabe. Alguém, de entre a digníssima assistência,
sabe mungir uma cabra? Alguém saberia, mas riu-se como toda a gente.
O senhor aí, que
baralhou as cartas e perdeu o cinco de copas, quer fazer o favor de mungir a
cabra?
O senhor aí aceitou o
desafio, sentou-se num banco ao lado da cabra, e, a mungi-la para um balde, fez
cair no balde, vindo talvez de outro mundo, meia dúzia de notas de vinte, uma
fortuna para um saltimbanco.
Pegue nelas, são
suas! São suas, mas compromete-se a devolver-me metade depois de as por ao
bolso. Valeu?
Valeu. Acontece que
ao tirar as notas do bolso para devolver metade, o senhor aí encontrou o bolso
vazio. E agora? Agora terá de nos deixar pernoitar em sua casa, uma vez que já
é tarde para encontrar pensão.
E foi assim que a
trupe da cabra entrou ao serviço do senhor aí, que tinha estabelecimento
de comes e bebes e dois quartos para alugar.
Causou engulhos à
mulher do lojista ver subir as escadas que levavam à parte habitacional da
casa, no rés-do-chão instalavam-se a mercearia à frente e as bebidas atrás, um
pelintra de meia cara, uma fulana bem acabada demais, um puto e uma cabra.
Levou o lojista quase
a noite inteira a explicar o que sabia sobre a trupe que se obrigara a acolher
em sua casa, e, já de madrugada, concluiu o casal que continuavam com mais
dúvidas que certezas. Desde logo, pela Açucena, a cigana. Como é que um fulano
sem corpo nem cara inteira tinha palmado uma mulher, que transpirava tentações
por todos os poros, a um clã tão móvel quanto hermético, cioso da sua estirpe?
Por mais extraordinárias que fossem as habilidades do mágico para iludir o
pagode num espectáculo improvisado na rua não era concebível como poderia ter
ele metido na manga ou no bolso uma cigana e um filho sem que a tribo andasse
no encalço dele. Se calhar anda…, disse a mulher, e o lojista tremeu, mas
disfarçou, com a hipótese de um dia destes lhe entrar pela casa dentro uma
quadrilha para apagar com sangue uma nódoa daquele tamanho. E a cabra? Já
alguma vez se viu dormirem no mesmo quarto um casal, um filho e uma cabra? Não
era normal, nada normal mesmo, mas o homem insistira que a cabra era parte da
trupe, sem cabra o espectáculo não valeria nem metade, aquela cabra era uma
tentação para quem, sendo oficial do mesmo ofício, soubesse que o animal estava
ao alcance de um rapto. Além de que, e isso era ainda mais admirável, a
Açucena, a mulher, o filho dela e a cabra teriam sido sacados da tribo no mesmo
golpe mágico porque a cabra era da Açucena e ele, o artista, de seu só tinha o
baralho de cartas. Quanto à cabra pernoitar com eles num dos quartos da casa
pode parecer aberrante a gente pouco conhecedora da evolução das relações entre
homens e bichos mas há gente que tem animais em casa, gatos, gatos toda a gente
tem, cães, sim também cães grandes, não apenas lulus, que dormem na cama com os
donos... Que nojo! Pois será, mas uma cabra, não é por ser cabra, sobretudo
aquela que é artista, que será menos limpa que um gato, ou um cão, seja ele
qual for...
Acabaram por
concordar o lojista e a mulher que o melhor seria que a trupe se fosse embora
no dia seguinte, na pior das hipóteses ficariam mais um dia num casinhoto,
anexo à casa, que vagara recentemente por morte do inquilino.
Sabes, pelo menos,
onde é que lhe teriam tirado quase metade da cara e do queixo?
Não, o lojista não fazia
a mínima ideia, mas um lanho daqueles não tinha sido certamente obra de naifada
em rixa de feira. Ainda não tinha tido tempo para averiguar detalhes da vida do
quarteto mas amanhã logo se saberia.
Já alguma vez viu o
poço da morte?
Já. O lojista tinha
visto uma vez pelo São João, enquanto a mulher e as amigas tinham enfiado para
o palácio da bola de cristal, ele e uns compinchas tinham visto "o
espectáculo mais arrepiante do mundo".
O agora carto mágico
tinha sido durante mais de vinte anos corredor de motos no poço. Fizera par com
tipos que embalavam na vertigem da velocidade completamente desprendidos do
risco de vida, mas, para além de uma ou outra costela empenada, nunca ele tinha
sofrido acidente que o mandasse para o hospital.
Um dia, apresentou-se
ao patrão do poço um rapaz de raça cigana, já conhecido no meio, a oferecer os
seus méritos. Foi aceite e, daí a uns dias, já corria comigo no poço. Era um
rapaz calmo, ponderado, confiante, sem arriscar para além do risco possível num
trabalho daqueles, já vivia com a Açucena há uns tempos largos, esperavam um
filho daí a três meses, não bebia álcool, aliás havia um compromisso de honra
entre os corredores de mota de não tocarmos nem em álcool nem em drogas. Aquilo
que, cá de cima, parece uma loucura de tipos perdidos, é menos arriscado do que
parece desde que haja treino e confiança no parceiro.
Até acontecer o
insuspeitável, ainda que fossem poucas ou nenhumas as precauções para evitar
desastres. Quem se apresentava e mostrava o que valia, se houvesse vaga porque
havia público que justificasse, entrava. Avaliação médica? Oh! senhor, aquilo
não tinha fiscalização nenhuma. Nem seguro, nem segurança social, nada. O
rapaz, que parecia mais calmo que uma pedra, começou a ter crises de nervos,
mas isso só se veio a saber mais tarde. Eu nunca dei por qualquer alteração,
nem a Açucena alguma vez me alertou de alguma perturbação do companheiro.
Entrámos para o poço,
aquecemos os motores, demos umas voltas de ensaio, tudo habitual, e começámos mais
uma sessão, estava a galeria à pinha. Como de costume, não podia correr melhor,
até ao momento em que, encontrando-nos a rolar a cruzar, sem saber como
nem quando, … quando dei por mim tinha recuperado no hospital de um mês em
coma. Com a cara em pior estado que este porque andei mais de um ano em
operações em São João.
Eu sei que as pessoas
que assistem ao meu espectáculo geralmente imaginam o que os seus olhos não
viram ou a sua atenção não prendeu. Fazem mal, porque nunca acertam e muito
raramente as suas soluções andam por perto. Normalmente, o meu trabalho é
simples mas requer muito treino. A imaginação daqueles que julgam descortinar
soluções inventa-as tão complicadas, que não funcionam. Mas pior que não
funcionarem, a preocupação de pretenderem saber como funcionam e porque não
funcionam distrai-as do encanto que a magia lhes oferece mas eles não
aproveitam. É por isso que os meus melhores espectadores são os que se
maravilham com o que vêm sem querer ver o que não conseguem ver.
Presumo que ao meu
amigo intriga o facto de um tipo tão estropiado de cara e de corpo como eu
tenha por companheira a Açucena, vinte anos mais nova que eu, tão bela e
elegante que não é possível que passe despercebida onde quer que se encontre.
Presumo que o intrigue a si porque presumo que intrigue toda a gente. E,
perante este facto, se interroguem com que artes consegui conquistá-la e, mais
difícil que conquistá-la, mantê-la, dando-se ainda o caso de ser Açucena de
raça cigana, gente com hábitos e leis próprias que não transigem com as leis e
os costumes dos outros, dos gajos. Todos se interrogam e chegam a imaginar
golpes de ilusionismo de tal modo intrincados que a mim nunca me passariam pela
cabeça nem teria alguma possibilidade de os concretizar. Sei que é assim porque
ouço os seus apartes durante o espectáculo ou nas proximidades quando arrumamos
a trouxa. Para uns, entrei no acampamento de noite, adormeci o grupo com
clorofórmio, e roubei a moça; para outros, hipnotizei-a quando ela me lia sina
nas linhas da mão; para outros, a moça tomou droga que a amarrou a mim; a um
ouvi cochichar que a moça é minha filha e vivemos em situação de incesto; a
outro, que a moça não seria sempre a mesma, seria quem calhava aceitar a troco
de umas massas, enfim, a imaginação não tem limites mas a capacidade para
imaginar uma boa ideia é rara porque só é boa a ideia se funciona. Muitos,
talvez a maior parte, calcula talvez que a Açucena vai com qualquer um, é uma
questão de preço, eu sou apenas o último que a cacei com uns cobres até que
apareça o próximo a oferecer mais.
Só quando tomei
consciência da situação em que me encontrava quando despertei do coma e, a
pouco e pouco, percebi o que a Açucena me contou o que se tinha passado, antes
e depois do acidente. O companheiro morrera imediatamente após o embate, eu
sobrevivi por um triz, partido dos pés à cabeça, o pescoço enfiado no punho do
lado esquerdo da mota.
Quando o casal se
apercebeu que alguma coisa não batia certo na cabeça do rapaz, ela tentou
convencê-lo a procurar um médico, mas ele rejeitou de forma tão violenta que
ela decidiu não lhe falar mais no assunto. Até ao dia em que, pouco antes da
refeição da noite, as perturbações nervosas que ele procurava disfarçar
deitando-se alegando cansaço, foi acometido por espasmos que o assustaram e
decidiu procurar médico. O clínico não teve dúvidas, ele sofria de epilepsia,
devia terminar imediatamente as corridas de mota, no poço ou na estrada.
Caíra-lhes o mundo em cima e ele não se conformava porque a mota era, mais que
o seu ganha-pão, a sua paixão. Como essa paixão começara no dia em que ele
abandonara a vida de nómada para trabalhar numa oficina de automóveis, aceitou
desistir de correr em motas e voltar a repará-las. Mas depois a paixão falou
mais forte que a prudência, e ele continuou a correr, destroçando a consciência
de Açucena entre alertar-me, denunciando-o, e, ao denunciá-lo perdê-lo, ou
viver na esperança angustiada de que uma crise tanto poderia desmotivá-lo de
vez como matá-lo. Tudo dependia da ocasião em que outra inevitável crise
ocorresse. Ocorreu naquela tarde em que, estando ele a rolar no elo superior,
subitamente perdeu o controlo da moto, deve ter perdido os sentidos, e caiu
atravessando-se à minha frente.
A Açucena, desde o
dia em que entrei no hospital até ao dia em que saí não arredou pé de lá.
Primeiro viveu das esmolas de quem passava, dormia onde a deixavam dormir no
recinto do hospital, ofereceram-lhe e ela aceitou de braços abertos a
possibilidade de ganhar algum dinheiro a trabalhar nas limpezas, passava todo o
tempo que lhe era consentido na enfermaria junto de mim. Quando o filho nasceu,
como não era casada, lamentou-se chorosa que o seu filho ficaria registado sem
pai. Como não tem pai? Não há ninguém que não tenha pai!
É da lei deles …
Fiquei pai do puto. O
resto já é fácil de adivinhar. Para onde vá, vão eles. Impossibilitado de
voltar a correr, dediquei-me durante o tempo em que permaneci no hospital a
trabalhar habilidades de ilusionismo que me atraíram desde muito jovem. E assim
começámos a fazer algum dinheiro em feiras, romarias. Depois tornei-me vedor de
águas, relojoeiro, electricista, o que for preciso, salvo se for preciso fazer
força, porque não tenho. E foi então que começou a magia que intriga toda a
gente mas também ainda me intriga a mim. Vezes sem conta pedi a Açucena que não
se prendesse a mim, um estropiado de corpo e alma, que não se reconhece a si
mesmo se, por acaso, que evito, vejo reflectida a minha imagem. Até que um dia
me obrigou a jurar que nunca mais lhe falaria no assunto.
Ficamos em cada
localidade pelo tempo que as actividades que posso realizar nos garantirem o
sustento. Como vedor de águas, sou muito procurado e, sim, sou normalmente bem
sucedido. Não garanto a ninguém a certeza absoluta da existência de água a
pouca profundidade, os lençóis de água correm em todo o subsolo, o difícil é
determinar a que fundura. Se a reacção magnética é forte, a água corre a pouca
profundidade, caso contrário ninguém sabe. Nas horas vagas, como já lhe disse,
faço tudo desde que não me exija aquilo que não tenho no corpo, força
suficiente. Disse-me que tem vários terrenos onde no Verão se lhe encolhem as
colheitas por falta de água. Posso dar-lhe o meu parecer em cada caso. Mas não
me julgue mal se por acaso a natureza me troca as voltas, gasta dinheiro para
abrir um poço e a água não lhe aparece ou se esgota quando é mais precisa. Ah!
Também posso chamar-lhe freguesia à adega com uns truques que os deixarão
pasmados. Acredita que consigo fazer saltar de um baralho colocado debaixo do
meu pé direito a carta que cada cliente seu pedir? Por cada carta saída, vende
o meu amigo uma rodada de vinho à assistência, mas não a mim, que só bebo água.
Podemos fazer uma sessão todas os sábados à noite. Vai ter a adega cheia,
garanto-lhe. Pense nisso.
Já agora, disse-me
que tem um anexo devoluto. Aluga-me esse anexo por três meses, pelo menos?