- Ricci, tens andado a fazer asneiras. Estas análises estão uma vergonha. Tens de ir outra vez à oficina, Ricci. Avisei-te que tinhas de mudar de vida mas foi o mesmo que nada.
O doutor Riosa ainda
não me conhece bem depois de três décadas de consultas periódicas. Faz agora
dez anos que entrei no consultório convencido, como de costume, que estava como
novo e saí de lá com diagnóstico reservado: temos de fazer mais umas análises,
Ricci, mas suspeito que tenhas de colocar uma válvula. Ia morrendo com a ameaça
mas aguentei e, passado um mês, tinha uma válvula nova. E o calvário de ter de
o consultar de três em três meses.
- Ricci, está tudo
bem mas tens de ter mais juízo: menos gula e mais exercício.
Até à semana passada.
Avariou a válvula de um momento para o outro? Não Ricci, nada avaria de um
momento para o outro. Avaria-se a pouco e pouco, e um dia, zás!, tem um colapso.
Ia morrendo pela
segunda vez. Subitamente, senti-me terrivelmente cansado, incapaz de voltar
para casa. A muito custo lá me recompus.
Tinha eu contado uma história quando
entrou a enfermeira para a visita de rotina. Contrariamente ao que me
habituara, então como vai hoje o nosso doentinho, passou bem a noite, como é
que se sente, dirigiu-se à cama do lado, nem bons dias nem boas noites, correu
os cortinados separadores, esteve lá dentro uns instantes, e saiu apressada de
modo nada habitual. Na expectativa do que teria motivado uma saída tão
repentina da senhora enfermeira, apressou-se-me o coração mas nenhum dos outros
sensores reclamou estado de emergência. A válvula tinha sido submetida ao
primeiro ensaio de stress e respondia bem ao esforço súbito que lhe tinha sido
pedido. No dia seguinte, o mais tardar dois dias, seria devolvido ao mundo
depois de uns dias de encarceramento forçado.
Instantes depois,
entrou apressado o interno, seguido da enfermeira, para além dos cortinados
corridos. Durante uns momentos largos não surgiram do outro lado nem notícias
nem sussurros sequer. Aumentou-se-me o ritmo cardíaco mas a válvula continuou a
portar-se bem. A um silêncio absoluto respondia garbosamente a minha válvula.
Um ou dois minutos depois da entrada do interno e da enfermeira, apareceu à
porta apressado o médico assistente: il
giudice é morto, disse o
interno em voz baixa mas eu ouvi sem dificuldade. O coração tinha entretanto
abrandado a carreira e a válvula, estou certo, lá dentro já ninguém dava por
ela.
Pressenti depois que
conferenciavam, mas desta vez, mesmo de ouvido sintonizado naquele comprimento
de onda, não conseguia ouvir fosse o que fosse. Da conferência em segredo deve
ter saído ordem para me anteciparem o passeio matinal porque a enfermeira, sem
conseguir esconder a perturbação que a levara a esquecer-se de me dar os bons
dias, me disse, signor Ricci hoje vamos começar o nosso passei
matinal mais cedo, agrada-lhe? Se me agradava… Melhor ainda: iria tomar o
pequeno-almoço fora do quarto.
Já no corredor,
pergunta-me a enfermeira se o meu parceiro de quarto tinha tido uma noite
sossegada. Sossegadíssima, respondi-lhe, não lhe ouvi a mínima queixa desde que
o tinham trazido para o quarto deviam ser umas seis da manhã, não? Sim, sim,
eram seis e pouco, confirmou a enfermeira. Já não consegui dormir mais. Aliás,
acordo normalmente cedo, seis, seis e meia, e depois não durmo mais.
A enfermeira tinha-me
informado à hora de jantar da noite anterior que, como o hospital estava cheio
e eu iria sair no dia seguinte, ou no outro, o mais tardar, iriam colocar na
cama ao lado um doente com coração transplantado que se encontrava nos cuidados
intensivos pós-operatórios. Disse-lhe que até ficava satisfeito por poder ter
alguém ao lado com quem falar. Mas com calma, tranquilamente, nada de futebol
ou política, o signor Ricci não se esqueça que foi operado há três
dias e este doente que virá fazer-lhe companhia tem um coração novo há
apenas dois. OK, nada de futebol nem política. Religião? Também não convém signor Ricci, infelizmente nem
em nome de Deus, que é omnipotente e omnipresente, os homens deixam de se matar.
E foi assim que o do
coração novo passou a meu companheiro de quarto a partir das seis e pouco da
manhã seguinte.
Após coisa de um
quarto de hora de silêncio absoluto, os dois a olhar o tecto comum, eu já
pensava em tudo menos na válvula, arrisquei um bate-papo, ameno conforme a
prescrição da enfermeira, sem futebol, nem política, nem religião, um tema
trivial, o passado, que é o que mais têm os que já têm uma certa idade. Falar
do passado é tão trivial entre os mais velhos como beberem sofregamente o
presente os que são mais novos. E, porque não nos conhecíamos, abriram-se-me
inconscientemente os arquivos secretos da memória.
O senhor é de Rimini,
suponho, comecei por dizer para dizer alguma coisa. Nem chus nem bus, O do
coração novo se ainda estava lá não dei por isso. Olhei-o pelo canto do olho e
vi que permanecia imóvel, tal qual o haviam deixado, a cabeça puxada para trás,
os olhos abertos, a boca contraída. Parecia absorto, tossicou pouco depois. De
qualquer modo receei que não se sentisse bem, e insisti: Que tal se sente com esse coração novo?
Uma maravilha, não? Eu, que só substituí uma válvula, recuperei vinte anos,
pelo menos, penso eu.
Nada. O do coração
novo continuava aparentemente meio atordoado. Insisti na tentativa de diálogo:
Estou a incomodá-lo? no,
no, no, murmurou ele com uma
entoação cooperativa. Entendi: pode continuar, e continuei. Como tinha
sido intervencionado há muito menos tempo que eu, fiz a honras de toda a
conversa, o do coração novo ouvia atentamente, tossicava raramente e mais
raramente ainda lá vinha com o cooperativo no,
no, no se eu lhe perguntava se a conversa o incomodava.
Há quarenta anos que
não vinha a Rimini, sabe? Si,
si, si, murmurava ele.
Emigrei e proibi-me de voltar a passar o Rubicão. Mas a Mãe morreu, faz agora
dez anos, a casa estava abandonada e em ruínas, os do município intimaram-me a
vender, doar, ou fazer obras. Cheguei há uma semana mas levei uns meses a
preparar a viagem. Vou hoje, vou amanhã, o que mais me apetecia, francamente,
era cumprir o que jurara e nunca mais aqui pôr os pés. Mas já que tinha de vir,
viria para vender a casa mas também para estar com os que não via há tanto
tempo. E, sem fazer contas às consequências do passar do tempo, carreguei
comigo lembranças para toda a gente de que me lembrei. Canivetes par os homens,
chocolates para as senhoras e os mais pequenos. Nada menos que dois quilos de
chocolate, está a ver o exagero? O do coração novo voltou a reagir do mesmo modo: si, si, si. E eu continuei.
Vim no comboio, que
chegou a Rimini já era noite. Hospedei-me no hotel junto à estação, jantei e já
não saí. Sentia-me cansado e, mais que cansado, preocupado com o confronto que
o dia seguinte me reservava entre as minhas expectativas e a realidade do mundo
em que nascera e crescera. Quantos daqueles que tinham ficado se manteriam ali
ainda de pé? Dormi mal. Pior que dormir mal, a imaginação à solta levantou
fervura e deitou fora qualquer provável realidade. Quando me levantei, eram
sete da manhã, estava mais extenuado do que quando me deitei. Si, si, si, balbuciou o do coração novo.
Quando desci para o
pequeno-almoço, o padeiro ainda não tinha chegado. Atirei-me esfomeado ao pão
duro da véspera, que com duas tiras de queijo e um café não me tiraram uma
sensação de esgotamento físico que nunca tinha experimentado. Voltei ao quarto
com a intenção de tentar dormir um pouco, estendi-me durante dez, quinze
minutos, mas nem o sono chegava nem o cansaço se ia. Desci e saí à procura de
um táxi que me levasse ao bairro da minha infância. A viagem demorou dez
minutos, se tanto.
Quando chegámos foi
preciso o taxista dizer, cá estamos, para me aperceber que tinha chegado a um
mundo muito diferente daquele que tinha abandonado. Ainda lá está o café onde
nos juntávamos mas o sol nado já não aparece na praça por detrás dele.
Levantaram-lhe atrás torres de apartamentos que tornam o sítio irreconhecível
ao fim destes anos todos. Entrei no café, ninguém visível. Está alguém em casa?
perguntei alto. Apareceu-me uma rapariguita com ar de felosa assustada, à
espera de ordens. Para justificar a entrada pedi um café duplo. Melhor, muito
melhor do que o de há quarenta anos que, de resto, naquele tempo, não havia,
nem bom nem mau. Eram tempos do diabo … si,
si, si, disse o do coração
novo, e fiquei espantado com tanta atenção.
Tempos de candonga.
Lembra-se da candonga? O do coração novo não respondeu à primeira. Do azeite? Si, si, si. Do racionamento? Meio litro por
família por mês. Mas arranjava-se mais na candonga. Saía-se à noite, quando já
ninguém andava na rua, a menos andasse ao mesmo, e íamos buscá-lo onde o tinham
enterrado para fugir à expropriação. Hoje cinco, amanhã dez litros, ia para
uma talha de onde o tirávamos por uma torneira à medida que o consumíamos.
Naquele tempo não podíamos passar sem azeite. Um dia diz o Pai: Este azeite tem
uma acidez esquisita. Já todos lá em casa tínhamos dado por ela mas ninguém falara.
Naquele tempo, comer e calar era a regra de ouro para sobreviver. Mas se o Pai
dizia… Concordámos que, sim senhor, o sabor daquele azeite já não era o que
tinha sido e, pior que isso, piorava de dia para dia. Mas, enquanto durou,
bebeu-se. Quando acabou, a Mãe ao lavar a talha encontrou no fundo um rato
morto. Felizmente o azeite já tinha sido todo bebido… si, si, si, O do coração novo continuava à
escuta.
Dava eu uma vista de
olhos pelo jornal, apareceu-me um rapaz do meu tempo. Reconheci-o pelo andar e
depois pela voz. Não se lembrava de mim mas, mesmo assim, levou o primeiro
canivete. Ficou encantado com o brinde e disposto a servir-me de guia naquele
território desconhecido. Perguntei-lhe pela gente do meu tempo. Fulano? Já
morreu. E Beltrano? Desse não me lembro, mas, se não morreu, já cá não vive há
muito. E Sicrano? Ui! Esse desapareceu com os boches. E… E… E…? Morreram já.
E…? Foi a enterrar a semana passada. Homens e mulheres do meu tempo se não
tinham morrido ou emigrado tinham desaparecido no vendaval da guerra. Sobrava
aquele. Dei-lhe mais cinco canivetes e dez embalagens de chocolate para os
netos. Não tinha netos. Então come-os tu, que eu como o resto.
E da Floria,
lembras-te da Floria? Que é feito dela? A mulher do Juiz? Morreu. Morreu? Ah morreu
há muitos anos já. Si, si ,
si, sussurrou outra vez o do
coração novo. Era uma mulher linda … O meu guia assobiou. Mas, morreu como? Ora
morreu, … se bem me lembro, morreu de parto. Teve um filho e seis filhas,
morreu, era nova ainda. Era a mulher do juiz. Dizem que o juiz queria à viva
força fazer um filho à Floria, tanto experimentou que a matou. Mas ele tinha um
filho, disseste tu. Pois tinha, era o mais velho. Mas ali havia coisa, sabes? O
juiz olhava para o rapaz e não se via ao espelho. Que é feito dele? Não sei. E
o Juiz? Dizem que o Juiz anda para aí à espera que o chamem para uma operação.
Espreito o do coração novo e não lhe vejo reacção notável. Prossigo.
Senti-me abalado,
quase culpado por ser sobrevivente. O meu guia, a quem não cheguei a perguntar
o nome por vergonha de não me recordar dele, olhou-me desconfiado e
perguntou-me: sentes-te mal? Não, respondi, já passa. Reclinei-me na cadeira,
cerrei os olhos, e mantive-me assim por tempo suficiente para juntar à minha
volta meia dúzia de curiosos que, entretanto, tinham entrado no café, e
começaram a dar palpites. Quando me julguei razoavelmente recomposto
levantei-me e fui até à rua apanhar ar. Vem daí, disse ao meu guia, vem comigo
até ao notário. Sabes onde fica? Lá fomos.
No notário já tinha o
comprador da casa à minha espera. Tinha incumbido da venda uma agência local,
não iria ver a casa, estava em escombros, há muitos anos que a Mãe a abandonara
por ser demasiado grande para uma pessoa só. Por outro lado, sentia-me
demasiado debilitado fisicamente e psicologicamente deprimido para visitar a
casa onde nascera e tinha vindo ali para vender. Cumpridas as formalidades,
agradeci ao meu guia e voltei para o hotel. Almocei e subi para o quarto para
descansar.
Mas não descansei.
Quanto mais tentava evitar a projecção do filme mais se desenrolava a bobina
que começara a rodar perto dali há quarenta anos. Estávamos em 44, eu tinha na
altura dezassete anos e ia começar o primeiro ano de Química em Bolonha.
Escapei por pouco ao recrutamento. Os boches tinham sido obrigados a abandonar
Florença em Junho, a meio de Setembro havia bombardeamentos a Sul de Rimini, a
comida esgotava-se em todas as casas, a água e a luz apareciam de quando em
vez, as pessoas procuravam refúgio no campo e nos montes mais próximos, longe,
pensavam elas, dos alvos do tiroteio. Na última semana de Setembro, chovia que
chovia, entraram em Rimini tropas gregas e, dali até Bolonha, os tanques foram
a vedeta dos combates. Si, si,
si, voltava a concordar
comigo o do coração novo.
De papo para o ar e
de olhos cerrados como agora me encontro, à medida que desbobinava a minha
história comia os chocolates que não tinham encontrado o destinatário, e que
eram quase todos. Naquela noite, devo ter ingerido meio quilo de chocolates.
Aqui, o do coração novo voltou a cabeça para o lado onde me encontrava e
sorriu, simpático. Depois voltou à posição inicial, a cabeça puxada para trás,
a boca serrada, o olhar fixo no tecto.
Tínhamos um lugar de
fruta no rés-do-chão da casa onde vivíamos. No rés-do-chão ao lado era a
farmácia, mas o farmacêutico e família habitavam uma moradia a uns quarteirões
dali. Entre ambos os edifícios havia as entradas, separadas por um muro baixo,
para pequenos logradouros onde do nosso lado se cultivavam legumes e criavam galinhas.
O farmacêutico parqueava no seu um Fiat Topolino azul, o único que se via em
toda a rua, que era o seu encanto e mirava-o de todos os ângulos. Passava as
tardes a limpar-lhe o pó quando não aparecia ninguém para aviar na farmácia.
Mas o que o farmacêutico tinha de mais precioso era a filha, a Floria. Mais
velha que eu, dois ou três anos, era a minha paixão, secreta, porque jamais
teria coragem para lhe dizer isso mesmo. Não só por ser mais novo, e naquela
idade a diferença conta mais que a conta, mas porque ela era a filha do
farmacêutico e, eu, o filho dos do lugar da fruta.
Quando as informações
da aproximação das tropas aliadas chegam a Rimini, Floria já estudava Farmácia
em Bolonha há três anos. Raramente a via, ultimamente.
Embalado nas minhas recordações,
só quando aqui cheguei voltei o olhar para o recém-operado, que continuava
imperturbável a olhar o tecto. Receio que esteja a incomodar …é melhor
calar-me, não? No, no, no, sussurrou ele, e eu continuei a
desbobinar o filme arquivado há quarenta anos atrás.
Numa tarde de um
fim-de-semana de Agosto de 44, toda a família tinha ido para a igreja, eu
ficara na loja a tentar desiludir algum assalto, teria exames de admissão em
Bolonha daí a dias, que muito provavelmente seriam adiados pela aproximação dos
confrontos pela ocupação de Rimini, mas a ouvir à distância o ribombar da
artilharia dos exércitos aliados a tentar desalojar os nazis das
fortalezas naturais que os protegia, quem é que conseguia concentrar-se nos
meandros da Química? Sentava-me, levantava-me, espreitava pela janela o largo e
as ruas desertas, chovia torrencialmente, o relampejar e troar da tempestade
cruzava-se com o ribombar dos canhões, estava prisioneiro em casa. Andava num
para a frente e para trás à espera de sem saber nem pensar em quê, quando,
subitamente, ouço baterem à porta. Antes de abrir, e conforme as regras
daqueles tempos, fui à janela ver quem batia. Era Floria. Entrou encharcada,
tinha vindo passar o fim-de-semana com os pais, e, por razões que
desconhecia não encontrara ninguém em casa, nem na farmácia. Batera na porta ao
lado porque, ao passar defronte da loja, tinha reparado que havia gente lá
dentro.
Voltei a olhar ao
lado, o recém-operado pareceu-me desta vez mais interessado na história que lhe
contava, mantinha-se na posição em que o tinham colocado, mas os olhos fechados
fixaram-se outra vez no tecto quando, momentaneamente, interrompi o relato com
a mirada.
Talvez tenham ido para a
igreja. Com todo este estrondear, as pessoas estão agora mais ansiosas e
assustadas, e a reunião na igreja dá-lhes talvez aquela réstia de esperança de
paz que, isolados, não encontram em casa. Mas está completamente encharcada,
precisa de mudar de roupa, disse eu, sem saber o que dizer porque na loja
vendíamos fruta, a roupa que havia era a roupa de trabalho, e, mesmo assim para
mudar de roupa, o espaço era menos que curto. Pensei sugerir-lhe que subíssemos
ao primeiro andar, havia escada de acesso interior, mas não me pareceu que ela
aceitasse vestir roupa da mãe, e, então disse-lhe, tenho aí
um chapéu-de-chuva, posso levá-la a casa, mais molhada que o que já está não
fica, e livra-se de uma pneumonia, ou coisa parecida, a Floria sabe desse
assunto muito mais que eu. Está bem, respondeu ela com um sorriso que me fez
estremecer mais que os trovões no céu e os canhões nas montanhas. E lá fomos.
Em menos de dez minutos tínhamos atravessado o dilúvio e entrávamos em casa do
farmacêutico. Entretanto, eu tinha ficado tão encharcado como ela, apesar de
termos reduzido o mais possível o espaço ocupado debaixo do guarda-chuva. Oi!,
agora és tu que precisas de mudar de roupa, disse ela, momentos depois de
reaparecer com roupa enxuta. Saiu e voltou com cuecas, meias, calças, camisa e
casaco, que por ser o farmacêutico mais baixo e mais largo que eu, me vestiram
à palhaço pobre com fatiota de palhaço rico. Ela riu-se da minha figura, e eu,
a rir-me, caíram-me as calças e as cuecas por serem largas, como já disse.
Atrapalhei-me a vestir-me, ela não parava de rir, e, foi mesmo assim, acabámos
abraçados por um tempo tão longo que nunca outro me pareceu tão curto. Quando o farmacêutico e a mulher chegaram a
casa já eu tinha saído vestido com a minha roupa, meio enxuta com o calor de
verão que, apesar da chuva, havia dentro de casa. No dia seguinte, esteve um
dia soalheiro, a praia a convidar quem não se assustasse com a guerra a
estoirar por perto. Floria tinha prometido ir num talvez fosse até lá, mas não
foi. Percorri o dia inteiro as ruas, as lojas, os restaurantes, as igrejas,
tudo o que estivesse aberto ao público, mas não a vi. De casa dos pais, vi sair
e entrar o farmacêutico às horas habituais para abertura e encerramento da
farmácia, vi sair a mãe, vi entrar e sair a empregada, não vi entrar nem sair a
Floria. Foi para Bolonha, pensei. Irei ter com ela. Cedo ou tarde, hei-de
encontrá-la.
Nova olhadela para o
lado, o recém-operado, a olhar fixamente o tecto, não me pareceu enjoado com tanta
tagarelice, continuei.
Em Setembro, os
confrontos entre o avanço dos aliados e a resistência nazi tinham tornado a
circulação de civis entre Rimini e Bolonha uma aventura de alto risco. Adiei
dia após dia a ida, o risco era cada vez maior com o avanço dos aliados e a
resistência dos nazis onde o terreno lhes garantia ainda alguma protecção. A
resistência dos nazis só viria a quebrar-se a partir do fim ano mas a
libertação de Bolonha só viria a acontecer na primavera de 45 deixando a
violência dos bombardeamentos a cidade destroçada. Só não me atormentava a
ideia de lhe ter acontecido na viagem algum mau encontro porque não via na cara
do farmacêutico qualquer indício de preocupação.
Um dia, era
segunda-feira, esteve a farmácia entregue ao ajudante do farmacêutico porque o
licenciado não apareceu durante todo o dia. Ao fim da tarde, entrei na farmácia
com a desculpa de comprar uma pomada qualquer que não precisava, e perguntei ao
ajudante se tinha acontecido algum impedimento ao farmacêutico. Respondeu-me o
homem que não senhor, o senhor doutor estava felicíssimo, durante o
fim-de-semana tinha-se casado a filha com um juiz de direito, tinham-se
conhecido em Bolonha, ele era uns anos mais velho que ela, mas não muito, o
normal entre casais é o homem ser mais velho que a mulher, assim ela tem depois
mais tempo para ser viúva. Dito isto, o homem olha para mim com ar espantado, o
que é que se passa contigo? sentes-te mal?, senta-te aqui, beba este copo de
água, como a coisa não passasse com copos de água e ao ajudante faltasse
competência para ir mais longe, fui ao consultório do doutor Gaeta, que, depois
de auscultar diagnosticou que não havia falha grave, mas que lhe aparecesse no
consultório daí a três meses depois de tomar uma medicação que, se não me fez bem
onde devia, me provocou uma diarreia que me obrigou a voltar ao Gaeta antes dos
três meses prescritos. Afinal era normal, disse-me que continuasse, a diarreia
acabaria por passar. E passou, mas o coração estava abalado para o resto da
vida, penso eu, ainda que o doutor Gaeta insista que nem toda a gente nasce com
válvulas de primeira.
Inclino-me novamente
para o meu vizinho, e vejo-o imperturbável. Prossigo.
Tinham passado sete
meses sobre a data do casório quando o farmacêutico voltou a faltar na farmácia,
disse-me o ajudante que a filha tivera de ir de urgência para o hospital,
tinham-se-lhe rebentado as águas antes de tempo, no dia seguinte estava o
farmacêutico onde sempre costumava estar salvo se, por falta de clientela,
apurava o brilho de Topolino, a aviar drogas e a receber felicitações por ser
avô de um rapaz, prematuro é certo, mas também Napoleão nascera prematuro, e
fora imperador em França. E não só Napoleão, quase toda a gente sabia de gente
célebre nascida prematuramente, o farmacêutico já dava graças a Deus pelo bom
augúrio que prematuridade do neto parecia garantir. Nesse mesmo dia decidi sair
de Rimini logo que as condições permitissem. E foi assim que no Verão de 45
comecei a trabalhar num restaurante em Lugano, mais tarde como encarregado, e
dono quando o anterior proprietário decidiu vende-lo. Ocasionalmente iam os
meus pais e amigos visitar-me em Lugano. Só voltei a semana passada, volta
aziaga porque o realejo se foi abaixo outra vez quando saí do notário a
recordar as informações do motorista, e fui obrigado a voltar pela terceira vez
à oficina. E o senhor, foi a primeira vez que isto lhe aconteceu? perguntei
inclinando-me para a direita, quando entrou a enfermeira.
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