Monday, February 27, 2017

SEM CULPA



- Ricci, tens andado a fazer asneiras. Estas análises estão uma vergonha. Tens de ir outra vez à oficina, Ricci. Avisei-te que tinhas de mudar de vida mas foi o mesmo que nada.
O doutor Riosa ainda não me conhece bem depois de três décadas de consultas periódicas. Faz agora dez anos que entrei no consultório convencido, como de costume, que estava como novo e saí de lá com diagnóstico reservado: temos de fazer mais umas análises, Ricci, mas suspeito que tenhas de colocar uma válvula. Ia morrendo com a ameaça mas aguentei e, passado um mês, tinha uma válvula nova. E o calvário de ter de o consultar de três em três meses.
- Ricci, está tudo bem mas tens de ter mais juízo: menos gula e mais exercício.
Até à semana passada. Avariou a válvula de um momento para o outro? Não Ricci, nada avaria de um momento para o outro. Avaria-se a pouco e pouco, e um dia, zás!, tem um colapso.
Ia morrendo pela segunda vez. Subitamente, senti-me terrivelmente cansado, incapaz de voltar para casa. A muito custo lá me recompus.
Tinha eu contado uma história quando entrou a enfermeira para a visita de rotina. Contrariamente ao que me habituara, então como vai hoje o nosso doentinho, passou bem a noite, como é que se sente, dirigiu-se à cama do lado, nem bons dias nem boas noites, correu os cortinados separadores, esteve lá dentro uns instantes, e saiu apressada de modo nada habitual. Na expectativa do que teria motivado uma saída tão repentina da senhora enfermeira, apressou-se-me o coração mas nenhum dos outros sensores reclamou estado de emergência. A válvula tinha sido submetida ao primeiro ensaio de stress e respondia bem ao esforço súbito que lhe tinha sido pedido. No dia seguinte, o mais tardar dois dias, seria devolvido ao mundo depois de uns dias de encarceramento forçado.
Instantes depois, entrou apressado o interno, seguido da enfermeira, para além dos cortinados corridos. Durante uns momentos largos não surgiram do outro lado nem notícias nem sussurros sequer. Aumentou-se-me o ritmo cardíaco mas a válvula continuou a portar-se bem. A um silêncio absoluto respondia garbosamente a minha válvula. Um ou dois minutos depois da entrada do interno e da enfermeira, apareceu à porta apressado o médico assistente: il giudice é morto, disse o interno em voz baixa mas eu ouvi sem dificuldade. O coração tinha entretanto abrandado a carreira e a válvula, estou certo, lá dentro já ninguém dava por ela.
Pressenti depois que conferenciavam, mas desta vez, mesmo de ouvido sintonizado naquele comprimento de onda, não conseguia ouvir fosse o que fosse. Da conferência em segredo deve ter saído ordem para me anteciparem o passeio matinal porque a enfermeira, sem conseguir esconder a perturbação que a levara a esquecer-se de me dar os bons dias, me disse, signor Ricci hoje vamos começar o nosso passei matinal mais cedo, agrada-lhe? Se me agradava… Melhor ainda: iria tomar o pequeno-almoço fora do quarto.
Já no corredor, pergunta-me a enfermeira se o meu parceiro de quarto tinha tido uma noite sossegada. Sossegadíssima, respondi-lhe, não lhe ouvi a mínima queixa desde que o tinham trazido para o quarto deviam ser umas seis da manhã, não? Sim, sim, eram seis e pouco, confirmou a enfermeira. Já não consegui dormir mais. Aliás, acordo normalmente cedo, seis, seis e meia, e depois não durmo mais. 
A enfermeira tinha-me informado à hora de jantar da noite anterior que, como o hospital estava cheio e eu iria sair no dia seguinte, ou no outro, o mais tardar, iriam colocar na cama ao lado um doente com coração transplantado que se encontrava nos cuidados intensivos pós-operatórios. Disse-lhe que até ficava satisfeito por poder ter alguém ao lado com quem falar. Mas com calma, tranquilamente, nada de futebol ou política, o signor Ricci não se esqueça que foi operado há três dias e este doente que virá fazer-lhe companhia  tem um coração novo há apenas dois. OK, nada de futebol nem política. Religião? Também não convém signor Ricci, infelizmente nem em nome de Deus, que é omnipotente e omnipresente, os homens deixam de se matar.
E foi assim que o do coração novo passou a meu companheiro de quarto a partir das seis e pouco da manhã seguinte.
Após coisa de um quarto de hora de silêncio absoluto, os dois a olhar o tecto comum, eu já pensava em tudo menos na válvula, arrisquei um bate-papo, ameno conforme a prescrição da enfermeira, sem futebol, nem política, nem religião, um tema trivial, o passado, que é o que mais têm os que já têm uma certa idade. Falar do passado é tão trivial entre os mais velhos como beberem sofregamente o presente os que são mais novos. E, porque não nos conhecíamos, abriram-se-me inconscientemente os arquivos secretos da memória.
O senhor é de Rimini, suponho, comecei por dizer para dizer alguma coisa. Nem chus nem bus, O do coração novo se ainda estava lá não dei por isso. Olhei-o pelo canto do olho e vi que permanecia imóvel, tal qual o haviam deixado, a cabeça puxada para trás, os olhos abertos, a boca contraída. Parecia absorto, tossicou pouco depois. De qualquer modo receei que não se sentisse bem, e insisti: Que tal se sente com esse coração novo? Uma maravilha, não? Eu, que só substituí uma válvula, recuperei vinte anos, pelo menos, penso eu.
Nada. O do coração novo continuava aparentemente meio atordoado. Insisti na tentativa de diálogo: Estou a incomodá-lo? no, no, no, murmurou ele com uma entoação cooperativa.  Entendi: pode continuar, e continuei. Como tinha sido intervencionado há muito menos tempo que eu, fiz a honras de toda a conversa, o do coração novo ouvia atentamente, tossicava raramente e mais raramente ainda lá vinha com o cooperativo no, no, no se eu lhe perguntava se a conversa o incomodava.
Há quarenta anos que não vinha a Rimini, sabe? Si, si, si, murmurava ele. Emigrei e proibi-me de voltar a passar o Rubicão. Mas a Mãe morreu, faz agora dez anos, a casa estava abandonada e em ruínas, os do município intimaram-me a vender, doar, ou fazer obras. Cheguei há uma semana mas levei uns meses a preparar a viagem. Vou hoje, vou amanhã, o que mais me apetecia, francamente, era cumprir o que jurara e nunca mais aqui pôr os pés. Mas já que tinha de vir, viria para vender a casa mas também para estar com os que não via há tanto tempo. E, sem fazer contas às consequências do passar do tempo, carreguei comigo lembranças para toda a gente de que me lembrei. Canivetes par os homens, chocolates para as senhoras e os mais pequenos. Nada menos que dois quilos de chocolate, está a ver o exagero? O do coração novo voltou a reagir do mesmo modo: si, si, si. E eu continuei.
Vim no comboio, que chegou a Rimini já era noite. Hospedei-me no hotel junto à estação, jantei e já não saí. Sentia-me cansado e, mais que cansado, preocupado com o confronto que o dia seguinte me reservava entre as minhas expectativas e a realidade do mundo em que nascera e crescera. Quantos daqueles que tinham ficado se manteriam ali ainda de pé? Dormi mal. Pior que dormir mal, a imaginação à solta levantou fervura e deitou fora qualquer provável realidade. Quando me levantei, eram sete da manhã, estava mais extenuado do que quando me deitei. Si, si, si, balbuciou o do coração novo.
Quando desci para o pequeno-almoço, o padeiro ainda não tinha chegado. Atirei-me esfomeado ao pão duro da véspera, que com duas tiras de queijo e um café não me tiraram uma sensação de esgotamento físico que nunca tinha experimentado. Voltei ao quarto com a intenção de tentar dormir um pouco, estendi-me durante dez, quinze minutos, mas nem o sono chegava nem o cansaço se ia. Desci e saí à procura de um táxi que me levasse ao bairro da minha infância. A viagem demorou dez minutos, se tanto.
Quando chegámos foi preciso o taxista dizer, cá estamos, para me aperceber que tinha chegado a um mundo muito diferente daquele que tinha abandonado. Ainda lá está o café onde nos juntávamos mas o sol nado já não aparece na praça por detrás dele. Levantaram-lhe atrás torres de apartamentos que tornam o sítio irreconhecível ao fim destes anos todos. Entrei no café, ninguém visível. Está alguém em casa? perguntei alto. Apareceu-me uma rapariguita com ar de felosa assustada, à espera de ordens. Para justificar a entrada pedi um café duplo. Melhor, muito melhor do que o de há quarenta anos que, de resto, naquele tempo, não havia, nem bom nem mau. Eram tempos do diabo … si, si, si, disse o do coração novo, e fiquei espantado com tanta atenção.
Tempos de candonga. Lembra-se da candonga? O do coração novo não respondeu à primeira. Do azeite? Si, si, si. Do racionamento? Meio litro por família por mês. Mas arranjava-se mais na candonga. Saía-se à noite, quando já ninguém andava na rua, a menos andasse ao mesmo, e íamos buscá-lo onde o tinham enterrado para fugir à expropriação. Hoje cinco, amanhã dez litros, ia para uma talha de onde o tirávamos por uma torneira à medida que o consumíamos. Naquele tempo não podíamos passar sem azeite. Um dia diz o Pai: Este azeite tem uma acidez esquisita. Já todos lá em casa tínhamos dado por ela mas ninguém falara. Naquele tempo, comer e calar era a regra de ouro para sobreviver. Mas se o Pai dizia… Concordámos que, sim senhor, o sabor daquele azeite já não era o que tinha sido e, pior que isso, piorava de dia para dia. Mas, enquanto durou, bebeu-se. Quando acabou, a Mãe ao lavar a talha encontrou no fundo um rato morto. Felizmente o azeite já tinha sido todo bebido… si, si, si, O do coração novo continuava à escuta.
Dava eu uma vista de olhos pelo jornal, apareceu-me um rapaz do meu tempo. Reconheci-o pelo andar e depois pela voz. Não se lembrava de mim mas, mesmo assim, levou o primeiro canivete. Ficou encantado com o brinde e disposto a servir-me de guia naquele território desconhecido. Perguntei-lhe pela gente do meu tempo. Fulano? Já morreu. E Beltrano? Desse não me lembro, mas, se não morreu, já cá não vive há muito. E Sicrano? Ui! Esse desapareceu com os boches. E… E… E…? Morreram já. E…? Foi a enterrar a semana passada. Homens e mulheres do meu tempo se não tinham morrido ou emigrado tinham desaparecido no vendaval da guerra. Sobrava aquele. Dei-lhe mais cinco canivetes e dez embalagens de chocolate para os netos. Não tinha netos. Então come-os tu, que eu como o resto.
E da Floria, lembras-te da Floria? Que é feito dela? A mulher do Juiz? Morreu. Morreu? Ah morreu há muitos anos já. Si, si , si, sussurrou outra vez o do coração novo. Era uma mulher linda … O meu guia assobiou. Mas, morreu como? Ora morreu, … se bem me lembro, morreu de parto. Teve um filho e seis filhas, morreu, era nova ainda. Era a mulher do juiz. Dizem que o juiz queria à viva força fazer um filho à Floria, tanto experimentou que a matou. Mas ele tinha um filho, disseste tu. Pois tinha, era o mais velho. Mas ali havia coisa, sabes? O juiz olhava para o rapaz e não se via ao espelho. Que é feito dele? Não sei. E o Juiz? Dizem que o Juiz anda para aí à espera que o chamem para uma operação. Espreito o do coração novo e não lhe vejo reacção notável. Prossigo.
Senti-me abalado, quase culpado por ser sobrevivente. O meu guia, a quem não cheguei a perguntar o nome por vergonha de não me recordar dele, olhou-me desconfiado e perguntou-me: sentes-te mal? Não, respondi, já passa. Reclinei-me na cadeira, cerrei os olhos, e mantive-me assim por tempo suficiente para juntar à minha volta meia dúzia de curiosos que, entretanto, tinham entrado no café, e começaram a dar palpites. Quando me julguei razoavelmente recomposto levantei-me e fui até à rua apanhar ar. Vem daí, disse ao meu guia, vem comigo até ao notário. Sabes onde fica? Lá fomos.
No notário já tinha o comprador da casa à minha espera. Tinha incumbido da venda uma agência local, não iria ver a casa, estava em escombros, há muitos anos que a Mãe a abandonara por ser demasiado grande para uma pessoa só. Por outro lado, sentia-me demasiado debilitado fisicamente e psicologicamente deprimido para visitar a casa onde nascera e tinha vindo ali para vender. Cumpridas as formalidades, agradeci ao meu guia e voltei para o hotel. Almocei e subi para o quarto para descansar.
Mas não descansei. Quanto mais tentava evitar a projecção do filme mais se desenrolava a bobina que começara a rodar perto dali há quarenta anos. Estávamos em 44, eu tinha na altura dezassete anos e ia começar o primeiro ano de Química em Bolonha. Escapei por pouco ao recrutamento. Os boches tinham sido obrigados a abandonar Florença em Junho, a meio de Setembro havia bombardeamentos a Sul de Rimini, a comida esgotava-se em todas as casas, a água e a luz apareciam de quando em vez, as pessoas procuravam refúgio no campo e nos montes mais próximos, longe, pensavam elas, dos alvos do tiroteio. Na última semana de Setembro, chovia que chovia, entraram em Rimini tropas gregas e, dali até Bolonha, os tanques foram a vedeta dos combates. Si, si, si, voltava a concordar comigo o do coração novo.
De papo para o ar e de olhos cerrados como agora me encontro, à medida que desbobinava a minha história comia os chocolates que não tinham encontrado o destinatário, e que eram quase todos. Naquela noite, devo ter ingerido meio quilo de chocolates. Aqui, o do coração novo voltou a cabeça para o lado onde me encontrava e sorriu, simpático. Depois voltou à posição inicial, a cabeça puxada para trás, a boca serrada, o olhar fixo no tecto.
Tínhamos um lugar de fruta no rés-do-chão da casa onde vivíamos. No rés-do-chão ao lado era a farmácia, mas o farmacêutico e família habitavam uma moradia a uns quarteirões dali. Entre ambos os edifícios havia as entradas, separadas por um muro baixo, para pequenos logradouros onde do nosso lado se cultivavam legumes e criavam galinhas. O farmacêutico parqueava no seu um Fiat Topolino azul, o único que se via em toda a rua, que era o seu encanto e mirava-o de todos os ângulos. Passava as tardes a limpar-lhe o pó quando não aparecia ninguém para aviar na farmácia. Mas o que o farmacêutico tinha de mais precioso era a filha, a Floria. Mais velha que eu, dois ou três anos, era a minha paixão, secreta, porque jamais teria coragem para lhe dizer isso mesmo. Não só por ser mais novo, e naquela idade a diferença conta mais que a conta, mas porque ela era a filha do farmacêutico e, eu, o filho dos do lugar da fruta.
Quando as informações da aproximação das tropas aliadas chegam a Rimini, Floria já estudava Farmácia em Bolonha há três anos. Raramente a via, ultimamente.
Embalado nas minhas recordações, só quando aqui cheguei voltei o olhar para o recém-operado, que continuava imperturbável a olhar o tecto. Receio que esteja a incomodar …é melhor calar-me, não? No, no, no, sussurrou ele, e eu continuei a desbobinar o filme arquivado há quarenta anos atrás.
Numa tarde de um fim-de-semana de Agosto de 44, toda a família tinha ido para a igreja, eu ficara na loja a tentar desiludir algum assalto, teria exames de admissão em Bolonha daí a dias, que muito provavelmente seriam adiados pela aproximação dos confrontos pela ocupação de Rimini, mas a ouvir à distância o ribombar da artilharia dos exércitos aliados a tentar  desalojar os nazis das fortalezas naturais que os protegia, quem é que conseguia concentrar-se nos meandros da Química? Sentava-me, levantava-me, espreitava pela janela o largo e as ruas desertas, chovia torrencialmente, o relampejar e troar da tempestade cruzava-se com o ribombar dos canhões, estava prisioneiro em casa. Andava num para a frente e para trás à espera de sem saber nem pensar em quê, quando, subitamente, ouço baterem à porta. Antes de abrir, e conforme as regras daqueles tempos, fui à janela ver quem batia. Era Floria. Entrou encharcada,   tinha vindo passar o fim-de-semana com os pais, e, por razões que desconhecia não encontrara ninguém em casa, nem na farmácia. Batera na porta ao lado porque, ao passar defronte da loja, tinha reparado que havia gente lá dentro.   
Voltei a olhar ao lado, o recém-operado pareceu-me desta vez mais interessado na história que lhe contava, mantinha-se na posição em que o tinham colocado, mas os olhos fechados fixaram-se outra vez no tecto quando, momentaneamente, interrompi o relato com a mirada. 
Talvez tenham ido para a igreja. Com todo este estrondear, as pessoas estão agora mais ansiosas e assustadas, e a reunião na igreja dá-lhes talvez aquela réstia de esperança de paz que, isolados, não encontram em casa. Mas está completamente encharcada, precisa de mudar de roupa, disse eu, sem saber o que dizer porque na loja vendíamos fruta, a roupa que havia era a roupa de trabalho, e, mesmo assim para mudar de roupa, o espaço era menos que curto. Pensei sugerir-lhe que subíssemos ao primeiro andar, havia escada de acesso interior, mas não me pareceu que ela aceitasse vestir roupa da mãe, e, então disse-lhe,    tenho aí um chapéu-de-chuva, posso levá-la a casa, mais molhada que o que já está não fica, e livra-se de uma pneumonia, ou coisa parecida, a Floria sabe desse assunto muito mais que eu. Está bem, respondeu ela com um sorriso que me fez estremecer mais que os trovões no céu e os canhões nas montanhas. E lá fomos. Em menos de dez minutos tínhamos atravessado o dilúvio e entrávamos em casa do farmacêutico. Entretanto, eu tinha ficado tão encharcado como ela, apesar de termos reduzido o mais possível o espaço ocupado debaixo do guarda-chuva. Oi!, agora és tu que precisas de mudar de roupa, disse ela, momentos depois de reaparecer com roupa enxuta. Saiu e voltou com cuecas, meias, calças, camisa e casaco, que por ser o farmacêutico mais baixo e mais largo que eu, me vestiram à palhaço pobre com fatiota de palhaço rico. Ela riu-se da minha figura, e eu, a rir-me, caíram-me as calças e as cuecas por serem largas, como já disse. Atrapalhei-me a vestir-me, ela não parava de rir, e, foi mesmo assim, acabámos abraçados por um tempo tão longo que nunca outro me pareceu tão curto. Quando o farmacêutico e a mulher chegaram a casa já eu tinha saído vestido com a minha roupa, meio enxuta com o calor de verão que, apesar da chuva, havia dentro de casa. No dia seguinte, esteve um dia soalheiro, a praia a convidar quem não se assustasse com a guerra a estoirar por perto. Floria tinha prometido ir num talvez fosse até lá, mas não foi. Percorri o dia inteiro as ruas, as lojas, os restaurantes, as igrejas, tudo o que estivesse aberto ao público, mas não a vi. De casa dos pais, vi sair e entrar o farmacêutico às horas habituais para abertura e encerramento da farmácia, vi sair a mãe, vi entrar e sair a empregada, não vi entrar nem sair a Floria. Foi para Bolonha, pensei. Irei ter com ela. Cedo ou tarde, hei-de encontrá-la.
Nova olhadela para o lado, o recém-operado, a olhar fixamente o tecto, não me pareceu enjoado com tanta tagarelice, continuei.
Em Setembro, os confrontos entre o avanço dos aliados e a resistência nazi tinham tornado a circulação de civis entre Rimini e Bolonha uma aventura de alto risco. Adiei dia após dia a ida, o risco era cada vez maior com o avanço dos aliados e a resistência dos nazis onde o terreno lhes garantia ainda alguma protecção. A resistência dos nazis só viria a quebrar-se a partir do fim ano mas a libertação de Bolonha só viria a acontecer na primavera de 45 deixando a violência dos bombardeamentos a cidade destroçada. Só não me atormentava a ideia de lhe ter acontecido na viagem algum mau encontro porque não via na cara do farmacêutico qualquer indício de preocupação.
Um dia, era segunda-feira, esteve a farmácia entregue ao ajudante do farmacêutico porque o licenciado não apareceu durante todo o dia. Ao fim da tarde, entrei na farmácia com a desculpa de comprar uma pomada qualquer que não precisava, e perguntei ao ajudante se tinha acontecido algum impedimento ao farmacêutico. Respondeu-me o homem que não senhor, o senhor doutor estava felicíssimo, durante o fim-de-semana tinha-se casado a filha com um juiz de direito, tinham-se conhecido em Bolonha, ele era uns anos mais velho que ela, mas não muito, o normal entre casais é o homem ser mais velho que a mulher, assim ela tem depois mais tempo para ser viúva. Dito isto, o homem olha para mim com ar espantado, o que é que se passa contigo? sentes-te mal?, senta-te aqui, beba este copo de água, como a coisa não passasse com copos de água e ao ajudante faltasse competência para ir mais longe, fui ao consultório do doutor Gaeta, que, depois de auscultar diagnosticou que não havia falha grave, mas que lhe aparecesse no consultório daí a três meses depois de tomar uma medicação que, se não me fez bem onde devia, me provocou uma diarreia que me obrigou a voltar ao Gaeta antes dos três meses prescritos. Afinal era normal, disse-me que continuasse, a diarreia acabaria por passar. E passou, mas o coração estava abalado para o resto da vida, penso eu, ainda que o doutor Gaeta insista que nem toda a gente nasce com válvulas de primeira.
Inclino-me novamente para o meu vizinho, e vejo-o imperturbável. Prossigo.

Tinham passado sete meses sobre a data do casório quando o farmacêutico voltou a faltar na farmácia, disse-me o ajudante que a filha tivera de ir de urgência para o hospital, tinham-se-lhe rebentado as águas antes de tempo, no dia seguinte estava o farmacêutico onde sempre costumava estar salvo se, por falta de clientela, apurava o brilho de Topolino, a aviar drogas e a receber felicitações por ser avô de um rapaz, prematuro é certo, mas também Napoleão nascera prematuro, e fora imperador em França. E não só Napoleão, quase toda a gente sabia de gente célebre nascida prematuramente, o farmacêutico já dava graças a Deus pelo bom augúrio que prematuridade do neto parecia garantir. Nesse mesmo dia decidi sair de Rimini logo que as condições permitissem. E foi assim que no Verão de 45 comecei a trabalhar num restaurante em Lugano, mais tarde como encarregado, e dono quando o anterior proprietário decidiu vende-lo. Ocasionalmente iam os meus pais e amigos visitar-me em Lugano. Só voltei a semana passada, volta aziaga porque o realejo se foi abaixo outra vez quando saí do notário a recordar as informações do motorista, e fui obrigado a voltar pela terceira vez à oficina. E o senhor, foi a primeira vez que isto lhe aconteceu? perguntei inclinando-me para a direita, quando entrou a enfermeira. 


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