Thursday, December 01, 2016

HISTÓRIAS PARALELAS - E QUE VIVA ESPANHA!

Já em tempos anotei aqui que, por ter faltado o Frederico a uma aula, faltou-me o guache vermelho para pintar um burro castanho e Mestre Santa Maria riscou de uma ponta a outra a minha obra com um lápis encarnado. O Frederico, fiel depositário do vermelho, era meio endiabrado. A aula de desenho estava instalada no salão nobre da escola, as pequenas mesas de trabalho eram mais elevadas que as carteiras normais e os bancos móveis. Em dias comemorativos ou de recepção a alguma individualidade oficial, os contínuos retiravam as mesas e os bancos para um espaço de arrumações no rés-do-chão do edifício, e as aulas de desenho eram suspensas durante dois ou três dias, uma festa a triplicar para os artistas de palmo e meio.

Naquele ano, o primeiro de Dezembro entrou na quarta-feira, na segunda ainda houve desenho, na terça quem teria aula não teve porque a sala foi evacuada dos equipamentos habituais e colocada no extremo-direito da sala uma base elevada onde era instalada a mesa dos oradores que naquele dia incitavam o ardor nacionalista inspirado na "expulsão dos castelhanos", de um tal de Vasconcelos atirado janela fora por estar a tremer de medo, vejam lá se isto se percebe, dentro de um armário onde se tinha metido, pequeno demais para o tamanho dele, coisas que só costumam acontecer nas anedotas de amantes clandestinos surpreendidos em flagrante acontecimento. Era este Vasconcelos descendente, mas, provavelmente, no salão nobre onde se enaltecia a raça em doses brandas, ninguém sabia, talvez porque não houvesse ainda Internet, de D. Sancho I de Portugal, Henrique II de Inglaterra, Roberto II de França, Carlos Magno, entre outros das mais variadas nacionalidades. Com tão dispersa e dourada ascendência é admissível que o Vasconcelos não estivesse muito certo de que terra era. Além do mais, Vasconcelos foi defenestrado por ter aumentado os impostos, a mando de Filipe IV. Imagine-se quantas defenestrações haveria se hoje ainda o português valente mantivesse o sádico gosto de mandar os elevadores de impostos pela janela abaixo!

Na aula de desenho, mais ou menos a meio da sala, sentava-se, estrategicamente, na mesa à minha direita, o Frederico, o tal do guache vermelho, e os outros sócios da cooperativa das cores na mesma zona. Na mesa à frente do Frederico, a Amélia. 
Já não me recordo qual era a empreitada artística  de que estávamos incumbidos naquela segunda-feira. Do que me recordo, e seria preocupante se agora me tivesse esquecido, é da arte e enlevo com que Mestre Santa Maria, de pé, debruçando-se sobre a mesa de trabalho onde se sentava a Amélia, sustentava a posição com a mão esquerda e pincelava à direita umas andorinhas a esvoaçar sobre um castelo, seria um castelo?, que a nossa colega de turma tinha desenhado. 

A cada andorinha pincelada, Santa Maria endireitava o corpo, mirava o trabalho e voltava à posição anterior para outra andorinha. E é neste vai e volta às andorinhas que ao Frederico, que tinha mergulhado o pincel no guache vermelho, ocorre o incontido impulso de se debruçar para a frente sobre a sua mesa e passar o pincel pela parietal da calva de Santa Maria. Reage, instintivamente o Mestre, passando a mão direita por onde sentiu uma passagem fugaz, e fica apopléctico a olhar a mão manchada de sangue.
Santa Maria, já se disse, tinha atribulações mentais controladas, e essa vulnerabilidade era conhecida e respeitada pelos seus colegas mais novos, mas não comovia a garotada em transição para a juventude. E ficou possesso à procura da campainha que lhe trouxesse o contínuo de serviço e transporte para o hospital. 

Veio o contínuo, que convenceu Santa Maria que aquilo não era sangue mas tinta, e que, talvez ele mesmo, tivesse passado pela cabeça, distraidamente, o pincel com que pintara as andorinhas da Amélia. Não deveria o contínuo ter ido além das suas atribuições, não há andorinhas vermelhas e se aquilo era sangue ou tinta só o no hospital se averiguaria.
Ali mesmo ao lado, não contive o riso, e a risota espalhou-se.
Fomos imediatamente, eu e o Frederico, postos fora da sala. 

No dia 1 de Dezembro também fui dispensado das cerimónias. Eu, e a grande maioria, porque nas coreografias da Mocidade Portuguesa só entrava quem tivesse farda, e as fardas eram poucas  para o número total de alunos da escola, e no salão nobre, a nossa sala de desenho em dias úteis, não cabia mais ninguém além dos convidados, professores e alunos fardados.
Na segunda-feira seguinte soube-se que o Mestre já não voltaria até às férias do Natal.
Depois reformou-se.

Com o fim das aulas, princípios de Verão, a cidade começou a receber os habituais banhistas de Castilla y Leon: Salamanca, Zamora, Ciudad Rodrigo. Pelo fim da tarde, no jardim a animação  da pequenada espanhola, sob o olhar atento das mães, competia com a chilreada dos pardais. De olhos fechados poderíamos supor encontrarmos-nos em Burgos num fim de tarde.

E perguntava-me se ainda fazia algum sentido celebrar-se no inverno a expulsão de um povo que recebíamos de braços abertos no verão. Só faria porque o regime se sustentava, e continuou a sustentar-se  ainda durante vinte anos, numa excitação nacionalista que tinha, poucos anos antes, destroçado a Europa.


E que ameaça voltar a destroçar num cerco que se aperta desta vez de leste a oeste do mundo ocidental.
---
Nos últimos três dias, as mais altas individualidades deste país receberam pomposamente os Reis de Espanha. No Porto e em Lisboa, os presidentes das duas principais autarquias entregaram-lhes as chaves de ouro das cidades. Filipe VI discursou ontem na Assembleia da República e, segundo me pareceu ouvir, só o BE não aplaudiu o monarca.
Esta manhã ouço na rádio que o trânsito está fechado na Avenida da Liberdade em Lisboa para desfile com filarmónicas celebrando a Restauração.
Restauração de quê?
---
Correl . - The new nationalism

No comments: