Wednesday, October 01, 2014

O CARISMÁTICO

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Resumindo: Tenho cinquenta e seis anos, o Banco entrou em fase de redução de efectivos, com trinta anos de serviço fui atingido pela dispensa, mas não saí com as mãos a abanar.
Tenho a casa paga e a reforma dá para viver. Os filhos emigraram, não me preocupam. Telefonei à Maria Armanda confiante de que podia vender a casa em Lisboa e, finalmente, podermos estar juntos,  depois de doze anos de separação intermitente imposta pela colocação dela numa escola em Tavira, mas fui rechaçado. Que nem pensar nisso, que nunca a nossa vida em conjunto tinha funcionado bem, que era bem melhor que continuássemos a encontrar-nos de vez em quando, por períodos curtos, para evitar os atritos do costume, mas desconfio que a razão é outra:  A Armanda tem problemas de circulação na pernas e a frequência com que visita o terapeuta deve ter-lhe agudizado os sentimentos de rejeição por mim. O que vou fazer, o que não vou fazer, com a idade que tenho e sem paciência para a pesca à linha, decidi entreter-me com um pequeno negócio, com a minha idade e a crise que vai por aí onde é que um ex-bancário pode encontrar emprego se não o inventar? Como havia aqui perto de casa esta esquina devoluta há muito tempo, e o dono do prédio teve que o entregar ao banco, fui ao leilão e arrematei o gaveto por bom preço, ainda antes de saber o que haveria de fazer com ele. Que me lembre, antes funcionou aqui uma barbearia, depois uma lavandaria, depois uma frutaria, depois foi tabacaria,  venda de jornais e da sorte grande, até fechar há uns três anos atrás. Ocorreram-me várias ideias, estive quase, quase, para reabrir como quiosque de jornais, revistas e casa da sorte, aproveitava o balcão e as prateleiras, mas acabei pelo negócio de bifanas e passarinhos fritos.

Há muitos anos atrás, vivia eu ali para os lados da Rua da Palma e trabalhava na Baixa, passava todos os dias pela Barros Queiroz, e não resistia ao cheirinho que pairava no ar vindo do canto das bifanas e dos passarinhos fritos em molho de vinho de alhos. Umas vezes bifana, outras passarinho, e sempre
um copo de branco da casa, com uma sopa quando chegava a casa, garantia metade da sobrevivência diária. Ao almoço ia à cooperativa onde se comia bem e pagava pouco. Ora passa por aqui muita gente, que tem de comer, e não há nada tão bom e barato como uma bifaninha ou um passarinho frito em molho especial por perto. E depois este cheiro, atrai. Você passa por um Mcdonald's e cheira a quê? Só se for ao ranço da fritura. Avancei.

Andava ainda com as obras de adaptação, às voltas com as licenças e os contratos da luz e da água, os contactos com os fornecedores de porco e passarinhos, quando um dia me caiu em cima, lá em casa, um carismático, que veio connosco de Moçambique, há quarenta anos, nasci lá. A Maria Armanda embirrou sempre com o carismático, e eu, para lhe reduzir as aversões, arrumei o carismático na última prateleira da dispensa, em lugar onde a altura dela, que é baixa, não chegava. Quando procurava na tal prateleira uma frigideira, que por ser larga, só muito raramente entrava ao serviço em casa, caiu-me o carismático na cabeça. Olhei-o encantado com recordações antigas e trouxe-o para aqui para companhia. Onde o ponho, onde o não ponho, acabei por colocá-lo ali à porta de entrada.

E aconteceu o imprevisto. Logo que abri o tasco ao público, e o cheiro atraiu o primeiro freguês, pôs-se o pândego a olhar para o carismático em vez de dizer o que queria papar.
Parecia uma galinha à volta do carismático, olhava-o de frente, de lado, por baixo, puxava pelo beiço, inclinava a pinha, esquecido do que o levara ali.
Quanto custa?
Dois euros a bifaninha, euro e meio o passarinho no pão. Com um copo de branco faz a festa com três euros em qualquer dos casos. Só o copo, um euro.
Não, não, o que quero saber é o preço disto?
Ah! O carismático? Não está à venda.

Foi-se embora.
Chegou segundo atraído pelo cheiro da bifana, e a mesma cena. Terceiro, idem aspas. Ao quarto, decidi levar o carismático para as traseiras, depois pensei se não seria burrice minha rejeitar um negócio sem sequer discutir o preço. O quinto a arribar nem olhou para o carismático e iniciei-me no negócio com um passarinho, uma bifaninha e dois copos de branco da casa. Fiquei convencido que tinha ganho o primeiro promotor nas redondezas do meu negócio de bifanas e passarinhos fritos em molho de vinho de alhos.

Chegou o sexto, e volta à baila o carismático.
Quanto é que isto custa?
Duzentos euros?
Duzentos euros?!!!
Não posso vender por sequer menos um cêntimo para não perder com o negócio. Não é meu. Colocou-o aí pessoa amiga que está a desfazer-se das recordações. Sabe como é, a crise está a atormentar muita gente...
Disse du-zen-tos euros?
Foi realmente o que eu disse. O carismático tem mais recordações que o sr. Manuel de Oliveira.
E se for só isto?, perguntou o interessado apontando para o carismático?
Não posso vender a carisma à parte. Bem vê, a parte restante perderia todo o sentido.
Está bem. Pode embrulhar.

 Ficar sem o carismático fez- me sentir dolorosamente ainda mais só.
Fui ter com um tipo que conhecia dos tempos da escola, um destes fulanos capaz de satisfazer qualquer encomenda, dei lhe as dicas necessárias e em três tempos tinha outro carismático na loja. Vendi-o, sem dificuldade, por duzentos e cinquenta euros. E encomendei uma dúzia ao artista dos carismáticos. Já só me sobram dois, e o preço já vai nos dois mil euros cada. Dou trinta por cento ao artista, que nunca na vida viu tanto dinheiro, o mesmo não digo eu, que fui caixa no banco durante trinta anos.

Há pouco passou por aí, entristecido, o sr. Seguro. Pensei, se este vem para comprar carisma, vem tarde, e não vendo em separado. Mas nem reparou, ou evitou reparar no carismático.
Um passarinho e um copo de água. O passarinho desossado, se faz favor.
Lamento mas não tenho passarinhos desossados. Mas pode comer uma bifaninha. Sem osso.
Tem muita gordura.

E foi-se embora com mais fome do que vinha.







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