Tuesday, February 28, 2006

NOTÍCIAS DO BLOQUEIO




Foi há cinquenta anos, lembro-me bem, entrei no estabelecimento do Tio, estava ele às voltas com uma escrituração qualquer que, por alguma razão que ele não contou, não estava a dar certo. Quando me viu atirou, sem dizer bom dia: vens mesmo a calhar, tu é que podias passar a enviar notícias para a VF. Ele era o correspondente local do jornal, não ganhava nada com isso para além da assinatura gratuita, valha a verdade que a incumbência não dava grande trabalho, mas era mais uma preocupação, e ele tinha tantas, por isso queria passar a pasta.

Nesse tempo, os jornais noticiavam a guerra no outro lado do mundo, e eu acompanhava entusiasmado o relato sincopado que os correspondentes de guerra me enviavam ao domingo, porque os diários não chegavam lá aos dias de semana. De modo que se me tivessem, então, perguntado, mas ninguém perguntou, o que é queria ser quando fosse grande, teria respondido sem hesitação: correspondente de guerra! Com catorze anos não o fazia por menos.

A sugestão do Tio não podia encontrar, portanto, entusiasmo maior que o meu: instantaneamente promovi-me de correspondente local de um semanário de província a correspondente de guerra no sudoeste asiático de um qualquer jornal nacional.

Na manhã do dia seguinte, uma segunda-feira, estávamos, o Tio e eu, a bater à porta da redacção da VF. Atendeu-nos, sorridente, o senhor CC do lado de dentro de um balcão que fazia um pequeno hall com a porta de entrada. O senhor CC aceitou, sem restrições, a proposta do Tio e ficou combinado que, a partir daquela data, quem passava a dar conta das notícias era eu, correspondente da VF na freguesia. O jornal saía às quintas-feiras, se quisesse ver a minha prosa em letra redonda no próximo número não tinha tempo a perder.

Logo na tarde desse dia quis ensaiar a notícia inaugural e andei à pesca de assuntos mas não apareceram os espécimes do costume. Geralmente, o Tio dava conta de casamentos, nascimentos, baptizados e enterros, de vez em quando de aniversários dos notáveis locais, assinantes do jornal, outras vezes de visitas de emigrantes bem sucedidos em férias.

Nessa semana não se passou nada digno de notícia, um facto bizarro confirmado pelo sacristão, fonte geralmente bem informada. Tinha morrido o Silvestre mas o Silvestre não era assinante do jornal nem havia potencial na família, o Tio disse que casos desses não eram publicáveis. A questão das notícias era assim bem mais complicada do parecia à primeira vista: para aumentar o universo de noticiáveis o correspondente era compelido a promover as assinaturas e esperar que, dos assinantes, fossem alguns casando, procriando, visitando a terra, morrendo, caso em que se impunha trabalhar pela reposição do universo assinante.

Sem notícias aceitáveis, não quis perder a oportunidade de entrar na impressora logo na primeira semana e lancei mão de uma peça que me causava engulhos.

A aldeia, naquele tempo, era o mundo em miniatura: a maior parte da população ainda se dedicava a trabalhos agrícolas, enrolada numa economia de subsistência que os forçava a produzir um pouco de tudo: milho, trigo, centeio, aveia, favas e ervilhas, grão de bico e chícharo, feijão verde e feijão de todas as caras conhecidas, arroz nas terras baixas do Mondego, batatas, nabos, vinho, couve de toda a espécie e feitio, alface, agrião não, o agrião apanhava quem apreciava no ribeiro, cebolas, alhos, abóboras no meio do milho, abóboras-meninas e abóboras-porqueiras, frutas várias no meio da vinha, azeite, porcos, matavam-se pelo Natal, guardavam-se as carnes gordas na salgadeira, vacas, cabras e carneiros, galinhas, sardinha trocava-se por galinha, patos, perus, ás vezes gansos, uma lista longa que quase todos cumpriam, as diferenças viam-se pelas quantidades que cada um produzia, um bom indicador era contar os palheiros nas traseiras do quintal ou as pipas na adega. Mas não havia grandes proprietários, havia os mais e os menos remediados, e os que trabalhavam por conta daqueles e amanhavam umas courelas mais pequenas por sua conta. Nos terrenos sem vocação para culturas hortícolas ou de cereais e não crescia a vinha ou olival semeavam-se os pinhais, eram raros os terrenos incultos. A aldeia, vista a esta distância temporal, era um jardim onde cada um tratava o seu canteiro com uma dedicação religiosa e um frenesim competitivo: pelo S. Martinho discutia-se quem tinha tido o engenho e arte de ter produzido a melhor pinga, o vinho era o emblema da qualidade de cada pequena casa agrícola. Na Primavera, aldeia pintava-se de todas as cores, espraiando-se o verde dos rebentos por encostas de vinhas e oliveiras e terras baixas onde pespontavam os sinais do pão-nosso de cada dia. Os verdes amadureciam pelo Verão dentro e colhiam-se no Outono, a aldeia só no Inverno abrandava o ritmo e descansava um pouco.

Para além dos pequenos agricultores havia os comerciantes, os artesãos, os operários e os funcionários públicos que ali residiam mas trabalhavam na sede do concelho. A actividade comercial não era muito destacada, a proximidade da cidade retirava-lhe qualquer vantagem, de modo que ia pouco além da mercearia e vinhos. De entre os artesãos, destacavam-se as padeiras: nove na sede da freguesia, mas os agricultores coziam a broa de milho e algum pão de trigo em fornos próprios. Quanto a artífices por conta própria havia de tudo um pouco: sapateiros (três), alfaiates (dois), costureiras (várias), carpinteiros de construção civil e pedreiros (diversos), abegões (dois); um tanoeiro, um caixoteiro; ferreiros (dois), barbeiros (três). Os operários passavam de manhã cedo puxando-se a eles e à bicicleta a caminho dos estaleiros navais e uma ou outra incipiente actividade industrial na sede do concelho; de comboio, deslocavam-se, os ferroviários, os funcionários públicos e ocupações correlativas e os estudantes do ensino secundário. Durante todo o dia havia movimento permanente nas ruas, todos se cruzavam com bons dias, boas tardes, boas noites, consoante, só no pino do Verão ou nos dias de chuva a aldeia dormia a sesta ou acordava mais tarde.

Na aldeia praticavam dois médicos, havia a farmácia, três colectividades de cultura e recreio, duas igrejas, católica e presbiteriana, e três credos diferentes, a igreja adventista tinha praticantes em casa arrendada.

A indústria local contava com uma serração de madeira, duas moagens, uma fábrica de barro vermelho fora de portas.

Havia duas escolas primárias e, surpreendentemente, um Jardim-Escola. Surpreendente, porque era, e continua a ser, a única aldeia do País com um Jardim-Escola João de Deus.

“A história dos Jardins-Escola João de Deus tem origem na constituição da Associação de Escola Móveis pelo Método de João de Deus, fundada a 18 de Maio de 1882, por iniciativa de Casimiro Freire, secundado por algumas personalidades destacadas do seu tempo como Bernardino Machado, Jaime Magalhães Lima, Francisco Teixeira de Queiroz, Ana de Castro Osório e Homem Cristo, entre outros.A Câmara Municipal de Coimbra facultou um terreno (para a construção do primeiro Jardim-Escola) com uma superfície de 4800m2 e o projecto de arquitectura foi oferecido pelo arquitecto Raul Lino, segundo as orientações pedagógicas de João de Deus Ramos.” http://joaodeus.com/associacao/associacao.htm


O Jardim-Escola foi doado á aldeia por Fortunato Augusto da Silva, um benemérito bem sucedido no Brasil, em 1927. É uma obra que não se pode recordar sem um grande estremecimento de alma.

É bem sintomático, contudo, da falta de memória e de gratidão dos locais o facto de o benemérito não ter merecido o nome da rua que passa defronte nem de nenhuma outra na aldeia. Também sintomático do caciquismo retardado e do elevado grau de burgessia envolvente, é o facto de, frente ao Jardim Escola, ter sido colocada placa que domina o pequeno largo e em letras douradas celebra a inauguração de um arranjo urbanístico que consistiu em empedrar uns poucos metros quadrados e traçar num espaço alcatroado os espaços para seis viaturas. A inauguração, reza a placa a dourado, contou com a presença do Excelentíssimo Senhor Presidente da Câmara, Senhor Engenheiro, …., sendo Presidente da Junta o Senhor ….

Quantos passarão por ali e sentirão a vergonha que eu sinto?


Até à chegada da televisão a auto-suficiência da aldeia estendia-se à cultura: entre as colectividades de cultura e recreio estabelecia-se uma competitividade, alimentada por uma rivalidade antiga, que animava todos os serões de domingo com actividades lúdicas que privilegiavam o baile e o teatro, os ranchos folclóricos, e a filarmónica, numa delas. E havia ainda o futebol, claro. Depois chegou o cinema ambulante, de vez em quando, mas foi a televisão que desligou muita gente da colectividade.

Um aspecto que ainda hoje não consigo explicar era a residência, num meio de pequenos agricultores, de uma dezena de famílias que, aparentemente, não tinha afinidades, culturais ou outras, com a parte restante da população residente. Essas famílias não eram originárias da aldeia, algumas tinham ligações familiares e económicas fora dali, a sua integração no meio era estabelecida através das sociedades de cultura e recreio, quase exclusivamente através de uma delas, mas apesar desse facto, não se observou cruzamento familiar com a população tipicamente local.

Outro facto notável era, e ainda é, a existência de várias casas, uma dezena talvez, que pela sua dimensão ou pelo seu porte se destacavam do perfil, naturalmente simples, das restantes habitações do aglomerado populacional. Uma ou outra terá sido construída com fortunas, grandes ou pequenas, importadas do Brasil, mas a inexplicada residência de forasteiros endinheirados pode explicar a construção de outras.

Contudo, uma casa, de entre as demais, interrogava insistentemente os meus catorze anos: a Casa da Renda.

A Casa da Renda ocupa o centro da parte baixa da aldeia, é uma construção de estrutura robusta do Séc. XIX, de dois pisos, o de cima com acesso por escadaria exterior de pedra encimada por um alpendre, e é dominante na configuração urbana traçada, basicamente, ao longo de dois percursos perpendiculares enviesados. Há cinquenta anos, o morro baixo onde levantaram a Casa da Renda, tinha sido murado de modo a que do lado Sul passassem na rua os carros de bois; do lado Norte, a construção chega á rua e esta já era mais larga. Mais tarde o muro do lado Sul recuou um pouco mas ainda hoje o estrangulamento é notório.

Dos lados Sul e Poente do edifício havia ruínas de construções anexas desabadas ou não concluídas e, á volta delas, um pomar onde predominavam as ameixieiras brancas e pendiam por cima do muro as flores e os frutos de romãzeiras.

A Casa da Renda tinha sido habitada pelos frades Crúzios, do Convento de Santa Cruz de Coimbra, senhores, até à sua expulsão nos começos do Séc. XX, de muitas propriedades rústicas à volta, que arrendavam e naquela Casa cobravam as rendas. Daí o nome do casarão.

Há cinquenta anos, a Casa da Renda, era um monstro adormecido no meio da povoação, perdendo pêlo a olhos vistos: os telhados estavam cambados, as vidraças partidas, as paredes esfarrapadas, o pomar invadido por falta de cuidados.

Sempre me perturbaram as casas abandonadas porque me disseram, um dia, que ficam nelas para sempre as almas dos que as habitaram e saíram para sempre. Foi assim que fiquei a saber onde ficava o Céu e apoquentado com o seu abandono. Naquele, para além das almas dos Crúzios, hospedavam-se uns morcegos e andorinhas, com a chegada da Primavera. A ala Norte ainda era habitada naquele tempo, mas o tempo acabou por expulsar qualquer presença humana dali.

Por tudo isto, escrevi o meu primeiro artigo para o jornal mais ou menos assim:

Esta semana não ocorreu, entre nós, nenhum evento que mereça notícia.
Aproveitamos o espaço disponível por esta ausência de assunto corrente para chamar a atenção de quem de direito para um aspecto da nossa aldeia que nos parece intolerável numa sociedade que se preze.

Há, mesmo no meio desta localidade, um Casarão ao abandono, parcialmente ainda habitado, mas a progressão das ruínas vai, seguramente, expulsar, dentro de pouco tempo, os últimos residentes.

Dominando o centro da localidade, o Casarão, é um fantasma a receber quem nela entra. Talvez pela habituação, parece que ninguém repara que o monstro está ali a cair aos pedaços e o pequeno parque à volta é encoberto por um muro que estreita de tal modo a rua que a torna perigosa para o trânsito que por ali passa.

Segundo julgamos saber, os proprietários saíram daqui e não pensam voltar. Porque bulas teremos nós de conviver com este animal abandonado, quase morto, dentro em pouco em vias de putrefacção?

Devo ter reescrito isto uma dúzia de vezes até encontrar o fio que julguei capaz de agarrar a confiança do Tio e a aprovação do Chefe de Redacção.

Para o Tio, o assunto era inesperado mas, evidentemente, deu o seu acordo após duas leituras, e a mensagem lá seguiu via postal.

Fiquei a aguardar o correio de quinta-feira com a ansiedade de quem espera a nota de um exame decisivo. E na quinta-feira, tão certo como o sol nascer cada manhã, chegou o Jornal mas no Jornal nem sombra de notícias da localidade. Disse o Tio: Isso às vezes acontece, não há espaço para tudo, outras vezes é porque o correio chega tarde e o Jornal já está fechado. Espera para a semana.

Esperei, amarrado a uma ansiedade redobrada, veio outra quinta-feira e o Jornal, da notícia, nada.

Talvez para a próxima semana, disse o Tio, já pouco convencido. Para a semana tenho umas coisas a tratar lá perto, se não vier no próximo número vamos ver o que se passa.

Não veio, e lá fomos saber o que tinha acontecido á notícia.

O Senhor CC recebeu-nos com o mesmo sorriso simpático e disse: Li o artigo, achei interessante, não há dúvida que não faz sentido deixarem-se cair as casas velhas, sobretudo as mais nobres, um dia destes perdemos a memória…mas as pessoas o que apreciam mesmo é que se fale delas. Se numa semana ninguém morre, ninguém se casa, ninguém nasce, ninguém apareceu de visita, não há problema. É uma questão de esperar. Essas coisas acabarão sempre por acontecer, não é assim Sr. A? Claro, claro, respondeu o Tio, é uma questão de esperar, o mundo não pára.

Pois não. O mundo não pára, se parasse é que seria notícia, e naquele dia acabou a carreira de um futuro correspondente de guerra.


Entretanto a aldeia mudou, foi promovida a Vila.

Os campos estão quase todos abandonados, um ou outro resistente continua a podar e impar, sulfatar e enxofrar, para vindimar e espremer uns cestos de uvas que cabem num triciclo. Outras ainda plantam umas batatas e umas couves porque não sabem fazer mais nada nas horas vagas ou ficou-lhes a inércia daquele jeito nas mãos. Mas já não há agricultores. As silvas tomaram conta das terras e não pagam décima. O direito de propriedade é uma vaca sagrada em que ninguém toca nem que nela os matos cresçam para alimentar os incêndios no Verão.

Os sapateiros, alfaiates, ferreiros, os abegões, o tanoeiro, o caixoteiro, desapareceram. Até os barbeiros foram afiar a lâmina para outro sítio. Os médicos vão exercer ao posto médico mas não residem; o padre tem mais de uma freguesia, vai lá mas não se vê passar na rua. A Vila ganhou, entretanto, uma Escola C+S mas os professores vão lá como poderiam ir ao Samouco e voltar se lhes dessem asas. Só a farmácia se mantém no seu posto e de cara nova. As colectividades de cultura e recreio esforçam-se por garantir que estão vivas mas estão fora de moda.

Das padeiras, restam duas, uma delas em part-time. Mas ganharam uma estátua. Não vislumbrando outras necessidades, os autarcas locais gastam-nos o dinheiro a encomendar estátuas e rotundas. À falta de outros heróis vão passando para a pedra, ás vezes para o ferro, algumas até para o bronze, as profissões mortas.

A aldeia perdeu os cheiros e os sons, e os trinos e os coletes coloridos dos pintassilgos, abatidos pelos pesticidas e pela ruindade humana. E os grilos. Que pena que ninguém se lembre de levantar uma estátua aos grilos!

A única actividade que dá conta de prosperidade é a construção civil.

Mas as casas antigas continuam a desfazerem-se ao ritmo que crescem os silvados nas leiras, e a Casa da Renda ainda lá está no meio da parada, aos tombos, talvez um dia destes caia de vez.

Thursday, February 23, 2006

ACERCA DOS DINOSSAUROS

Meu Caro B. da Silva,

Há dias deu-nos a conversa para falar das freguesias e das juntas. Prometi-lhe pôr por escrito, para desafiar o contraditório, aquilo que lhe disse enquanto almoçávamos.

Naquele fim-de-semana estavam as juntas de freguesia em congresso, desconheço as conclusões e reivindicações, geralmente estas coisas fazem-se para reivindicar do Estado mais meios e este não deve ter fugido á regra. Como o Ministro das Freguesias entende que temos freguesias a mais, é bem provável que o Congresso tenha concluído que temos freguesias a menos. Muita gente nem pensa no assunto, raramente precisaram de recorrer a elas. Eu acho que estão todas a mais.

Porquê?

Quando iniciei este meu entretenimento, que é uma espécie de palavras cruzadas embora pareça outra coisa, já alinhavei alguns comentários acerca daquilo que considero a irracionalidade da governação autárquica e que sustenta todos os descalabros e escândalos que, por serem já tantos, se banalizaram de tal modo que já quase não damos por eles. Chamei-lhe “O Caso da ETAR Sobrevoada”, quem se der ao trabalho de a ler neste “blog” saberá porquê.

As juntas de freguesia representam uma herança, desvirtuada, do Sec. XIX; do lado bondoso tinham o mérito de pretender resolver os problemas comuns das populações mais afastadas dos centros do poder, do lado perverso eram a base da pirâmide do caciquismo quando a alguns homens foi dado o direito de votar. Eram parte da tradição municipalista que vinha do tempo dos afonsinos, com virtudes e aberrações, quando o Estado, dito Novo tomou conta do Estado, as juntas de freguesia continuaram a ser eleitas, ou pseudo eleitas, se quiser, enquanto os Presidentes das Câmaras Municipais passaram a ser nomeados pelo Governo.

Em meados do século passado, há cinquenta anos, portanto, as juntas de freguesia passavam atestados de residência, as juntas de freguesia rurais também abriam e consertavam caminhos vicinais, construíam pequenos fontanários, mas o seu campo de intervenção privativo eram os cemitérios. Para além destas atribuições as juntas, geralmente através do seu presidente, reclamavam e influenciavam junto dos municípios a que pertenciam a realização de obras que reputavam necessárias mas excediam os seus orçamentos e áreas de intervenção.

Naqueles tempos os membros das juntas não eram remunerados, a sua eleição recaía nos que eram tidos como mais capazes de defender os interesses das localidades junto das câmaras municipais. Não pode afirmar-se que não houvesse alguma influência da União Nacional na eleição das juntas de freguesia mas essa influência não era, certamente, levada muito a peito pelo poder central porque, quando o Governo macaqueava eleições, tinha meios mais expeditos para dizer que as ganhara do que pôr os micro autarcas a fazer por isso. Os autarcas das freguesias tinham, portanto, perdido a influência política que tinham tido no fim da monarquia e na primeira república quando as eleições se decidiam por chapeladas.

Após o 25 de Abril voltou o caciquismo.

Cacique, também conhecido por manda-chuva, significa, segundo o dicionário, “influente eleitoral em terras portuguesas”. Já a palavra autarca, do grego “autarkos” tem, originalmente, uma conotação curiosa com o comportamento actual de alguns dos nossos detentores do chamado poder local, que parece levarem as suas funções e ambições demasiadamente à letra: Segundo o dicionário da Sociedade de Língua Portuguesa de J P Machado, autarca é “o que governa por si somente// O que se arroga poderes para governar à margem das instituições parlamentares// Rei absoluto; ditador”.

Com o regime democrático de volta e a luta partidária, os autarcas passaram a desempenhar, de novo, um papel importante no processo de influência do eleitorado. A concessão da lei permitindo que grupos de cidadãos concorram às autarquias das freguesias a par dos partidos políticos não retirou a estes o empenho pelo domínio dos órgãos autárquicos locais. Claro que esse empenho nada tem a ver com a promoção de qualquer ideologia política. É praticamente unânime a convicção de que as ideologias estão em crise mesmo aos níveis de decisão mais elevados de Governo, sendo muito difícil estabelecer fronteiras das ideologias que possam indicar o sentido das políticas em quase todas áreas da governação. Assim sendo, faz sentido a concorrência dos partidos políticos ao nível das mais pequenas áreas de definição da geografia do tecido político? Há alguma ideologia subjacente na passagem de um atestado de residência ou no calcetamento de um largo ou na plantação de uma palmeira no meio dele? Não há.

O que há é a necessidade dos partidos, para proveito próprio, passarem para a opinião pública que aquele atestado, aquela calçada, aquela palmeira, foram realizados pela junta a que o seu membro preside e, para além disso, que seja ele quem contrata e paga ao calceteiro e ao jardineiro. Os votos virão porque há obra, e quanto mais obra mais votos. As relações com o calceteiro e o jardineiro se não proporcionam votos proporcionarão outros dividendos.

Aqui chegados, parece que as Juntas de Freguesia não são os vasos capilares da democracia mas os vasos capilares da partidocracia, porque não veiculam ideias mas interesses privados.

Justificar-se-ão por razões de operacionalidade ou racionalidade económica? Também não. Aliás esta conclusão decorre exactamente da mesma premissa que leva o Governo a pensar na redução do número de concelhos por aglutinação de alguns deles. Vai ser muito difícil fazê-lo mas o mais elementar bom senso, que a distância das situações analisadas em abstracto possibilita, sabe que, como todas as unidades de gestão de recursos, os municípios não podem ser eficientes na utilização dos meios postos à sua disposição se não atingirem uma dimensão crítica.

Temos, segundo a Direcção Geral das Autarquias, para além dos arquipélagos da Madeira e dos Açores, 304 municípios com uma área média de 299 km2 e 34 mil habitantes e 4281 freguesias com uma área média de 21,6 km2 e 2438 habitantes.

As autarquias absorvem 30% dos impostos sobre os rendimentos das famílias e das empresas e do imposto sobre o valor acrescentado, isto é, do IRS, IRC e IVA. Destes, 7,6%, ou seja 2,28% é atribuído às freguesias. É muito dinheiro. Para quê?

Quando os caminhos vicinais se abriam a pá e picareta e às contribuições da fazenda pública se juntavam muitas vezes o donativo de muitos dias de trabalho dos vizinhos para a realização de obras de interesse comum, as obras realizadas pelas juntas de freguesia tinham expressão e fazia sentido a sua existência. Hoje os meios disponíveis são outros e não podem ser governados de forma rentável dentro de unidades administrativas tão exíguas.

Importa, portanto, redimensionar os concelhos e extinguir as freguesias atribuindo as suas actuais funções de representação das populações junto dos órgãos municipais a comissões de freguesia eleitas a partir de órgãos de representação mais circunscrita, a que poderíamos chamar comissões de moradores. Todos os cargos deveriam ser de exercício não remunerado. E não remunerado porque, não tendo que realizar funções executivas mas apenas de representação, só deste modo se poderão afastar os que estão mais interessados em proveitos próprios que nos interesses comuns.

Devolver-se-ia, deste modo, às populações a capacidade de iniciativa dos seus próprios interesses e reduzir-se-ia a intervenção directa do Estado ao nível da célula social.

Dou-lhe um exemplo concreto: Uma junta de freguesia urbana assume actualmente, entre outros e à falta de atribuições mais adequadas aos seus fins, o papel de organizador de excursões. Uma dessas excursões foi até ao estrangeiro. Claramente que não foram na excursão os mais desfavorecidos da freguesia, a esses geralmente apoquenta-os desde logo a perspectiva das viagens, nem os doentes e muito menos os doentes acamados. Foram os mais favorecidos. É fácil de prever que uma junta de freguesia destas tem, desde logo, garantidos os votos dos excursionistas.

A mesma junta edita uma revista mensal a cores. Com artigo de fundo e fotografia da presidente na primeira página e as dos outros vogais na página seguinte. Também dá votos embora possa fazer perder alguns junto de uns quantos que costumam interrogar-se.

A lista pode prolongar-se, a imaginação não tem limites desde que o dinheiro seja dos outros. Os votos recolhidos são geralmente directamente proporcionais às liberalidades dos autarcas.

Agora o caso de uma freguesia rural: Como já não tem de cuidar dos caminhos vicinais porque as terras estão ao abandono, faz calçadas e outras fachadas. É igualmente propenso à organização de excursões mas interessa-se e apoia sobretudo a actividade futebolística e, se possível, convence o município a instalar mais um polivalente desportivo. E tudo celebrado com música, foguetes e placas a dourado quase mais largas que os objectos inaugurados.

É a invasão do Estado naquilo que ainda eram áreas de expressão dos interesses, do engenho e até das pequenas rivalidades dos cidadãos voluntariamente organizados.

Como às autarquias não está cometida a responsabilidade de liquidar e cobrar impostos o Governo Central assume o odioso da imposição cobrindo-se as autarquias com os louros dos gastos. É a política jardineira à moda da Madeira.

Assim se explica a razão pela qual, em Portugal, os governos centrais são tão voláteis e no poder local se conserva tanto dinossáurio. Do site da Comissão Nacional de Eleições, http://www.cne.pt/, retiram-se os seguintes resultados concludentes a este propósito:

Entre 1979 e 2005 observou-se a seguinte renovação de presidente das câmaras:

Número de diferentes presidentes Percentagem de municípios

1 3,86
2 12,22
3 27,01
4 30,55
5 16,72
6 7,07
7 1,93
8 0,64

Este quadro faz parte de uma comunicação apresentada recentemente na 3ª. Conferência do Banco de Portugal por Susana Peralta, da UNL, “Budget Setting Autonomy and Political Accountability” que conclui pela recomendação de serem atribuídas às autarquias responsabilidades na liquidação e cobrança das suas receitas de modo a poder conseguir-se maior transparência nos gastos públicos e melhor qualidade dos autarcas.

Na realidade, se alguém, no seu perfeito juízo souber que uns vizinhos seus andam a passear à sua custa, como reagirá? Indigna-se, claro. Mas se os dinheiros chegam á junta de forma para ele invisível o que acontece? Ou não dá por nada, ou tenta ele próprio embarcar para a próxima no autocarro. Alguém, que não ele, pensará ele, terá de pagar a conta.

Ainda há tempos almoçava num restaurante da Carapinheira um grupo animado de uns quarenta excursionistas. Não sei quem pagou o repasto mas sei que o autocarro que os transportava tinha bem visível a indicação de pertencer à Câmara Municipal de Oeiras. Trata-se apenas de um exemplo, entre muitos, do desgoverno com que se gastam os dinheiros públicos, os nossos, portanto. Para proveito particular de alguns e das suas súcias.

O que não invalida que não se reconheça que muita coisa boa, apesar de tudo, foi feita por autarquias, não sendo legítimo meterem-se os autarcas todos dentro do mesmo saco do oportunismo e da desonestidade.
Mas ninguém hoje tem dúvidas, a menos que ande ou queira andar distraído, acerca da perversão que atravessa muitas das obras das autarquias, sustentadas na trindade do poder autárquico, do poder do futebol e do poder dos construtores civis.

A obra de cimento é a mais fácil de realizar. Com dinheiro alheio é facílimo. Mas embasbaca sempre muita gente que supõe que o dinheiro que a comprou caiu do céu.

Daí os votos que alimentam os dinossauros.

Sunday, February 19, 2006

PETROPOLITIK



Meu caro Joaquim,

Perguntaste-me, a que título se impede o Irão de desenvolver projectos de produção de energia nuclear, ainda que para fins bélicos, se os Estados Unidos, a Rússia, a China, a Índia, o Paquistão, a França, a Inglaterra, Israel, e não sei mais quantos, não desarmam e se arrogam o direito de continuarem a ter arsenais nucleares e a Coreia do Norte continua, aparentemente sem grande oposição, a trabalhar naquele sentido.

Quero pensar que tu, com tua pergunta, só querias dar corda ao realejo, mas estou convicto que há muita gente bem pensante que por desfastio ou moda anti americana acha, ou supõe achar, que se os americanos têm tanta bomba porque é que os outros, por exemplo os persas, não hão-de ter também o seu brinquedo atómico. Posta desta forma, a coisa até parece ser uma questão moral: se há moralidade, todos temos de ter a bomba!

A estes os moralistas não causam engulhos as bombas já espalhadas mas as bombas por espalhar. É mais ou menos a preocupação que tu terias se o teu vizinho do apartamento ao lado armazenasse em casa um barril de pólvora mas os outros nos andares em baixo e nos andares em cima não tivessem ainda feito o mesmo. É a moralidade do quanto mais pólvora, melhor.

A mim preocupa-me esta estranha forma de moral porque, desta vez, se houver um rebentamento no paiol, mesmo que seja por descuido, vai tudo pelos ares, incluindo os nossos netos, não sei se já tinhas pensado nisso.

A “Realpolitik”, não sendo, no campo dos princípios, eticamente louvável, é fundamental para dar tempo ao tempo de assegurar que as ameaças se desfaçam e a humanidade continue. A diplomacia, já alguém o disse, é a continuação da guerra por outros meios, e, neste mundo perigoso em que vivemos, quando a diplomacia falhar no último instante, a Terra continuará, provavelmente, ser uma bela bola azul às voltas no Universo, mas medonhamente silenciosa porque até os grilos terão morrido nas suas tocas.

A “Petropolitik” (não sei se o termo já existe) é uma forma particular da “Realpolitik” e assenta na conjugação dos factos seguintes:
No Médio Oriente encontram-se cerca de dois terços das reservas petrolíferas mundiais conhecidas, (no Irão, em particular, encontram-se as segundas maiores reservas do mundo); não existem, de momento, alternativas energéticas suficientes e as perspectivas de mudança são demoradas; os movimentos que no Médio Oriente lutam pela tomada do poder, o mais mediático dos quais é a Al-Qaeda desfruta, generalizadamente, naquela região do globo de níveis de popularidade elevados e crescentes, têm como objectivo confessado dar o xeque-mate à civilização ocidental através do garrote no abastecimento petrolífero, porque sem petróleo o mundo desenvolvido não sobrevive.

A estratégia destes movimentos terroristas, nem sempre aliados e frequentemente inimigos entre si, tem um objectivo primordial (a tomada do poder mundial), uma bandeira (o Alcorão), um trunfo (o petróleo), precisam de armas nucleares para jogarem o trunfo à medida dos seus desígnios.

O Alcorão, segundo Suleiman Valy Mamede, que foi presidente do Conselho Directivo do Centro Português de Estudos Islâmicos, é tratado com suma reverência pelos verdadeiros crentes, de tal modo que na capa aparece muitas vezes uma inscrição proibindo que seja tocado com mãos sujas ou por qualquer pessoa em estado de impureza. Note-se que o Alcorão, entre os crentes, é um verdadeiro Código da Vida…” .

O Alcorão, em muitos casos, é sobretudo, um Código de Intolerância e de Incitamento à Guerra. Entre outros preceitos, o Alcorão determina, por exemplo, no cap. IX. vers. 38 a 52 (Manifesto de guerra) : “Combatei quer estejas mal ou bem armados! Combatei com as vossas riquezas e as vossas pessoas na senda de Deus: isso é melhor para vós, já sabeis.”

As despropositadas manifestações na “rua muçulmana”, a propósito dos cartoons dinamarqueses demonstram, inequivocamente, que aquela gente é embriagada pela religião e manipulada pelos pretendentes ao poder. Os cartoons, publicados há seis meses atrás, num jornal de pouca visibilidade e dirigido por indivíduos ligados à extrema-direita, foram o pretexto que se não tivesse existido teria sido inventado.

A atitude, mais ou menos condescendente, dos países ocidentais perante tanta diatribe e ódio não pode ser se não entendida como a hipoteca da alma ocidental ao diabo para não vir a estiolar de sede de petróleo. É a “Petropolitik”, a forma mais acabada mas disfarçada de medo universal. A discussão que a histeria muçulmana provocou nos países ocidentais tem de entender-se como uma diferença de opiniões entre os pragmáticos que usufruem dos benefícios dos derivados do petróleo, que são muitos, e aqueles que usufruem desses mesmos benefícios mas que não se aperceberam ainda, por miopia política ou falta de informação que um dia destes poderão estar sitiados numa fortaleza sem abastecimentos.

Isso acontecerá no dia em que o Presidente do Irão, que faz questão de negar o Holocausto, convicção que se lhe alojou, irreparavelmente, na cabeça depois de uma vida a recitar o Alcorão, puder premir o botão que arremessará a sua primeira ogiva nuclear.

Oxalá me engane!

Ua xa illah! (e queira Deus)

Sunday, February 12, 2006

CONTOS DA ÁGUA TÓNICA 3

ROUBO A CIMENTO ARMADO

Um dia destes dir-nos-ão: Definitivamente, o Estado Social morreu.

Custo verdadeiro vai-se construindo ao longo da obra, depois de derrapagens ciclópicas
O grande embuste do preço das obras públicas 12.02.2006 - 07h34 Carlos Romero PÚBLICO

Os preços de boa parte das obras públicas em Portugal são feitos com base numa sucessão de mentiras. A começar no preço inicial ditado pelo dono da obra e a acabar nas propostas das construtoras.
A derrapagem dos custos das obras é um dos "emblemas" da administração pública portuguesa. Há descontrolos para todos os gostos, desde os já lendários do Centro Cultural de Belém ou da Casa da Música, até aos mais comezinhos das obras municipais. A regra é a derrapagem, a excepção é a coincidência entre o valor posto a concurso e o preço real da empreitada. Toda a gente sabe que é assim: desde os organismos do Estado e as câmaras, aos projectistas e construtoras. E todos aprenderam a viver num sistema em que a simulação, a hipocrisia e a mentira constroem uma nebulosa de interesses e conluios onde tudo é possível e o rigor orçamental sai de rastos.
Está em curso mais uma tentativa de remediar um problema que, não sendo lusitano, ocorre "em maior escala e mais frequentemente" em Portugal, conforme assegura Reis Campos, presidente da AICCOPN, a maior associação de empresas de construção do país. O Instituto de Mercado de Obras Públicas, Particulares e do Imobiliário (IMOPPI) está a preparar alterações legislativas, designadamente sobre empreitadas e contratação de bens e serviços pela administração central. É uma boa ocasião para mergulhar no penumbroso mundo das obras públicas, tentando perceber as linhas com que se cosem os protagonistas ligados a empreendimentos onde se gastam anualmente centenas de milhões de euros saídos dos bolsos dos contribuintes.Onde está o cerne do problema das derrapagens? Por vezes, refere Ponce Leão, presidente do IMOPPI, "a culpa é dos três" (da construtora, do projectista e de quem encomenda), mas importa "olhar com muita atenção para o projecto, e quem comanda o projecto é o dono da obra". O líder da AICCOPN vai mais longe: "O dono da obra não planeia bem, subavalia os custos e, por vezes, não sabe o que quer". Esta indefinição leva a uma das práticas mais frequentes nas câmaras - o efeito "já agora" -, como admitiu o autarca poveiro Macedo Vieira; trata-se de aproveitar a asfaltagem de uma rua, por exemplo, para, "já agora", mudar os postes de electricidade e as papeleiras, alcatroar as ruas adjacentes e por aí fora, subvertendo completamente o projecto e o custo iniciais. Desvalorizar o projectoRui Furtado, da empresa de engenharia Afaconsult, fala em "subavaliações drásticas" dos preços das empreitadas feitas por quem lança o concurso, e Helena Roseta, presidente da Ordem dos Arquitectos, acusa mesmo os organismos públicos contratantes de fazerem uma "subavaliação deliberada e intencional dos custos finais, por razões que se prendem com as condicionantes orçamentais e com a aceitação pública das obras que se pretendem lançar" (ver texto de opinião). Em resumo, a grande mentira dos preços das obras públicas começa com a definição inicial, "política" e completamente irrealista, do valor das empreitadas. É uma forma de "resolver", com preços mentirosos, um problema tão simples como o levantado por Rui Furtado: "Se se dissesse, à partida, que o CCB ou a Casa da Música custavam 30 ou 40 milhões de contos, não se faziam!".O segundo passo para o embuste dos preços está em projectos pouco rigorosos e incompletos. Um problema que decorre, em boa parte, da suborçamentação das obras por parte dos organismos públicos e do pouco investimento que é feito nas fases que antecedem as empreitadas, decisivas para o controlo dos custos. A desvalorização do projecto pelo dono da obra pode ter consequências dramáticas. Para ganhar concursos e assegurar trabalho, os projectistas concorrem por preços "impossíveis", com base em tabelas de há três décadas actualizadas em 1986, e com descontos que chegam aos 50 por cento, disse ao PÚBLICO uma empresa do ramo. Resultado: depois do concurso ganho, ou as empresas arranjam maneira de chegar ao preço justo, ou recorrem a "soluções" rápidas de cálculo que, por falta de rigor e ao jogarem pelo seguro, implicam maiores gastos de betão, de ferro e outros materiais, provocando derrapagens que podem chegar até aos 30 por cento do custo da obra.A ficção dos preços completa-se com as construtoras. "Para uma obra de três ou quatro milhões de contos, aparecem propostas de dois milhões ou pouco mais, porque o construtor sabe que, ganhando a obra, depois pode conseguir na secretaria algumas coisas", refere Reis Campos, da AICCOPN. A crise em que vive o sector potencia esta inclinação para propostas demasiado baixas, inferiores, em muitos casos, ao preço-base de referência que, em Portugal, é tido como um valor mínimo. Gerardo Saraiva, líder da secção do Norte da Ordem dos Engenheiros, coloca a questão nos seus devidos termos: "Muitas vezes, as construtoras apostam o seu orçamento precisamente nas debilidades e indefinições do projecto". Assim, diz Reis Campos, "há obras paradas porque, mal o construtor pega na empreitada, entra quase imediatamente em conflito com o dono da obra", à procura de um furo para "corrigir" o preço. As centenas de faxes dirigidos ao dono da obra pela construtora da Casa da Música, ao tomar conta da empreitada, ilustra a estratégia de "criar casos" que abram a porta às revisões de preços, por trabalhos a mais e todo o tipo de expedientes que corrijam valores contratados demasiado baixos.

Friday, February 10, 2006

CONTOS DA ÁGUA TÓNICA 2


Meu Caro Luciano

A 3ª.Conferência sobre a Economia Portuguesa promovida pelo Banco de Portugal teve, pelo menos, a vantagem de trazer a Portugal o Prof. Olivier Blanchard que, sem nos ter dado a receita ideal para ultrapassarmos a crise, alertou para alguns aspectos que contrariam algumas ideias feitas e vendidas por gente ilustre neste País.

Desde logo, é de realçar o facto de a sua comunicação – Adjustment within the euro. The difficult case of Portugal - se conter propositadamente, ou não, dentro do cenário actual da nossa inclusão no euro. Pode sempre considerar-se que a saída do euro não foi encarada por Olivier Blanchard, porque seria uma hipótese que, em primeira instância, é de natureza política, não sendo útil trabalhar essa alternativa. De qualquer modo, é de realçar o facto de não ter havido uma única intervenção ou interrogação dos participantes na Conferência, e estava lá muita gente ligada ás Universidades, ao Banco de Portugal e à Administração Pública, sobre a proposta do Prof. Ferreira do Amaral (vd post neste blog - O Euro e Eu).

E foi pena: porque tivemos uma ocasião soberana para obter de um reputado macro economista do MIT uma opinião que além de ser, seguramente fundamentada, teria a vantagem de ser formulada por alguém com suficiente distanciamento para não se prender a razões não estritamente científicas.

As perspectivas formuladas por Blanchard só não são terrivelmente inquietantes porque a maior parte dos portugueses não tem percepção delas e a outra parte faz como o macaco da anedota: encosta-se a um canto à espera que a vontade de trabalhar lhe passe. Aliás, quanto às conclusões, Blanchard disse praticamente o mesmo que Victor Constâncio na abertura da Conferência: a saída da crise e o relançamento do crescimento económico está na redução dos salários reais (chamou-lhe desinflação), pelo menos tanto quanto eles se apreciaram relativamente aos outros parceiros no euro. Porque, se é certo que os salários médios em Portugal se situam ainda bastante abaixo dos que são pagos no grupo dos 15, houve nos últimos 10 anos uma recuperação que excedeu os ganhos de produtividade observados no mesmo período.

A alternativa é aumentar a produtividade ou fazer uma coisa e outra, mas quanto aos aumentos de produtividade os resultados serão demorados e terão como contrapartida taxas de desemprego mais elevadas.

Claro que a redução dos salários reais é uma questão tabu, ninguém vai avançar com ela a não ser em situação de ruptura inadiável.

Mas Blanchard também disse, citando o Relatório da Mckinsey, pago em 2003, sobre a produtividade em Portugal, na altura foi muito falado mas depois arquivado, que o gap de 48% de produtividade entre Portugal os cinco países da EU com valores mais elevados, se devia em 16% a factores estruturais e 32% a factores não estruturais, e que estes poderiam ser corrigidos com medidas apropriadas aumentando a produtividade anualmente em 2,5% nos (então) próximos 10 anos.

Outro aspecto referido por Blanchard, que contraria uma opinião muito generalizada, que eu não partilho (vd. post neste bolg “A estrada da Beira e a beira da Estrada), é a questão que coloca a bóia salvadora na educação e no plano tecnológico. É por demais óbvio que não tendo 75% da população portuguesa completado o ensino secundário, o crescimento da produtividade e, em consequência, do crescimento económico, é limitado por este enorme handicap estrutural. Mas também, por essa mesma razão, não pode deixar de contar-se com esse handicap nas políticas de crescimento e emprego, precisamente porque afecta a maior parte da população activa e grande parte dela não tem hipóteses de reconversão para funções muito mais exigentes do que aquelas realizaram toda a vida. Por outro lado, a reconversão dos reconvertíveis será sempre demorada, considerando a premência de medidas que permitam a retoma da economia e a convergência com a EU a curto prazo.

Pergunta Blanchard: “Is it essential for Portugal to improve productivity in the high tech sector and increase its share of high-tech exports? The answer is, I suspect, no…
A more obvious comparative advantage, and one which is likely to remain for a long time, is in tourism. “

Não penso que Portugal tenha de resignar-se à prestação de serviços pessoais como o maior pilar da nossa economia (Blanchard refere a experiência espanhola de acolhimento de reformados de elevados recursos, que representa transferências anuais para o país vizinho de um montante equivalente a 2% do PIB português); é imperioso o fortalecimento das nossas capacidades científicas e técnicas em graus susceptíveis de criar bens e serviços de maior valor acrescentado mas não pode ignorar-se a população que não tem meios de acompanhar passadas que excedem o comprimento das suas pernas.

É ainda muito interessante a análise que Blanchard refere, a título de exemplo, citando outra vez, o Relatório de 2003 da Mckinsey, a propósito do gap de produtividade na construção civil em Portugal relativamente aos Estados Unidos da América.

“The study found that productivity in residential construction was only 38% of the level in the benchmark country, in this case de United States. The main proximate causes behind this 62% gap were the lack of standardization in design and construction – for example underutilization of prefabricated materials – which accounted for 22% (one third of the gap); poor design – for example high levels of rework – which accounted for another 15%; inefficient execution – for example underutilization of labour and machinery - which accounted for another 10%...”


O caso da baixíssima produtividade na construção civil é apenas um dos exemplos flagrantes dos níveis de corrosão que impedem o relançamento da economia portuguesa e que decorrem de um factor que não foi abordado: o fomento da concorrência. Não se promove a produtividade se não se promove a concorrência. William W. Lewis, que foi partner da Mckinsey & Company durante vinte anos e fundador de Mckinsey Global Institute, refere repetidamente isto mesmo na sua obra "The Power of Proctivity" , The University of Chicago Press, 2004.

A situação que caracteriza a construção civil em Portugal denuncia um enviesamento no funcionamento do mercado que inibe o crescimento da produtividade num sector fundamental: a produtividade é baixa, os custos são elevados, a oferta excede a procura, os stocks engrossam, os preços mantêm uma tendência fortemente crescente, os lucros atraem e deslocam recursos das produções e serviços transaccionáveis.

Porquê?

Ora porque bebem da água tónica, pois claro.

Tuesday, February 07, 2006

CONTOS DA ÁGUA TÓNICA


A história é antiga mas repete-se a cada passo: um amigo dos copos costumava desdobrar os chutos com água tónica, bebia gim com água tónica, ficava bêbado, bebia vodka com água tónica, idem, bebia whisky com água tónica, bêbado ficava, bebia rum…, bebia tudo quanto era álcool com água tónica, mesmo que o casamento nem sempre fosse feliz, e embebedava-se. De modo que concluiu que a água tónica embriaga mesmo.

Conclusões semelhantes extraem alguns comentadores e atentos observadores da realidade circundante seja ela política, económica, ou qualquer outra.

Alguns exemplos:

Lucros da banca portuguesa explicam-se por ser o único sector do país ao nível do topo mundial, disse ontem o Presidente do MillenniumBCP em entrevista na Antena 2, Público e Rádio Renascença.

O Presidente do BES, em entrevista dada antes no mesmo programa dissera, sobre o assunto, praticamente o mesmo. Em outras ocasiões ouvimos convicções parecidas. Os banqueiros deste País, e só eles, bebem de uma água tónica qualquer que os transmuta em génios de gestão empresarial. Os outros, bebem qualquer água tónica e não passam de Pedro.

Porque ninguém pergunta: Como é que todos os Bancos são altamente rentáveis, porque é que todos os Bancos são superiormente dirigidos, porque é que todos eles são casos de sucesso, porque é que, até hoje, nenhum falhou, porque é que o BCP subiu como um foguete no meio de uma economia de caracol, porque é que o BPI, o BANIF, Financia, o Banco Privado Português, todos, crescem, crescem, crescem, e os seus presidentes são sempre tão bem sucedidos, como é que o BPN fulgura e até a Caixa, imaginem a Caixa! um banco do Estado, um paquiderme, arrecada milhões e deita foguetes independentemente do Presidente e vogais que o Governo nomeia. Até hoje, nenhum banqueiro falhou, ou se falhou, falhou tão pouco que não se deu por isso. São todos excelentes. Acaso? Tanta competência num contexto em que ela é tão rara deve-se à ingestão de alguma rara água tónica.

Em contrapartida os gestores da indústria neste país são geralmente pouco espertos porque não bebem o que deviam. O próprio engenheiro Belmiro, malgré lui, tem tido mais problemas do que contava com o seu sector industrial e é sobejamente sabido que não foi nele que fez fortuna, quanto muito deu-lhe um pouco de altura inicial, assim uma espécie de banquito parecido com aquele de onde as pessoas se esticam para ver as marchas passar. Dá a impressão que o engenheiro bebe o que deve mas tem fases de hidrofobia.

Se os seus negócios da distribuição do engenheiro não se situam a nível do topo mundial, na opinião do presidente do BCP, os seus proveitos, segundo tudo leva a crer, não se ficam atrás dos seus pares banqueiros. Hoje mesmo ficámos a saber que o engenheiro está novamente a atirar isco para o charco, e se não é desta que apanha a PT, alguma coisa vai, certamente, ganhar o engenheiro com a jogada. De que água se saciará o engenheiro? Terá, também ele, acesso á poção mágica e os banqueiros não sabem?

Mas há, seguramente, mais gente a beber do fino. O sector de construção civil e obras públicas, por exemplo, está recheado de casos a merecerem teses de doutoramento. Na PT, a tal água tónica é certamente dada a beber aos presidentes e vogais nomeados, porque todos eles, sem excepção, têm desempenhado as suas funções com brilhantismo que só os desígnios governamentais não reconhecem quando alternam. Se os deixarem lá chegar, os Azevedos, excederão todos os que os antecederam a beber da tónica com que a PT conta.

Noutro lado, alinham aqueles que não bebem a tónica que deviam beber: geralmente nos sectores primário e secundário, aonde só vão parar, aparentemente, gestores incapazes ou, quanto muito assim-assim.

E, contrariamente à versão dos banqueiros, o sucesso de uns e o desastre dos outros, não é uma fita recente, é uma história antiga. Industriais com I grande estão para aparecer em Portugal, alguns deram um ar da sua graça, mas, seguramente, nenhum bebeu da tal tónica ou não bebeu o suficiente.

Se nas telecomunicações sabem do que bebem nas comunicações, geralmente, não bebem do que deviam. O actual CEO da TAP parece ter dado meia volta ao texto mas não escapa ao contexto. Definitivamente, á CP, à Carris, ao Metro, e a outras artes equiparadas só arribam lázaros.
Porque é que ninguém lhes diz onde se bebe a tal água tónica?








Saturday, February 04, 2006

EUROSNOSSOS

Caro João!


Entendo bem a sua estranheza perante as minhas considerações a propósito do nível de lisura e honestidade que habita neste País. Claro que não temos o monopólio das desgraças mas é, lamentavelmente uma realidade triste, que de cada vez que sai uma lista negra lá estamos, geralmente, a ocupar os lugares cimeiros. Em matéria de corrupção e quejandos alinhamos ao lado dos subdesenvolvidos. Aliás, o nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros reconheceu isso mesmo aqui há uns meses, e foi criticado por o ter dito mas o que disse não foi contestado.

É certo que não nos emendaremos por cantar o fado mas também não progrediremos a assobiar para o ar.

Este País, contrariamente ao que se diz, não é de brandos costumes mas de desculpas recíprocas, do género faz lá tua vigarice e deixa-me fazer duas. Como no meio da confusão o interveniente mais desprevenido é o Estado, e o Estado é um ente abstracto que convém tramar, quem engana o Estado tem direito a passe doble e corte de orelha.

A nossa discussão foi suscitada à volta do tema Eurominas tendo-se o meu amigo esforçado por nos dar conta dos meandros percorridos pelo dito processo. Retive a ideia fundamental do seu raciocínio: o governo de Cavaco Silva teria tomado uma decisão ilegal e a prova dessa ilegalidade estava no facto de em Comissão Arbitral terem sido posteriormente reconhecidos os direitos da Eurominas anteriormente postergados.

Uma Comissão Arbitral onde uma das partes é o Estado é, a meu ver, uma Comissão suspeita porque quem representa o Estado defende os interesses do representante e não do representado, interesses esses que podem ser eventualmente divergentes. Ficava mais tranquilo, apesar de tudo, que o assunto tivesse sido julgado em Tribunal.
Eu não conheço o processo, tal como a maior parte das pessoas fui alertado para o assunto a partir de um artigo saído recentemente no jornal O Público, sei que foi aberto inquérito parlamentar, sei que a maioria PS pretendeu encerrar o processo abruptamente, sei que depois terá reconsiderado.

Independentemente do que vierem a ser as conclusões daquele inquérito e das razões que assistem ou não á Eurominas e, por tabela, ao governo que na altura anulou o despacho anterior e mandou indemnizar aquela Empresa, o que eu sei é que o Estado foi desembolsado de um valor muito significativo e quem pagou a factura resultante de um acto político sem contrapartidas foram os contribuintes.

E é esse o busílis da questão: como contribuintes fomos, aqueles que cumprem as suas obrigações fiscais, chamados a contribuir para o pagamento de um erro grave. Quem o cometeu, não sei.

Mas as consequências negativas deste caso vão para além de uma contribuição espoliada. Já não é segredo para ninguém que o Estado está á beira de um colapso financeiro, e aqueles que sofrerão as consequências mais penosas de uma travagem, brusca ou programada, são aqueles que vão neste autocarro gripado com menos base de apoio, isto é, os reformados e outros pouco previdentes.

Claro que o caso Eurominas nem seria um problema assim tão grave se fosse original, mas infelizmente não é. Todos sabemos que a irresponsabilidade na gestão dos dinheiros públicos campeia, muitas vezes ganha votos e frequentemente prescreve.

Caro João: Se lá chegarmos e ao sentirmos que, após quarenta e muitos anos de obrigatórias e volumosas contribuições para a Previdência, nos estão entrando no bolso, gritarmos, agarra que é ladrão!, teremos razão ou falta de educação?

Thursday, February 02, 2006

O EURO OU EU



Meu caro Luciano,


Já tentei adquirir o livro do Prof. Amaral mas não consegui. A obra parece estar esgotada, aliás é uma edição de 2002, eu pensava que fosse coisa recente mas não é. De qualquer modo deve ter consistência suficiente para resistir às agruras do tempo, quando puder comprar, compro.

Até lá, e para testar as minhas impertinências com as sapiências vou alinhavar umas quantas questões acerca do tema que levou o homem a ficar encrespado comigo, ao que parece.

Disse ele, que existiam fundamentalmente duas ordens de razões que justificavam a nossa crise e impediam que dela saíssemos: uma, indiscutível, tem a ver com a conjuntura envolvente: somos uma pequena economia aberta, quando os parceiros dormem nós ressonamos; outra, que para o Prof é igualmente indiscutível mas que, para quem não leu sequer as duas primeiras páginas dos manuais persistem em não ver, parece menos nítida: o Euro.

O Euro, segundo o Prof. Amaral (mas também segundo o Manual Monteiro, que foi do CDS, crismou em PP, e depois fundou a Nova Democracia) foi a peste que nos entrou em casa. Com o Euro lá se foram as nossas possibilidades de fazermos as nossas desvalorizações, com o Euro, enfim, e isto é que é verdadeiramente dramático, perdemos competitividade. Segundo o Prof. Amaral, cerca de 25%.

Ora, como sabes, eu quando não percebo digo que não percebo, quando não estou de acordo digo que discordo. Foi o que aconteceu há dias.
É claro como água do Mondego, quando não vai turva, que se se desvaloriza a moeda em que pago os meus custos e facturo em moeda forte o que produzo, arrecado a desvalorização. Até aqui não há dúvidas nem necessidade de ir aos Manuais. Passar-se-ia o mesmo se eu não pagasse os encargos sociais ou não aumentasse ou reduzisse os salários dos meus colaboradores. Os chineses são competitivos porque não têm essas chinesisses a que os ocidentais chamam o sistema social europeu, nem toleram greves, e ainda por cima são eles, e não o mercado, quem diz quanto vale um yuan. A propósito consulta www.chinarevaluation.com.
Claro que quem paga a conta são os chineses: podiam viver melhor mas persistem em continuar a fornecer-nos a preços da Maria Caxuxa. Até quando, veremos. Os chineses são competitivos porque ganham muito mal mesmo quando comparados com os nossos baixos salários mínimos.

Se, para dar vigor às nossas indústrias decadentes, desvalorizássemos, o efeito seria como o do viagra: era para o momento e punha-se a andar. Ora, ao que parece, o uso do viagra acaba por dar cabo do canastro a médio prazo. O mesmo aconteceria com a desvalorização para aumentar a competitividade: momentaneamente havia a ilusão do vigor regressado e depois o desconsolo da realidade dura.

Se não vejamos:

Quem é que o soçobrou? Fundamentalmente as indústrias do sector têxtil, das confecções, do vestuário e, em certa medida, do calçado. Perante quem? Perante os produtores de custos mais baixos, chineses e tutti quanti.

Se desvalorizássemos para competir com eles, quanto teríamos que desvalorizar? Os tais 25% de que fala o Prof. Amaral? Não davam. Todos sabemos que não davam.
Mas admitindo que desvalorizávamos, teríamos desde logo que pagar mais caras as matérias-primas e a energia importadas. Estamos de acordo, não?

Mas a desvalorização pressupõe inflação, uma coisa arrasta a outra, sobretudo se somos, e somos, muito pouco auto suficientes. Ora se os preços aumentam os trabalhadores ou vêm os seus salários aumentados (e lá se vai a vantagem competitiva da desvalorização) ou passam realmente a ganhar menos. Continuamos a estar de acordo?

Entretanto passar-se-á uma coisa que só quem não quiser ver não vê: os “empresários” dos sectores em crise ao receberem as vantagens imediatas da desvalorização que fazem? Investem para se tornarem mais competitivos em termos de custos dos factores? Inovam para competir a outros níveis de qualidade? Não fizeram nem uma coisa nem outra quando tiveram essas possibilidades. Muitos compraram carros de luxo, abriram contas no estrangeiro, passaram-se para o imobiliário.

Que o problema não é o Euro demonstra-o o facto de salvo alguns, poucos, persistirem no argumento, praticamente ninguém saiu a terreiro contra o Euro. A Auto Europa ameaçou, recentemente, sair daqui, ficou toda a gente alarmada, o governo ter-lhe-á dado garantias e mais vantagens mas ninguém falou do Euro.

Diz o Prof Amaral que o Euro é como a guerra em África: não se sabe quando, mas um dia vai acabar. Tudo é possível, claro. Até as aparições.

Só não compreendo é como é que ele acha possível acabar com o Euro sem acabar com a União Europeia. Pus-lhe a questão, como viste, respondeu-me que as desvalorizações teriam de ser negociadas. Sempre ouvi dizer que as desvalorizações se fazem muito secretamente às sextas-feiras à tarde. É possível anunciá-las com antecedência?

Eu não tenho lá grande coisa para safar, de qualquer modo com vinte e quatro horas de antecedência sou capaz de abrir o meu pequeno chapéu-de-chuva.