Foi há cinquenta anos, lembro-me bem, entrei no estabelecimento do Tio, estava ele às voltas com uma escrituração qualquer que, por alguma razão que ele não contou, não estava a dar certo. Quando me viu atirou, sem dizer bom dia: vens mesmo a calhar, tu é que podias passar a enviar notícias para a VF. Ele era o correspondente local do jornal, não ganhava nada com isso para além da assinatura gratuita, valha a verdade que a incumbência não dava grande trabalho, mas era mais uma preocupação, e ele tinha tantas, por isso queria passar a pasta.
Nesse tempo, os jornais noticiavam a guerra no outro lado do mundo, e eu acompanhava entusiasmado o relato sincopado que os correspondentes de guerra me enviavam ao domingo, porque os diários não chegavam lá aos dias de semana. De modo que se me tivessem, então, perguntado, mas ninguém perguntou, o que é queria ser quando fosse grande, teria respondido sem hesitação: correspondente de guerra! Com catorze anos não o fazia por menos.
A sugestão do Tio não podia encontrar, portanto, entusiasmo maior que o meu: instantaneamente promovi-me de correspondente local de um semanário de província a correspondente de guerra no sudoeste asiático de um qualquer jornal nacional.
Na manhã do dia seguinte, uma segunda-feira, estávamos, o Tio e eu, a bater à porta da redacção da VF. Atendeu-nos, sorridente, o senhor CC do lado de dentro de um balcão que fazia um pequeno hall com a porta de entrada. O senhor CC aceitou, sem restrições, a proposta do Tio e ficou combinado que, a partir daquela data, quem passava a dar conta das notícias era eu, correspondente da VF na freguesia. O jornal saía às quintas-feiras, se quisesse ver a minha prosa em letra redonda no próximo número não tinha tempo a perder.
Logo na tarde desse dia quis ensaiar a notícia inaugural e andei à pesca de assuntos mas não apareceram os espécimes do costume. Geralmente, o Tio dava conta de casamentos, nascimentos, baptizados e enterros, de vez em quando de aniversários dos notáveis locais, assinantes do jornal, outras vezes de visitas de emigrantes bem sucedidos em férias.
Nessa semana não se passou nada digno de notícia, um facto bizarro confirmado pelo sacristão, fonte geralmente bem informada. Tinha morrido o Silvestre mas o Silvestre não era assinante do jornal nem havia potencial na família, o Tio disse que casos desses não eram publicáveis. A questão das notícias era assim bem mais complicada do parecia à primeira vista: para aumentar o universo de noticiáveis o correspondente era compelido a promover as assinaturas e esperar que, dos assinantes, fossem alguns casando, procriando, visitando a terra, morrendo, caso em que se impunha trabalhar pela reposição do universo assinante.
Sem notícias aceitáveis, não quis perder a oportunidade de entrar na impressora logo na primeira semana e lancei mão de uma peça que me causava engulhos.
A aldeia, naquele tempo, era o mundo em miniatura: a maior parte da população ainda se dedicava a trabalhos agrícolas, enrolada numa economia de subsistência que os forçava a produzir um pouco de tudo: milho, trigo, centeio, aveia, favas e ervilhas, grão de bico e chícharo, feijão verde e feijão de todas as caras conhecidas, arroz nas terras baixas do Mondego, batatas, nabos, vinho, couve de toda a espécie e feitio, alface, agrião não, o agrião apanhava quem apreciava no ribeiro, cebolas, alhos, abóboras no meio do milho, abóboras-meninas e abóboras-porqueiras, frutas várias no meio da vinha, azeite, porcos, matavam-se pelo Natal, guardavam-se as carnes gordas na salgadeira, vacas, cabras e carneiros, galinhas, sardinha trocava-se por galinha, patos, perus, ás vezes gansos, uma lista longa que quase todos cumpriam, as diferenças viam-se pelas quantidades que cada um produzia, um bom indicador era contar os palheiros nas traseiras do quintal ou as pipas na adega. Mas não havia grandes proprietários, havia os mais e os menos remediados, e os que trabalhavam por conta daqueles e amanhavam umas courelas mais pequenas por sua conta. Nos terrenos sem vocação para culturas hortícolas ou de cereais e não crescia a vinha ou olival semeavam-se os pinhais, eram raros os terrenos incultos. A aldeia, vista a esta distância temporal, era um jardim onde cada um tratava o seu canteiro com uma dedicação religiosa e um frenesim competitivo: pelo S. Martinho discutia-se quem tinha tido o engenho e arte de ter produzido a melhor pinga, o vinho era o emblema da qualidade de cada pequena casa agrícola. Na Primavera, aldeia pintava-se de todas as cores, espraiando-se o verde dos rebentos por encostas de vinhas e oliveiras e terras baixas onde pespontavam os sinais do pão-nosso de cada dia. Os verdes amadureciam pelo Verão dentro e colhiam-se no Outono, a aldeia só no Inverno abrandava o ritmo e descansava um pouco.
Para além dos pequenos agricultores havia os comerciantes, os artesãos, os operários e os funcionários públicos que ali residiam mas trabalhavam na sede do concelho. A actividade comercial não era muito destacada, a proximidade da cidade retirava-lhe qualquer vantagem, de modo que ia pouco além da mercearia e vinhos. De entre os artesãos, destacavam-se as padeiras: nove na sede da freguesia, mas os agricultores coziam a broa de milho e algum pão de trigo em fornos próprios. Quanto a artífices por conta própria havia de tudo um pouco: sapateiros (três), alfaiates (dois), costureiras (várias), carpinteiros de construção civil e pedreiros (diversos), abegões (dois); um tanoeiro, um caixoteiro; ferreiros (dois), barbeiros (três). Os operários passavam de manhã cedo puxando-se a eles e à bicicleta a caminho dos estaleiros navais e uma ou outra incipiente actividade industrial na sede do concelho; de comboio, deslocavam-se, os ferroviários, os funcionários públicos e ocupações correlativas e os estudantes do ensino secundário. Durante todo o dia havia movimento permanente nas ruas, todos se cruzavam com bons dias, boas tardes, boas noites, consoante, só no pino do Verão ou nos dias de chuva a aldeia dormia a sesta ou acordava mais tarde.
Na aldeia praticavam dois médicos, havia a farmácia, três colectividades de cultura e recreio, duas igrejas, católica e presbiteriana, e três credos diferentes, a igreja adventista tinha praticantes em casa arrendada.
A indústria local contava com uma serração de madeira, duas moagens, uma fábrica de barro vermelho fora de portas.
Havia duas escolas primárias e, surpreendentemente, um Jardim-Escola. Surpreendente, porque era, e continua a ser, a única aldeia do País com um Jardim-Escola João de Deus.
“A história dos Jardins-Escola João de Deus tem origem na constituição da Associação de Escola Móveis pelo Método de João de Deus, fundada a 18 de Maio de 1882, por iniciativa de Casimiro Freire, secundado por algumas personalidades destacadas do seu tempo como Bernardino Machado, Jaime Magalhães Lima, Francisco Teixeira de Queiroz, Ana de Castro Osório e Homem Cristo, entre outros.A Câmara Municipal de Coimbra facultou um terreno (para a construção do primeiro Jardim-Escola) com uma superfície de 4800m2 e o projecto de arquitectura foi oferecido pelo arquitecto Raul Lino, segundo as orientações pedagógicas de João de Deus Ramos.” http://joaodeus.com/associacao/associacao.htm
O Jardim-Escola foi doado á aldeia por Fortunato Augusto da Silva, um benemérito bem sucedido no Brasil, em 1927. É uma obra que não se pode recordar sem um grande estremecimento de alma.
É bem sintomático, contudo, da falta de memória e de gratidão dos locais o facto de o benemérito não ter merecido o nome da rua que passa defronte nem de nenhuma outra na aldeia. Também sintomático do caciquismo retardado e do elevado grau de burgessia envolvente, é o facto de, frente ao Jardim Escola, ter sido colocada placa que domina o pequeno largo e em letras douradas celebra a inauguração de um arranjo urbanístico que consistiu em empedrar uns poucos metros quadrados e traçar num espaço alcatroado os espaços para seis viaturas. A inauguração, reza a placa a dourado, contou com a presença do Excelentíssimo Senhor Presidente da Câmara, Senhor Engenheiro, …., sendo Presidente da Junta o Senhor ….
Quantos passarão por ali e sentirão a vergonha que eu sinto?
Até à chegada da televisão a auto-suficiência da aldeia estendia-se à cultura: entre as colectividades de cultura e recreio estabelecia-se uma competitividade, alimentada por uma rivalidade antiga, que animava todos os serões de domingo com actividades lúdicas que privilegiavam o baile e o teatro, os ranchos folclóricos, e a filarmónica, numa delas. E havia ainda o futebol, claro. Depois chegou o cinema ambulante, de vez em quando, mas foi a televisão que desligou muita gente da colectividade.
Um aspecto que ainda hoje não consigo explicar era a residência, num meio de pequenos agricultores, de uma dezena de famílias que, aparentemente, não tinha afinidades, culturais ou outras, com a parte restante da população residente. Essas famílias não eram originárias da aldeia, algumas tinham ligações familiares e económicas fora dali, a sua integração no meio era estabelecida através das sociedades de cultura e recreio, quase exclusivamente através de uma delas, mas apesar desse facto, não se observou cruzamento familiar com a população tipicamente local.
Outro facto notável era, e ainda é, a existência de várias casas, uma dezena talvez, que pela sua dimensão ou pelo seu porte se destacavam do perfil, naturalmente simples, das restantes habitações do aglomerado populacional. Uma ou outra terá sido construída com fortunas, grandes ou pequenas, importadas do Brasil, mas a inexplicada residência de forasteiros endinheirados pode explicar a construção de outras.
Contudo, uma casa, de entre as demais, interrogava insistentemente os meus catorze anos: a Casa da Renda.
A Casa da Renda ocupa o centro da parte baixa da aldeia, é uma construção de estrutura robusta do Séc. XIX, de dois pisos, o de cima com acesso por escadaria exterior de pedra encimada por um alpendre, e é dominante na configuração urbana traçada, basicamente, ao longo de dois percursos perpendiculares enviesados. Há cinquenta anos, o morro baixo onde levantaram a Casa da Renda, tinha sido murado de modo a que do lado Sul passassem na rua os carros de bois; do lado Norte, a construção chega á rua e esta já era mais larga. Mais tarde o muro do lado Sul recuou um pouco mas ainda hoje o estrangulamento é notório.
Dos lados Sul e Poente do edifício havia ruínas de construções anexas desabadas ou não concluídas e, á volta delas, um pomar onde predominavam as ameixieiras brancas e pendiam por cima do muro as flores e os frutos de romãzeiras.
A Casa da Renda tinha sido habitada pelos frades Crúzios, do Convento de Santa Cruz de Coimbra, senhores, até à sua expulsão nos começos do Séc. XX, de muitas propriedades rústicas à volta, que arrendavam e naquela Casa cobravam as rendas. Daí o nome do casarão.
Há cinquenta anos, a Casa da Renda, era um monstro adormecido no meio da povoação, perdendo pêlo a olhos vistos: os telhados estavam cambados, as vidraças partidas, as paredes esfarrapadas, o pomar invadido por falta de cuidados.
Sempre me perturbaram as casas abandonadas porque me disseram, um dia, que ficam nelas para sempre as almas dos que as habitaram e saíram para sempre. Foi assim que fiquei a saber onde ficava o Céu e apoquentado com o seu abandono. Naquele, para além das almas dos Crúzios, hospedavam-se uns morcegos e andorinhas, com a chegada da Primavera. A ala Norte ainda era habitada naquele tempo, mas o tempo acabou por expulsar qualquer presença humana dali.
Por tudo isto, escrevi o meu primeiro artigo para o jornal mais ou menos assim:
Esta semana não ocorreu, entre nós, nenhum evento que mereça notícia.
Aproveitamos o espaço disponível por esta ausência de assunto corrente para chamar a atenção de quem de direito para um aspecto da nossa aldeia que nos parece intolerável numa sociedade que se preze.
Há, mesmo no meio desta localidade, um Casarão ao abandono, parcialmente ainda habitado, mas a progressão das ruínas vai, seguramente, expulsar, dentro de pouco tempo, os últimos residentes.
Dominando o centro da localidade, o Casarão, é um fantasma a receber quem nela entra. Talvez pela habituação, parece que ninguém repara que o monstro está ali a cair aos pedaços e o pequeno parque à volta é encoberto por um muro que estreita de tal modo a rua que a torna perigosa para o trânsito que por ali passa.
Segundo julgamos saber, os proprietários saíram daqui e não pensam voltar. Porque bulas teremos nós de conviver com este animal abandonado, quase morto, dentro em pouco em vias de putrefacção?
Devo ter reescrito isto uma dúzia de vezes até encontrar o fio que julguei capaz de agarrar a confiança do Tio e a aprovação do Chefe de Redacção.
Para o Tio, o assunto era inesperado mas, evidentemente, deu o seu acordo após duas leituras, e a mensagem lá seguiu via postal.
Fiquei a aguardar o correio de quinta-feira com a ansiedade de quem espera a nota de um exame decisivo. E na quinta-feira, tão certo como o sol nascer cada manhã, chegou o Jornal mas no Jornal nem sombra de notícias da localidade. Disse o Tio: Isso às vezes acontece, não há espaço para tudo, outras vezes é porque o correio chega tarde e o Jornal já está fechado. Espera para a semana.
Esperei, amarrado a uma ansiedade redobrada, veio outra quinta-feira e o Jornal, da notícia, nada.
Talvez para a próxima semana, disse o Tio, já pouco convencido. Para a semana tenho umas coisas a tratar lá perto, se não vier no próximo número vamos ver o que se passa.
Não veio, e lá fomos saber o que tinha acontecido á notícia.
O Senhor CC recebeu-nos com o mesmo sorriso simpático e disse: Li o artigo, achei interessante, não há dúvida que não faz sentido deixarem-se cair as casas velhas, sobretudo as mais nobres, um dia destes perdemos a memória…mas as pessoas o que apreciam mesmo é que se fale delas. Se numa semana ninguém morre, ninguém se casa, ninguém nasce, ninguém apareceu de visita, não há problema. É uma questão de esperar. Essas coisas acabarão sempre por acontecer, não é assim Sr. A? Claro, claro, respondeu o Tio, é uma questão de esperar, o mundo não pára.
Pois não. O mundo não pára, se parasse é que seria notícia, e naquele dia acabou a carreira de um futuro correspondente de guerra.
Entretanto a aldeia mudou, foi promovida a Vila.
Os campos estão quase todos abandonados, um ou outro resistente continua a podar e impar, sulfatar e enxofrar, para vindimar e espremer uns cestos de uvas que cabem num triciclo. Outras ainda plantam umas batatas e umas couves porque não sabem fazer mais nada nas horas vagas ou ficou-lhes a inércia daquele jeito nas mãos. Mas já não há agricultores. As silvas tomaram conta das terras e não pagam décima. O direito de propriedade é uma vaca sagrada em que ninguém toca nem que nela os matos cresçam para alimentar os incêndios no Verão.
Os sapateiros, alfaiates, ferreiros, os abegões, o tanoeiro, o caixoteiro, desapareceram. Até os barbeiros foram afiar a lâmina para outro sítio. Os médicos vão exercer ao posto médico mas não residem; o padre tem mais de uma freguesia, vai lá mas não se vê passar na rua. A Vila ganhou, entretanto, uma Escola C+S mas os professores vão lá como poderiam ir ao Samouco e voltar se lhes dessem asas. Só a farmácia se mantém no seu posto e de cara nova. As colectividades de cultura e recreio esforçam-se por garantir que estão vivas mas estão fora de moda.
Das padeiras, restam duas, uma delas em part-time. Mas ganharam uma estátua. Não vislumbrando outras necessidades, os autarcas locais gastam-nos o dinheiro a encomendar estátuas e rotundas. À falta de outros heróis vão passando para a pedra, ás vezes para o ferro, algumas até para o bronze, as profissões mortas.
A aldeia perdeu os cheiros e os sons, e os trinos e os coletes coloridos dos pintassilgos, abatidos pelos pesticidas e pela ruindade humana. E os grilos. Que pena que ninguém se lembre de levantar uma estátua aos grilos!
A única actividade que dá conta de prosperidade é a construção civil.
Mas as casas antigas continuam a desfazerem-se ao ritmo que crescem os silvados nas leiras, e a Casa da Renda ainda lá está no meio da parada, aos tombos, talvez um dia destes caia de vez.
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