Thursday, February 23, 2006

ACERCA DOS DINOSSAUROS

Meu Caro B. da Silva,

Há dias deu-nos a conversa para falar das freguesias e das juntas. Prometi-lhe pôr por escrito, para desafiar o contraditório, aquilo que lhe disse enquanto almoçávamos.

Naquele fim-de-semana estavam as juntas de freguesia em congresso, desconheço as conclusões e reivindicações, geralmente estas coisas fazem-se para reivindicar do Estado mais meios e este não deve ter fugido á regra. Como o Ministro das Freguesias entende que temos freguesias a mais, é bem provável que o Congresso tenha concluído que temos freguesias a menos. Muita gente nem pensa no assunto, raramente precisaram de recorrer a elas. Eu acho que estão todas a mais.

Porquê?

Quando iniciei este meu entretenimento, que é uma espécie de palavras cruzadas embora pareça outra coisa, já alinhavei alguns comentários acerca daquilo que considero a irracionalidade da governação autárquica e que sustenta todos os descalabros e escândalos que, por serem já tantos, se banalizaram de tal modo que já quase não damos por eles. Chamei-lhe “O Caso da ETAR Sobrevoada”, quem se der ao trabalho de a ler neste “blog” saberá porquê.

As juntas de freguesia representam uma herança, desvirtuada, do Sec. XIX; do lado bondoso tinham o mérito de pretender resolver os problemas comuns das populações mais afastadas dos centros do poder, do lado perverso eram a base da pirâmide do caciquismo quando a alguns homens foi dado o direito de votar. Eram parte da tradição municipalista que vinha do tempo dos afonsinos, com virtudes e aberrações, quando o Estado, dito Novo tomou conta do Estado, as juntas de freguesia continuaram a ser eleitas, ou pseudo eleitas, se quiser, enquanto os Presidentes das Câmaras Municipais passaram a ser nomeados pelo Governo.

Em meados do século passado, há cinquenta anos, portanto, as juntas de freguesia passavam atestados de residência, as juntas de freguesia rurais também abriam e consertavam caminhos vicinais, construíam pequenos fontanários, mas o seu campo de intervenção privativo eram os cemitérios. Para além destas atribuições as juntas, geralmente através do seu presidente, reclamavam e influenciavam junto dos municípios a que pertenciam a realização de obras que reputavam necessárias mas excediam os seus orçamentos e áreas de intervenção.

Naqueles tempos os membros das juntas não eram remunerados, a sua eleição recaía nos que eram tidos como mais capazes de defender os interesses das localidades junto das câmaras municipais. Não pode afirmar-se que não houvesse alguma influência da União Nacional na eleição das juntas de freguesia mas essa influência não era, certamente, levada muito a peito pelo poder central porque, quando o Governo macaqueava eleições, tinha meios mais expeditos para dizer que as ganhara do que pôr os micro autarcas a fazer por isso. Os autarcas das freguesias tinham, portanto, perdido a influência política que tinham tido no fim da monarquia e na primeira república quando as eleições se decidiam por chapeladas.

Após o 25 de Abril voltou o caciquismo.

Cacique, também conhecido por manda-chuva, significa, segundo o dicionário, “influente eleitoral em terras portuguesas”. Já a palavra autarca, do grego “autarkos” tem, originalmente, uma conotação curiosa com o comportamento actual de alguns dos nossos detentores do chamado poder local, que parece levarem as suas funções e ambições demasiadamente à letra: Segundo o dicionário da Sociedade de Língua Portuguesa de J P Machado, autarca é “o que governa por si somente// O que se arroga poderes para governar à margem das instituições parlamentares// Rei absoluto; ditador”.

Com o regime democrático de volta e a luta partidária, os autarcas passaram a desempenhar, de novo, um papel importante no processo de influência do eleitorado. A concessão da lei permitindo que grupos de cidadãos concorram às autarquias das freguesias a par dos partidos políticos não retirou a estes o empenho pelo domínio dos órgãos autárquicos locais. Claro que esse empenho nada tem a ver com a promoção de qualquer ideologia política. É praticamente unânime a convicção de que as ideologias estão em crise mesmo aos níveis de decisão mais elevados de Governo, sendo muito difícil estabelecer fronteiras das ideologias que possam indicar o sentido das políticas em quase todas áreas da governação. Assim sendo, faz sentido a concorrência dos partidos políticos ao nível das mais pequenas áreas de definição da geografia do tecido político? Há alguma ideologia subjacente na passagem de um atestado de residência ou no calcetamento de um largo ou na plantação de uma palmeira no meio dele? Não há.

O que há é a necessidade dos partidos, para proveito próprio, passarem para a opinião pública que aquele atestado, aquela calçada, aquela palmeira, foram realizados pela junta a que o seu membro preside e, para além disso, que seja ele quem contrata e paga ao calceteiro e ao jardineiro. Os votos virão porque há obra, e quanto mais obra mais votos. As relações com o calceteiro e o jardineiro se não proporcionam votos proporcionarão outros dividendos.

Aqui chegados, parece que as Juntas de Freguesia não são os vasos capilares da democracia mas os vasos capilares da partidocracia, porque não veiculam ideias mas interesses privados.

Justificar-se-ão por razões de operacionalidade ou racionalidade económica? Também não. Aliás esta conclusão decorre exactamente da mesma premissa que leva o Governo a pensar na redução do número de concelhos por aglutinação de alguns deles. Vai ser muito difícil fazê-lo mas o mais elementar bom senso, que a distância das situações analisadas em abstracto possibilita, sabe que, como todas as unidades de gestão de recursos, os municípios não podem ser eficientes na utilização dos meios postos à sua disposição se não atingirem uma dimensão crítica.

Temos, segundo a Direcção Geral das Autarquias, para além dos arquipélagos da Madeira e dos Açores, 304 municípios com uma área média de 299 km2 e 34 mil habitantes e 4281 freguesias com uma área média de 21,6 km2 e 2438 habitantes.

As autarquias absorvem 30% dos impostos sobre os rendimentos das famílias e das empresas e do imposto sobre o valor acrescentado, isto é, do IRS, IRC e IVA. Destes, 7,6%, ou seja 2,28% é atribuído às freguesias. É muito dinheiro. Para quê?

Quando os caminhos vicinais se abriam a pá e picareta e às contribuições da fazenda pública se juntavam muitas vezes o donativo de muitos dias de trabalho dos vizinhos para a realização de obras de interesse comum, as obras realizadas pelas juntas de freguesia tinham expressão e fazia sentido a sua existência. Hoje os meios disponíveis são outros e não podem ser governados de forma rentável dentro de unidades administrativas tão exíguas.

Importa, portanto, redimensionar os concelhos e extinguir as freguesias atribuindo as suas actuais funções de representação das populações junto dos órgãos municipais a comissões de freguesia eleitas a partir de órgãos de representação mais circunscrita, a que poderíamos chamar comissões de moradores. Todos os cargos deveriam ser de exercício não remunerado. E não remunerado porque, não tendo que realizar funções executivas mas apenas de representação, só deste modo se poderão afastar os que estão mais interessados em proveitos próprios que nos interesses comuns.

Devolver-se-ia, deste modo, às populações a capacidade de iniciativa dos seus próprios interesses e reduzir-se-ia a intervenção directa do Estado ao nível da célula social.

Dou-lhe um exemplo concreto: Uma junta de freguesia urbana assume actualmente, entre outros e à falta de atribuições mais adequadas aos seus fins, o papel de organizador de excursões. Uma dessas excursões foi até ao estrangeiro. Claramente que não foram na excursão os mais desfavorecidos da freguesia, a esses geralmente apoquenta-os desde logo a perspectiva das viagens, nem os doentes e muito menos os doentes acamados. Foram os mais favorecidos. É fácil de prever que uma junta de freguesia destas tem, desde logo, garantidos os votos dos excursionistas.

A mesma junta edita uma revista mensal a cores. Com artigo de fundo e fotografia da presidente na primeira página e as dos outros vogais na página seguinte. Também dá votos embora possa fazer perder alguns junto de uns quantos que costumam interrogar-se.

A lista pode prolongar-se, a imaginação não tem limites desde que o dinheiro seja dos outros. Os votos recolhidos são geralmente directamente proporcionais às liberalidades dos autarcas.

Agora o caso de uma freguesia rural: Como já não tem de cuidar dos caminhos vicinais porque as terras estão ao abandono, faz calçadas e outras fachadas. É igualmente propenso à organização de excursões mas interessa-se e apoia sobretudo a actividade futebolística e, se possível, convence o município a instalar mais um polivalente desportivo. E tudo celebrado com música, foguetes e placas a dourado quase mais largas que os objectos inaugurados.

É a invasão do Estado naquilo que ainda eram áreas de expressão dos interesses, do engenho e até das pequenas rivalidades dos cidadãos voluntariamente organizados.

Como às autarquias não está cometida a responsabilidade de liquidar e cobrar impostos o Governo Central assume o odioso da imposição cobrindo-se as autarquias com os louros dos gastos. É a política jardineira à moda da Madeira.

Assim se explica a razão pela qual, em Portugal, os governos centrais são tão voláteis e no poder local se conserva tanto dinossáurio. Do site da Comissão Nacional de Eleições, http://www.cne.pt/, retiram-se os seguintes resultados concludentes a este propósito:

Entre 1979 e 2005 observou-se a seguinte renovação de presidente das câmaras:

Número de diferentes presidentes Percentagem de municípios

1 3,86
2 12,22
3 27,01
4 30,55
5 16,72
6 7,07
7 1,93
8 0,64

Este quadro faz parte de uma comunicação apresentada recentemente na 3ª. Conferência do Banco de Portugal por Susana Peralta, da UNL, “Budget Setting Autonomy and Political Accountability” que conclui pela recomendação de serem atribuídas às autarquias responsabilidades na liquidação e cobrança das suas receitas de modo a poder conseguir-se maior transparência nos gastos públicos e melhor qualidade dos autarcas.

Na realidade, se alguém, no seu perfeito juízo souber que uns vizinhos seus andam a passear à sua custa, como reagirá? Indigna-se, claro. Mas se os dinheiros chegam á junta de forma para ele invisível o que acontece? Ou não dá por nada, ou tenta ele próprio embarcar para a próxima no autocarro. Alguém, que não ele, pensará ele, terá de pagar a conta.

Ainda há tempos almoçava num restaurante da Carapinheira um grupo animado de uns quarenta excursionistas. Não sei quem pagou o repasto mas sei que o autocarro que os transportava tinha bem visível a indicação de pertencer à Câmara Municipal de Oeiras. Trata-se apenas de um exemplo, entre muitos, do desgoverno com que se gastam os dinheiros públicos, os nossos, portanto. Para proveito particular de alguns e das suas súcias.

O que não invalida que não se reconheça que muita coisa boa, apesar de tudo, foi feita por autarquias, não sendo legítimo meterem-se os autarcas todos dentro do mesmo saco do oportunismo e da desonestidade.
Mas ninguém hoje tem dúvidas, a menos que ande ou queira andar distraído, acerca da perversão que atravessa muitas das obras das autarquias, sustentadas na trindade do poder autárquico, do poder do futebol e do poder dos construtores civis.

A obra de cimento é a mais fácil de realizar. Com dinheiro alheio é facílimo. Mas embasbaca sempre muita gente que supõe que o dinheiro que a comprou caiu do céu.

Daí os votos que alimentam os dinossauros.

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