Sunday, March 13, 2016

O MILAGRE DE SÃO MARCELO - EPISÓDIO PRIMEIRO


São seis e meia da manhã, em Belém.

- Noc! noc! noc!
- Bom dia! Entra, estimado  Frutuoso! Que ideia tua é essa de bater a uma porta aberta?
- Amado Presidente, segundo o protocolo ...
- Quantas vezes tenho de te lembrar, estimado Frutuoso, que o protocolo está em vias de reformulação de facto? Vá, vá, vá, deixa-te de protocolos e dá-me boas notícias.
- O povo ...
- Já sei, já sei, o povo quer afectos ...
- ... abraços ...
- ... beijinhos ... Dar-lhe-emos abraços e beijinhos, sem olhar a despesas. E que mais quer o povo?
- O povo também quer dar ...
- Óptimo. Nem outra coisa se poderia esperar do nosso muito querido e afectuoso povo. Gosta de receber mas também gosta de dar. Oh!, como eu conheço o povo a que pertenço! E o que nos quer dar o povo, estimado Frutuoso?
- O povo de Lagos quer dar D. Rodrigos ...
- E o de Boliqueime não mandou nada?
- Os de Boliqueime já chegaram há três dias ... Também já vieram D. Rodrigos de Faro, Loulé, ...
- Quantos?
- É aí que temos um problema ...
- Que problema, Frutuoso? Desembucha homem de Deus!
- Com as ofertas que já recebemos enchemos a dispensa de víveres, já não há mais espaço ...  ... Os de Lagos apresentaram-se esta manhã ao portão do Palácio com uma carrinha carregada de mais D. Rodrigos...
- Ao todo, quantos? Uma tonelada?
- Nem tanto. Talvez cem quilos ...
- É muito D. Rodrigo, é...
- Teremos de começar a rejeitar ...
- A quê?!! Estás doido, Frutuoso?!! Pior que não distribuir afectos ao povo é rejeitar os seus afectos.
Não se rejeita nada! Ficamos entendidos, estimado Frutuoso?
- Perfeitamente, amado Presidente. Mas onde vamos armazenar as ofertas que não param de chegar ao portão do Palácio?
- Para já, os D. Rodrigos podem vir aqui para o meu gabinete ...  Depois veremos ... Podes começar por mandar oferecer alguns aos sentinelas, estar de sentido aquele tempo todo deve consumir muito açúcar, que te parece? E que mais recebemos para estarem já as dispensas cheias?
- De Caminha recebemos vinte quilos de lampreias ...
- Vinte quilos, Frutuoso? Sabes o que são vinte quilos de lampreias?
- Sabe a balança ... E de Entre-os-Rios recebemos outro tanto ... E de Montemor-o-Velho ...
- E onde estão elas?
- Para já estão nos frigoríficos ...
- Pensamos nisso depois. E que mais?
- De Guimarães, toucinho do céu; de Felgueiras, cavaca minhota; foguetes e lérias de Amarante; do Alto Barroso, trutas do Rio Cávado; perdizes e coelhos, de Ribeira de Pena, ...
- ... e doces, ninguém mais trouxe doces?
- Temos toneladas de doces, amado Presidente. Tanto que o Palácio está neste momento literalmente invadido de formigas ...
- Estás a falar a sério?
- Como nunca. Já telefonámos para a empresa de desinfestação mais próxima ...
- Desinfestação?!!! Desinfestação de quê, Frutuoso?
- Das formigas ...
- Pára lá com essa ordem maluca. Aqui em Belém, em matéria de afectos não se segrega nenhuma criatura de Deus ... Deixa avançar as formigas! Que mais doces temos?
- Amêndoas de Moncorvo ...
- Oportunos, esses de Moncorvo. Temos a Páscoa ao pé da porta. E que mais? De Celorico, que temos? Não acredito que não tenhamos recebido sarrabulho ou morcelas doces de Celorico ...
- Foram os primeiros a chegar ...
- E que lhe fizeram?
- O cozinheiro, que é muçulmano e pouco em dia com os sentimentos ecuménicos o nosso bem amado Presidente, jogou com tudo no lixo ...
- Ignorante. Dá ordens para pedir mais com a desculpa de se terem esgotado por serem muito apreciados cá no Palácio. E que mais, que mais, que mais?
- Moncorvo mandou rosquilhas; da Guarda, torresmos ...
- Isso é doce? Estávamos a falar dos doces. Os afectos vão melhor com os doces.
- Estou a falar de memória, que não pede meças à do nosso amado Presidente ... Oliveira do Hospital mandou arroz doce à moda de lá ...
- E como é?
- Como à moda de cá, parece-me a mim, que não sou muito conhecedor de doçaria.
- E que mais temos?
- De Proença-a-Nova mandaram tigelada ...
- Uma?
- Umas cinquenta ...
- Não é verdade ...
- ... e bolo de mel. Também mandaram bolos de mel ... Uns dez
- Devem ser bons ...
- Foram fora. As formigas deram conta deles ...
- As formigas entraram nos frigoríficos???
- A maior parte dos bolos que recebemos já não coube nos frigoríficos ... E as formigas ...
- ... também precisam de comer. E que mais?
- De Alfeizerão ...
- ... pão-de-ló! Muito bem, fiquemos por aqui. Manda fazer uma lista do que temos e outra de todas as instituições de apoio social. Eu encarrego-me de uma comunicação ao país, agradecendo todas as dádivas e o destino benemérito que lhes demos por impossibilidade humana de nós próprios consumirmos tudo. Nós, e as formigas, mas talvez não seja muito prudente falar nas formigas. Há muita gente que odeia as formigas. Também, no campo dos afectos por todas as criaturas de Deus, temos um trabalho imenso pela frente!
- Voltarei com ela dentro de um minuto.
...
- noc! noc! noc!
- Oh! estimado Frutuoso, a porta está aberta!
- Desculpe, amado Presidente, mas o reflexo condicionado, está cientificamente provado, não se apaga à primeira ... Aqui está a lista ... mas temos notícias menos boas ....
- Temos quê?
- Chatices, que me perdoe o estimado Presidente o plebeísmo, mas temos notícias menos boas ...
- Que notícias, Frutuoso? Diz rápido! Sabes bem como nada me incomoda  tanto como a expectativa de  notícias que não sejam boas ...
- Estão na recepção o primeiro-ministro e o líder do maior partido.
- Tinham pedido audiência?
- Não, mas invocam urgência de serviço.
- Já lhe ofereceste bolos?
- Recusaram. O primeiro-ministro disse que entrou esta semana em regime de dieta, o líder do maior partido só gosta de farófias. Temos o palácio atulhado de doces e ninguém se lembrou de mandar farófias...
- Que diabo quererão eles? Esta não lembraria ao careca ... Quem chegou primeiro?
- O primeiro-ministro.
- Manda entrar primeiro quem chegou em segundo ...

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