Santos Ferreira suspeito de favorecer Berardo enquanto liderava Caixa - aqui
Só agora é que chegam a esta conclusão no Ministério Público? Já se sabe que a justiça em Portugal faz que anda mas não anda quando estão em causa crimes de corrupção de elevadíssima dimensão. Mas assim tanto, é mais que demais.
Empresário madeirense que foi detido
nesta terça-feira está indiciado por vários crimes, incluindo corrupção.
Vai ser ouvido nesta quarta-feira pelo juiz Carlos Alexandre.
O ex-presidente da Caixa Geral de Depósitos e, de seguida, do BCP, Carlos Santos Ferreira, foi constituído arguido no inquérito do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) que levou nesta terça-feira à detenção do empresário madeirense Joe Berardo e do seu advogado pessoal, André Luiz Gomes. Santos Ferreira, que para já é o único responsável da Caixa arguido neste caso, é suspeito de ter favorecido Berardo na concessão dos empréstimos dados pelo banco público em 2006 e 2007, num valor global de perto de 350 milhões de euros.
A casa e o escritório de Carlos Santos Ferreira foram dois dos 51 alvos das buscas realizadas nesta terça-feira pelas autoridades e que incluíram a Caixa, o BCP, o Novo Banco, a Fundação Berardo, o Museu Colecção Berardo (situado no Centro Cultural de Belém), o Ministério da Cultura, escritórios de contabilidade e as instalações de várias empresas. Berardo foi detido na sua residência, em Lisboa, onde acompanhou as buscas, tendo sido transportado ao início da tarde para o estabelecimento prisional anexo à PJ, onde passará a noite.
Paulo Saragoça da Matta, advogado de Joe Berardo, confirmou à saída das instalações da PJ que o cliente iria ser interrogado nesta quarta-feira à tarde no Tribunal Central de Instrução Criminal pelo juiz Carlos Alexandre, que irá decidir as medidas de coacção a aplicar-lhe. Igualmente ouvido será André Luiz Gomes, que para os investigadores era o cérebro dos esquemas usados por Berardo para fugir às suas responsabilidades, nomeadamente ao pagamento de perto de mil milhões de euros de dívidas acumuladas a três bancos: Caixa, BCP e Novo Banco.
Mas os indícios apontam para que o tratamento de privilégio a que Berardo foi sujeito por sucessivas administrações bancárias, tanto na Caixa como noutros bancos, terá sido, muitas vezes, pago. Por isso, Berardo está indiciado por corrupção, um crime que curiosamente não consta no rol de suspeitas divulgadas, em comunicados, quer pela PJ quer pelo DCIAP. “No inquérito, investigam-se matérias relacionadas com financiamentos concedidos pela CGD e outros factos conexos, susceptíveis de configurar, no seu conjunto, e entre outros, a prática de crimes de administração danosa, burla qualificada, fraude fiscal qualificada, branqueamento e, eventualmente, crimes cometidos no exercício de funções públicas”, lê-se na nota divulgada pelo principal departamento do Ministério Público.
Este inquérito, delegado na Unidade Nacional de Combate à Corrupção da PJ, foi aberto em Setembro de 2016 para investigar a concessão de créditos sem garantias a 100 dos maiores credores da Caixa, muito antes de a comissão de inquérito ao banco público em 2019 ter exposto as dívidas de Berardo. O Parlamento actuou no rescaldo da necessidade de recapitalizar o banco público, o que obrigou o Estado a injectar mais de 3,9 mil milhões de euros entre 2017 e 2018. A comissão concluiu que Berardo teve um tratamento privilegiado: “Houve uma protelação, não houve exigência de reforço de garantias. Pelo contrário, houve até conformação ao grupo Berardo, ao contrário do que era exigido.”
Já a auditoria independente aos actos de gestão da CGD entre 2000 e 2015 realizada pela consultora Ernst & Young e finalizada em meados de 2018 apontava o dedo a Santos Ferreira por este ter caucionado no banco público a aprovação de centenas de milhões de euros de créditos de favor, especulativos ou orientados politicamente, que acabaram por ter custos milionários no bolso dos contribuintes.
Berardo foi um dos beneficiados, o que permitiu ao empresário madeirense desempenhar um papel central na luta de poder dentro do BCP, que tinha como protagonistas Paulo Teixeira Pinto e Jardim Gonçalves. Curioso é que depois de ter permitido que Berardo reforçasse a sua posição accionista no banco privado, Santos Ferreira acabou por transitar directamente da liderança da Caixa para a do seu concorrente privado, o BCP, onde foi ocupar o lugar de Paulo Teixeira Pinto.
Já Santos Ferreira tinha sido substituído na Caixa por Fernando Faria de Oliveira – outro dos nomes destacados pela EY por ter tido práticas irregulares de gestão – e o banco público continuou a conceder empréstimos avultados a Berardo. Sem nunca referir o nome do empresário madeirense, a PJ refere, na nota, que a sua operação “incidiu sobretudo num grupo económico, que entre 2006 e 2009, contratou quatro operações de financiamentos com a CGD, no valor de cerca de 439 milhões de euros”. A Judiciária acrescenta que este grupo “tem incumprido com os contratos e recorrido aos mecanismos de renegociação e reestruturação de dívida para não a amortizar” e fala ainda em “dissipação de património”.
É conhecido que a esmagadora maioria do património de Berardo, como a sua casa em Lisboa, a sua colecção de arte ou a Quinta da Bacalhôa não se encontram em nome do empresário, mas pertencem à sua fundação ou a associações que este criou e controla. Desta maneira, o empresário tem conseguido evitar as penhoras dos bancos. No entanto, em Julho de 2019, Berardo viu um tribunal arrestar-lhe 2200 obras de arte, incluindo as que integram o Museu Colecção Berardo. Três inspectores da PJ estiveram nesta terça-feira nas instalações desse museu, no Centro Cultural de Belém, para obter uma lista das obras de arte que fazem parte da colecção, o valor em que estão seguradas e ainda uma lista de fornecedores, adiantou ao PÚBLICO Pedro Bernardes, director-geral do museu.
O DCIAP diz que a investigação só não foi mais célere devido à “carência de meios técnicos”, que obrigou, por exemplo, à contratação de um perito em prática bancária, o que só aconteceu em final de 2019. “Não obstante o empenho e investimento do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) e da Procuradoria-Geral da República (PGR), bem como da Polícia Judiciária (PJ) e de toda a equipa na investigação do inquérito em curso e a gestão racional e eficaz que foi realizada dos meios à disposição de todos, não se logrou assumir a celeridade desejável, apenas por carência de meios técnicos e outros ajustados à natureza, dimensão e complexidade da investigação”, lê-se na nota daquele departamento.
A megaoperação desta terça-feira incluiu buscas em Lisboa, Sesimbra e Funchal que envolveram 138 agentes da PJ, nove magistrados do Ministério Público, sete juízes de instrução criminal e 27 inspectores tributários.