Wednesday, June 12, 2019

HISTÓRIA DA IDADE MÉDIA





Mãe Maria levantava-se cedo e deitava-se tarde porque o trabalho nunca lhe cabia entre o nascer e o pôr-do-sol. 
Devias levar a criança a respirar os ares da praia. 
A criança era o seu rico menino, o Rico, pequenote, magricelas, traquinas, tisnado pelo sol, - pareces filho de cigano, ouviu uma vez Rico a uma velha bruxa desdentada a rebentar pelas costuras -, comia pouco mas nada parava com ele por perto. 
Rico, anda ver. 
Uma dúzia de pintos saídos das cascas numa manhã de Junho. Rico sentava-se de cócoras a mirar a ninhada. Maria trazia a tigela de papas que o filho rejeitara, à mesa, meio enchia a colher e,  a aproveitar a concentração do Rico, metia-lhe na boca o que a distracção do rapaz consentia, mas nem mais uma colherada. Era assim com os pintos, com os patitos, com os coelhitos, com os cachorritos, com os cabritos, com todas as maternidades da casa. 
Agora, o Rico já tinha sete anos, comia como gente crescida mas continuava enfezado. 
Não sei o que é que faz ao que come.
Devias levar a criança a respirar os ares da praia.
Pois devia. E tempo para isso? Quem é que faz o que eu faço?
Era difícil descortinar resposta. Ninguém parava na sua órbita. Um dia o pai chegou cansado de um dia de trabalho debaixo do sol de Agosto, Maria largara meia hora antes para avançar com a ceia, e sentou-se no topo da mesa da cozinha a limpar o suor da testa com o lenço amarrotado puxado do bolso. Rico sentou-se em frente do pai a balancear as pernas que não chegavam ao chão, cotovelos a segurar  cabeça, chateado porque o tinham chamado para casa e a ceia atrasada. Maria, ao borralho onde fervilhava comida, rodou o olhar três vezes, remexeu o cozinhado, voltou-se e sentou-se à mesa: ah! também gosto de estar sentada. Levantaram-se, o pai e o Rico, e Maria voltou a remexer o caldo.
Rico, vai buscar duas cavacas.
Disse-te que me trouxesses duas cavacas, Rico, duas cavacas não são só duas, são quatro, pelo menos.
Mãe, o que é hoje a ceia?
Azeitona e meia. Espera que já vês.
Era frango guisado com batatas. O penúltimo da postura da primavera. Sobrava o candidato que arremedava o pai, que até então se portara como devia, era   rara a postura onde o velho não conseguisse o pleno. Mas chegara a sua hora, não cabem dois galos numa capoeira, e o pai da prole tinha os dias contados entre a panela e o mercado.
Amanhã vamos à praia.
O pai ouviu e consentiu, calado. 
Passo pelo mercado e vendo o galo.
Vendes o quê?
O galo. Vendo o galo e compro sardinha.
Não gosto de sardinha, tem muita espinha, intrometeu-se Rico sem intenção de rimar.
Nem sempre galinha, nem sempre sardinha, sentenciou Maria e o pai desistiu de a contrariar. Peixe não puxa carroça mas galinha tampouco.
Rico, amanhã vamos à praia, temos de sair cedo. 
Às seis e meia da manhã, com a Carocha albardada, Maria sentou-se de lado, como é próprio das mulheres, Rico deu-lhe o galo de pernas atadas, que ela segurou com o braço esquerdo, e puxou Rico com o direito. Rico sentou-se à frente como os homens, uma perna para cada lado da albarda. Rico pega no galo, não o largues por nada deste mundo, e dá-me a arreata.
E ala, no meio da neblina, lá vai Maria com o filho agarrado com o braço esquerdo a caminho dos ares da praia, o sol ainda vai tardar a nascer. 
Mãe?
Diz.
Ainda demora muito?
Demora pouco, ainda agora saímos. 
Dói-me o cu.
Isso diz-se?
Não. Mas dói-me.
Passa. Vais ver que passa.
Tenho frio.
Maria puxou mais o filho para si, e protegeu-lhe o peito com a aba esquerda do xaile. 
Tens menos frio assim, e o sol não vai tardar a aparecer.
Mas dói-me ...
Já ouvi. Vai com atenção no galo, e isso passa. 
Por que é Carocha não vai a trote? 
A trote íamos parar ao chão. Não queres ir parar ao chão, pois não?
Estou com sono.
Assobia. Se assobiares passa-te o sono.
Agora não me apetece assobiar. Dói-me ...
Já sei. Agarra bem o galo.
Mãe?
O que é que te dói mais agora?
Não gosto de sardinha, gosto mais de canja de galinha.
Canja é para doentes. Não estás doente, só estás a precisar de ares do mar.
Dói-me o rabo.
Rabo têm os macacos.
Então não sei o que me dói, mas dói-me.
E ele a dar-lhe. Assobia que isso passa.
Mãe?
Gastas-me o nome. O que é?
Não gosto de sardinha.
Já tinhas dito.
Pois tinha, mas como não gosto não como.
Isso é o que veremos. Nunca ninguém morreu à fome tendo comer à frente.
Quando não há pão come-se rolhão.
Não sei o que é rolhão.
Nem queiras saber.
Saber é mau?
Às vezes é. 
Mãe?
Diz.
Quanto vale um galo?
É conforme. Conforme o tamanho, a idade, o peso, coisas assim.
Mas o nosso galo, quanto vale o nosso galo?
Dez cruzados, pelo menos, se não o deixares cair.
Ainda falta muito, mãe?
Falta chegar. Ainda tens frio?
Não, agora tenho calor. O sol não me deixa ver o caminho.
Olha para o galo. Não podes olhar para o sol.
E a Carocha?
A Carocha, o quê?
Como é que ela vê o caminho com o sol pela frente?
Até de olhos fechados. Não te preocupes que ela não se engana no caminho.
Mãe, quero ir a pé. Posso?
Cansavas-te depressa. Tens de crescer e engordar para fazer esta caminhada a pé.
Mãe, a Carocha também vai à praia?
Não. Fica num curral, perto do mercado. Passamos no mercado para vender o galo, comer qualquer coisa e comprar sardinha, depois vamos a ares à praia. 
Mãe?
O que é agora?
Tenho fome.
Comemos no mercado. 
Já falta pouco?
Já faltou mais.
Mãe, quantas sardinhas vale um galo?
Talvez duas dúzias, não sei, veremos.
Mãe, quem é que vai comer tanta sardinha? Eu não gosto de sardinha. 
Também eu não gosto de muita coisa mas quando não há outra come-se o que há.
Eu não como.
Está bem, arranja-se outra coisa para ti. Serve-te?
Dói-me o ...
Assobia.
Não me apetece assobiar com o cu a doer. E tenho fome.
Estamos a chegar.
Daqui a quanto tempo?
Daqui a pouco. Segura bem o galo, e verás que o tempo passa mais depressa.

Maria, com o galo ao colo e Rico pela mão, procurou no mercado boa vontade de quem lhe abrisse espaço para expor o galináceo, vender o bicho e levar Rico a tomar ares na praia. 
É só para vender o galo?
É. Desta vez não trouxe mais nada.
Então meta-se aqui. 
Maria agradeceu às vendedeiras de legumes, colocou o galo à sua frente, as patas ainda amarradas, Rico, ao lado mãe.
Passou uma senhora, reparou no galo entre os legumes, pegou nele, tomou-lhe o peso, olhou a plumagem, soprou-lhe as penas do peito, e, quanto quer pelo galo?
Quinze cruzados.
A dona pousou o galo, sacudiu as mãos uma na outra e desandou.
Logo passou outra senhora, também bem vestida, vinha acompanhada de uma garota, aperaltada, teria a idade de Rico, nem olharam para o galo.
A como vende o tomate?
Dois cruzados por uma dúzia.
Dois cruzados?, disse a miúda escandalizada com o preço. Um cruzado, não damos mais que um cruzado!
Riu-se a vendedeira de tomates da esperteza da garota.
O que sabe a minha querida menina de tomates?
A senhora puxou a menina e passaram adiante. 
Quanto vale o galo? perguntou outra ao mesmo tempo que pegava na ave.
Quinze cruzados.
Quinze cruzados? ... não é demais para um galo velho?, e bbbs, soprava nas penas do papo, dou-lhe sete por ele.
Rico, animado pelo atrevimento da garota que discutira o preço dos tomates, esteve vai-não-vai para meter a colherada no negócio, mas conteve-se.
Outra interessada, pegou na ave e dependurou-a de cabeça para baixo. O galo reagiu-lhe com uma bicada na mão.
Quanto quer pelo galo?
Quinze, adiantou-se o Rico à mãe.
Quanto?, perguntou a interessada olhando para Maria, a ignorar Rico.
Faço-lhe doze porque tenho pressa.
Doze?, não vale mais que sete, disse e desandou.
Passou e pegou outra senhora da vila  no galo, fez as observações do costume, o galo é velho, não vale mais que sete cruzados mas dou-lhe oito.
Não dá nada porque o galo não se vende, o que é que a senhora percebe de galos? disse Rico ao mesmo tempo que agarrava no bicho, saía do lugar e se punha a andar dali.
Rico, aonde vais? Se não vendo o galo não compro sardinha nem tenho dinheiro para comer qualquer coisa aqui.
Não tenho fome. Quero ir a ares à praia, foi para tomar ares que viemos, não foi mãe? Chegando a casa comemos o galo. O pai também não gosta de sardinha.
Maria, a reboque de Rico, que não largava o galo, deixou o mercado e os dois chegaram à praia já o sol ia alto. O calor temperado por uma brisa suave brindava os banhistas de alforge, aqueles que sem tempo nem dinheiro não tinham podido vir nos meses de Verão e agora tomavam os ares da praia e molhavam os pés. 
Mãe posso ir molhar os pés? Podes, vou contigo. Dá-me o galo. Temos que ter cuidado, o mar está bravo.
Aproximaram-se cautelosamente da linha desenhada pela espuma das ondas, Rico puxava a mãe, só mais um pouquinho, só mais um pouquinho, só mais um pouquinho, as ondas levantam-se lá muito atrás, vá, só mais um pouquinho. Maria segurava o galo ao colo e travava a excitação do filho. 
Não, Rico. Mais adiante, não. 
Mas o Rico estava fascinado pela vibração do mar e o perfume da maresia, e puxava a mãe. Até uma onda se empinar muito alta sobre a praia e impelir Maria a agarrar Rico ao colo com toda a força que tinha até caírem os dois na praia, já na linha da espuma que estava a avançar.

E o galo, que é feito do galo? 
Olharam, olharam, olharam, em volta o areal sem fim.
O galo tinha-se sumido.
Não pode ter ido longe, tinha as pernas atadas. Tu não lhe desataste as pernas, pois não, Rico?
Não, Mãe. Trouxe-o como estava no mercado.
Para onde terá ido o diabo do galo?
Havia não perto dali um ou outro veraneante de alforge.
Viram, por acaso, por aqui um galo à solta?
Um galo na praia? Só em arroz de cabidela.
Riram-se da pergunta e da resposta, do galo não havia notícia.
Rico, vamos embora, está a fazer-se tarde.
Já temos ares da praia por uns bons tempos, pois temos Mãe.
Temos, temos, respondeu Maria sempre a olhar à volta, enquanto caminhava no areal.
Olha, Rico! O galo a nadar no mar.
Mãe, os galos sabem nadar?
Eu pensava que não, mas pelos vistos sabem.
Mesmo com as pernas atadas?
Talvez se tenham desatado no meio das ondas.
Vamos buscá-lo?
Vamos lá, mas não podemos esperar muito tempo.
Foram até à borda da linha limite do espraiar das ondas, e de pé fincado na esperança de ver o galo de volta desesperaram de o ver, de crista impante e plumagem brilhante, cada vez mais longe e menos nítido.

Chegaram a casa, tarde e cansados, mas sem fome. Tinham comido sopa rica de legumes e um naco de porco no lugar de guarda da Carocha, oferecida pela dona da casa.
Havia sardinha?, perguntou o pai.
Havia no mar.
E o galo?
Ficou a pescar sardinha. 

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