Monday, December 31, 2018
ENTRE 2018 E 2019
- Tudo bem?
- Tudo bem menos o que está mal.
- E o que é que está mal?
- Porque me perguntas o que está mal e não me perguntas o que está bem? Preferes saber o que está mal ou o que está bem?
- Prefiro saber o que está bem ...
- Então porque perguntas o que é que está mal?
- Hum! Não sei. Hábitos ... O que é que está bem?
- Não sei ...Tu sabes?
- Hum! Não sei se sei.
- Mas sabes o que é que está mal?
- Sei, mas leva tempo a dizer. Telefonei para vos desejar Bom Ano, melhor que 2018.
- Bom Ano!!!!
NA CASA DO LOUVA-A-DEUS *
... eh!eh!eh!
... volto a dar conta, daqui deste lugar em que me encontro, do que ouço e
vejo e me põe o pelo em pé. Gostaria de vos trazer boas notícias, mas
lamento...
O outono ameno já lá
vai, chegou o inverno e com ele os dias de neblina, de chuva, de frio, de neve,
é tempo dos animais se refugiarem nas luras e os humanos temperarem a
agressividade do tempo com gestos de boa vontade, mais comunhão e menos
confronto, mais fraternidade e menos ódio, eh! eh! eh! Boas intenções e
muita conversa fiada à mistura, a espécie humana não é a mais hipócrita
das espécies porque é a única capaz de o ser. Vive e mata-se adorando e
ofendendo deuses, criados à sua imagem e semelhança, implorando-lhes favores,
desfavores para outros. Gostaria de imaginar um mundo futuro que removesse o
meu desalento e me insuflasse esperança, mas não tenho com quê. Sei que há
quem, mesmo nas mais remotas distâncias da esperança, consegue iludir-se e superar-se. Durmo
mal, porque dormito muito, e nas intermitências do meu sono sobressaltado
assaltam-me pesadelos que só não me destroem de vez por sobrecarga
emotiva porque não sei quem nem como tem tido a gentileza de apagar-mos da
memória.
Cá em casa continua a
viver-se em regime de prisão domiciliária, somos os mesmos seis nos
últimos dois anos e picos, contando comigo e os dois gatos. De vez em quando
aparece aí um casal, sem filhos, raramente entra uma criança para convivência
com as duas cá da casa. Quem vem regularmente umas quatro vezes por ano é uma
velhota que fica uma semana na casa, anda sempre a esquecer-se onde deixou a
caixa dos comprimidos, e depois desaparece até à próxima.
Ultimamente, as
garotas, que ficavam sempre encantadas quando alguma visita batia à porta, têm
vindo a mostrar-se irrequietas, indisciplinadas e pouco entusiasmadas com estas
visitas velhas que não lhes trazem gente das idades delas. A velhota bem tenta
manter relacionamento amigável contando-lhes histórias contadas vezes sem
conta, elas mantêm-se concentradas por algum tempo mas não tarda saltarem-lhe
para as costas, como faziam quando eram mais leves e a velhota menos velhota.
Há dias, a brincadeira terminou com a velha a praguejar em surdina quando viu,
com elas às costas, caírem e quebrarem-se os óculos no chão.
O dia-a-dia das
crianças, para mim monótono e sonolento, preenchido com o contar de histórias e
trabalhos manuais, sem actividades que lhes desperte e fortaleça os músculos e
os ossos, atormenta-lhes o corpo que pede relaxamento e distensão física que
este encarceramento não consente. Falo por mim, esta clausura, que me tolhe os
movimentos, está a tornar-me paralítico à medida que os anos passam. Não gemo
quando me levanto, como a velha da caixa dos comprimidos, por uma questão de
dignidade, mas apostaria que não me doem menos as articulações a mim que a
ela.
Entre mãe e filhas o
relacionamento é gomoso, reforçado pela repetição, a despropósito, que o pai é
mau, ele é mau, é mau, ele quer que elas frequentem a escola mas a escola é má,
quem sabe o que quer aprender são as crianças, a escola é má porque quer
ensinar o que as crianças não querem aprender... É verdade, é verdade, concorda
e abana a cabeça a velhota dos comprimidos. Ele é mau, o pai há muito que
agora é ele, os avós são maus, são, concorda e abana-se a velhota, os tios são
maus, os primos são maus... o que são avós? o que são tios? o que são primos?
... O que são?, são maus! São todos maus, concorda e abana-se repetidamente a
velhota, que acrescenta, o mundo é mau, é mesmo muito mau. O que é mundo?
O mundo, explica a mãe e repete a velhota, o mundo é uma coisa má, mesmo muito
má, apagam-se os nomes e os rostos na memória das crianças, submergidos na
maldade generalizada.
À noite, não sei o
que se passa lá em cima de noite. No primeiro andar da casa há quatro quartos
mas mãe e filhas dormem juntas na cama que antes foi cama do casal. Ouço-as a
rirem-se, talvez estejam a fazer cócegas umas às outras, porque o riso
solta-se em crescendo até ao esgotamento que as sossega. Que tara, que
desejos, que carências, que aberrações incitam esta mãe a esta colagem que não
a despega das filhas por um instante sequer?
Forçado a dormitar de dia, passo as noites meio a dormir meio acordado até o
sol nascer e a vontade de ir à rua para a mijinha matinal me acordar de vez e
me contorcer o corpo em sofrimento.
Antes, quando o pai das crianças habitava na casa e saía cedo para trabalhar, levava-me à rua a horas convenientes, agora tenho que aguentar que mãe e filhas desçam coladas do andar de cima, geralmente duas horas mais tarde que antes da saída do homem da casa.
Se, enquanto espero e desespero que desçam, passa um amigo meu na rua, um daqueles que encontro durante a volta antes do almoço, e lhe envio um sinal de cumprimentos, ui!ui!, o que tu fizeste! aqui só abres a boca para bocejar e comer ..., impera lei da rolha, se a violas, por mais discreto que sejas, levas um berro de fazer tremer a casa de alto a baixo e um pano encharcado por cima do lombo.
Antes, quando o pai das crianças habitava na casa e saía cedo para trabalhar, levava-me à rua a horas convenientes, agora tenho que aguentar que mãe e filhas desçam coladas do andar de cima, geralmente duas horas mais tarde que antes da saída do homem da casa.
Se, enquanto espero e desespero que desçam, passa um amigo meu na rua, um daqueles que encontro durante a volta antes do almoço, e lhe envio um sinal de cumprimentos, ui!ui!, o que tu fizeste! aqui só abres a boca para bocejar e comer ..., impera lei da rolha, se a violas, por mais discreto que sejas, levas um berro de fazer tremer a casa de alto a baixo e um pano encharcado por cima do lombo.
Se, por acaso que
penso ser muito improvável, o que aqui se diz chegasse ao conhecimento da
carcereira seria, calculo eu, condenado a solitária, na cave, onde, aliás,
nunca me foi consentido meter as patas, sem luz nem aquecimento, quase
certamente sem paparoca, a verdade é muitas vezes inacreditável e perigosa. Mas
manda a verdade que aqui se diga que certa noite ouvi entre a velha e a mulher
que nos tem encarcerados uma conversa daquelas para acreditar quem quiser:
falavam de vidas passadas, as crianças, todas as crianças são, até ao momento
do nascimento, um repositório de conhecimento que se apaga quando inspiram o
primeiro oxigénio, a sua alma é superior à dos adultos, o tamanho aumenta em
cada reencarnação, daí que sejam, as crianças, entenda-se bem, mais capazes de
decidirem sobre elas do que os adultos por elas e, daí, ser uma violência
obrigá-las a frequentar a escola. Na mesma ocasião ouvi, pasmem!, se ainda não
fecharam a boca de espanto, que alguém, mas não entendi quem, teria consultado
uma vidente para conhecer quem fora seu antepassado. O resultado compensara o
custo, em vida passada o consulente tinha sido não menos que Luís XVI.
Esperançada, recorreu a esposa à mesma vidente, sem informar com quem era
casada, e saiu-lhe a Maria Antonieta na rifa. Foi um delicioso delírio até ao
momento em que, numa altura de confidências, souberam que a tão consultada
vidente tinha atribuído a mesma antecedência a um casal amigo.
E a mim, que vida
passada me tramou?
Perguntei
insistentemente à velhota da caixa dos comprimidos quando a apanhei a jeito,
mas, como a outra, ela não ouviu o meu olhar.
Continuo a passar os
dias e as noites sentado ou deitado no capacho, num canto da sala, se me
levanto é para três saídas à rua, uma de manhã, outra à noite para alçar a
perna, muito breves, tão breves que quando volto para o capacho sinto uma
vontade intensa de voltar logo lá fora por não ter despejado quanto devia. É
durante a saída, antes de almoço, para um giro nas redondezas que alço a perna
à vontade ou encurvo as costas para fazer força no sítio devido.
Depois dormito, se me
levanto não ultrapasso aquela linha imaginária que circunscreve o território,
uns quatro metros quadrados, em que posso dar meia volta e voltar ao capacho.
Uma linha imaginária que se, por inocente distracção, a toco, desencadeio um
berro dela capaz de acordar um morto. A primeira vez, logo no dia em que entrei
cá em casa, o impacto do grito saído de um silêncio estranho, estranho
para quem deixara há poucas horas o sol, o mar, a vozearia nas ruas cheias de gente
a qualquer hora, atravessou-me a espinha como um raio. E disse-lhe, com calma,
não com medo, porque grita tão alto estando eu aqui tão perto? Mas ela não me
ouviu, não compreendeu. Temos formas de expressão diferentes, a dela e os da
espécie dela pelo som, geralmente em tom baixo, ela, comigo, pelo berro,
só não ouve quem não tiver bom ouvido, a minha, a da nossa espécie, lê-se
nos nossos olhos, e ela não repara, nunca reparou no meu olhar.
Hoje, dez anos
depois, reconheço que fui tanso quando não respondi à estridência bruta daquele
electrocutante primeiro grito com uma resposta à medida. Talvez ela me tivesse
devolvido à procedência e eu estaria agora a regalar-me com o calor do sol e
a maresia do lugar onde fui parido e cresci até ser trazido para esta casa.
Talvez tivesse, nesse caso, que fazer pela vida, mordiscar o que aparecesse,
dado ou roubado, e não apodrecer neste capacho à espera que a bruta me faça
sinal mudo para me aproximar da tigela apenas uma vez por dia. Primeiro come
ela e as filhas, depois eu. Nada a reclamar se eu pudesse avançar logo que a
tigela é colocada junto da linha invisível, normalmente meia hora depois de
terminado o almoço delas. Mas não senhor, a tigela está ali a uns dois metros
do meu faro esgalgado, contorço-me no capacho, sigo-lhe ansioso todos os
movimentos, e só após uma longa espera sou autorizado a avançar. Tanta fome,
recordo que não me entra pitada na goela há um dia, precipita-me para o tacho
e, de vez em quando, o tacho tomba.
E lá vem o grito
assustador pelo crime cometido pela larica, sem atenuantes. Pior que isso é
ficar a tigela vazia, o chão sujo, de onde ela não me consente comer, limpa
tudo para o lixo, e a fica-me a barriga a dar mais vinte e quatro horas em
vazio.
Ponham-se no meu
lugar: imaginem-se sentados a uma mesa para almoçar onde todos, naturalmente,
começam a comer logo que a comida chegue e o dono da casa diz bom proveito!
mas, tu não. A comida está à tua frente, tens tanta ou mais vontade comer que
os outros, já não petiscas nada há pelo menos um dia, mas não podes começar a
comer enquanto os outros não terminam e não tiveres permissão para comer. Não é
a mesma coisa? Por que não? Somos diferentes, pois somos, mas todos somos
animais que para viver precisam de comer. Ou não? Qual a diferença no funcionamento
dos sistemas básicos entre os humanos e os outros animais?
E não se fica
a tortura da espera pela tigela da paparoca. De manhã, quando ela se
decide a colocar-me a coleira para a saída da mijinha matinal, já estou torcido
e contorcido de tanto aguentar a apertar, um dia destes, a velhice trás destas
coisas e eu agora já não sou assim novo, ainda mijo no capacho, e não sei,
nesse caso, o que me possa acontecer, talvez lhe dê uma dentada bem ferrada se
ela se atrever a ir além do grito histérico, e seja o que Deus quiser.
Durante o passeio
antes do almoço assalta-me sempre a ideia de aproveitar a oportunidade de, nos
breves momentos que ela me solta a corda, pôr-me ao fresco, dizer-lhe adeus de
longe, passe bem que eu vou à minha vida, mas seria uma tentativa frustrada em
poucas horas, porque quando aqui cheguei meteram-me debaixo do pelo uma coisa
que depois vim a saber se chama chip, uma espécie de bufo que informa a
polícia, a fuga é possível mas seria inconsequente, e lá volto eu para o
capacho.
E assim
continuo sequestrado nesta sala, sentado ou deitado no capacho quase todo
o dia de todos os dias. Um sequestro que me obriga a ver e ouvir o que me
revolta sobretudo nesta época do ano quando, durante a curta saída diária vejo
os sons, as luzes, o encanto estampado no rosto das pessoas pela celebração em
família do milagre do nascimento, e me assaltam mais intensamente saudades dos
meus irmãos, que será feito deles a estas horas, estarão também condenados a
uma vida vegetativa, a servir de bibelots vivos em regime de
sequestro? Para que sirvo eu, aqui, condenado em prisão perpétua a
envelhecer neste capacho, neste canto da sala, a ver a entrar e sair os dois
gatos pela gateira, também eles condenados a clausura, mas menos sofrida,
perpétua mas menos sofrida, porque têm licença de saída para as traseiras e a
vaguear por toda a casa, e ser a clausura doméstica mais conforme à sua
natureza independente mas aconchegada? Em tempos idos, os gatos caçavam ratos,
agora a caça ao rato pode matar o gato que se regale a comer um rato semi morto
por envenenamento, já não se passeia pelos telhados a miar por amor, brinca com
o que calha quando é juvenil, come o que lhe põem na taça, e dorme a sono
desprendido quando é adulto e velho, quer dizer, também não presta para nada.
De frio ou calor em
casa, não me queixo. Não sei o que pensam os gatos, a arrastar a barriga da
velhice ou mais a dormir que acordados no poleiro, já tenho tentado entendê-los
pelos olhares, cada vez mais embaciados, inexpressivos, quem sabe se já
quase cegos, e não lhes descortino senão tédio cristalizado pelo conforto, pela
papinha e uma inutilidade sem limites que só lhes exige submissão em troca.
Bibelots vivos, ou meio vivos, como eu, que gozo, que prazer, que interesse,
desfrutam os carcereiros da posse destes prisioneiros castrados sem crimes cometidos?
Se vissem o que eu
vejo, manteriam os gatos aquele ar de múmia se sentissem o que eu sinto? Somos
diferentes, não é por eles estarem velhos, meios cegos e surdos, que estes
gatos sentados no poleiro não mexem um pelo, insensíveis ao que se passa na
sala à frente dos seus bigodes. Não a mim, contorço-me no capacho,
revolvem-se-me os interiores, apertam-se-me as meninges, por ver o estendal de
perversidade que testemunho sem poder depor.
Quando, durante algum
tempo acompanhei o Urs e a Cherry, o Urs parava a conversar com quem se cruzava
nos nossos passeios matinais. Com um discutia política internacional, com
outro economia doméstica, com outro o mérito da homeopatia, com outro as
potencialidades da parapsicologia, com outro curiosidades e aberrações da
natureza, neste caso, do mundo animal.
Como a Cherry não era
o meu tipo nem eu o dela, não havia conversas entre nós e eu ouvia o que dizia
o Urs.
Foi por ele que
fiquei a saber que há bichos fêmeas que matam e comem o macho depois que,
truca-truca, os dois fizeram filhos, um tema que desencadeou uma discussão
longa acerca da culpa e do livre-arbítrio, se sabem de que se trata, ainda bem
porque a mim escapam-me.
Para o Urs o
canibalismo sexual de alguns bichos fêmeas não é uma aberração da
natureza mas uma consequência da evolução das suas espécies ao longo de muitos
milhões de anos. É assim e não há nada que demova a fêmea canibal a deixar de
ser.
E o bicho homem, o
maior predador de todas as espécies, e, sobretudo, da sua, que culpa tem dos
actos que pratica se o caminho do livre arbítrio o conduz para a prática de
tantas atrocidades? perguntou-lhe o outro.
O livre arbítrio é
uma armadilha em que cada um pode cair consoante a fórmula dinâmica gerada no
instante da concepção e das circunstâncias que defronta uma vez lançado no lago
amniótico e depois no mar exterior. O homem, só em parte é um ser racional
porque nunca se livra de alguns instintos primitivos comuns a todos os bichos.
A alienação parental, por exemplo ...
... A quê?, perguntou
o outro, um sujeito idoso, meio surdo, ao mesmo tempo que ajustava sintonia das
orelhas e eu espevitava as minhas.
Alienação parental é
o aprisionamento dos filhos de um casal por um dos seus progenitores, quase
sempre a mãe, impossibilitando o pai de conviver com os filhos de ambos.
É possível? É legal?
É ilegal mas a
justiça é lenta e a sequestradora aproveita a morosidade para fazer
esquecer aos filhos que o pai existe e sofre com a perversidade montada pela
mãe. É uma fórmula de canibalismo sexual feminino, que difere da do
escorpião ou do louva-a-deus porque a deglutição da fêmea humana canibal é
muito mais prolongada que a de outras fêmeas canibais. Se a espécie humana
evoluiu para formas de comportamento diferentes das outras espécies foi porque,
no ramo da árvore de evolução das espécies subiu a patamares
superiores de minimização de funcionamento dos seus instintos mais primitivos.
Percebo o que dizes,
Urs, mas considero exagerada a comparação ...
E é, aparentemente,
é, mas porquê? Porque a humanidade evoluiu sociologicamente e a fêmea canibal
humana não mata o pai dos filhos porque o homicídio é crime pesadamente
penalizado, mas, ao recusar a convivência dos filhos com o pai,
pretende matá-lo pela angústia da ausência e esquecimento dos filhos. As acções
são diferentes mas os instintos que as comandam são os mesmos. Curioso é que o
comportamento da fêmea canibal humana imita bem o do louva-a-deus que, em
permanente oração, parece incapaz de matar uma mosca mas mata o parceiro sexual
após copular com ele.
Queres dizer que
poderíamos confirmar a validade da tua comparação se o homicídio e o
canibalismo não fossem punidos? Que, nesse caso, a fêmea humana mataria e
comeria o macho?
Que te parece?
Hum! ... Não sei. De
entre um incontável número de espécies de seres vivos apenas um reduzidíssimo
número mata e come o parceiro sexual...
... mas também apenas
um reduzidíssimo de humanos, homens e mulheres, mas sobretudo mulheres, rejeita
o parceiro sexual e rapta os filhos de ambos.
A rejeição do
parceiro não é condenável...
Não, é óbvio que não,
aliás, a ninguém pode ser imposto o martírio de viver com quem deixou de
querer continuar a viver. Mas o rapto dos filhos é um crime, salvo motivo
reconhecidamente grave, que só os meandros da justiça consentem que subsista
traumatizando profundamente o pai, ou a mãe, e os filhos envolvidos no
sequestro. É um crime motivado por instintos perversos do sequestrador.
Por quê?
O perverso
alimenta-se da dor provocada às suas vítimas.
Incluindo os filhos?
Não é possível.
Pois não. O perverso
inverte os efeitos perniciosos da perversão, neste caso sobre os filhos,
invocando benefícios dos meios que lhe justificam os fins. A felicidade do
perverso está no gozo da infelicidade das suas vítimas.
E esta conversa ficou
por ali.
Recordo-me também que
um dia, não sei a que propósito, o Urs demorou um tempão a convencer com quem
conversava que os cães têm capacidades de telepatia que lhes permitem entender
à distância o pensamento do seu acompanhante. Talvez o Urs tenha razão, mas
nunca me pareceu que houvesse entre ele e a Cherry algum canal de comunicação
telepática, a Cherry era de temperamento desobediente. Quando agora me recordo
dessa revelação do Urs, fixo, por períodos longos, o meu olhar nos gatos
tentando estabelecer com a mente deles uma comunicação de pensamento mas, ou os
emissores estão apagados ou as linhas de comunicação não se ligam, não recebo
qualquer sinal daquelas cabeças duras.
Curiosamente, leio
com estranha precisão o que passa pela cabeça da nossa carcereira. Estranha
precisão porque, como tenho dito e redito, um velho repete-se muito, não existe
entre mim e aquela mulher, agora ali a três ou quatro metros à minha frente, a
mínima vibração de empatia. E pergunto-me se leio por telepatia ou por
inevitável conhecimento da extrema previsibilidade comportamental dela. Aliás,
esta foi a diferença que separou a opinião do Urs, que andava a ler tudo sobre
telepatia, da do amigo, que disse não haver evidências científicas de
transmissão de pensamentos sem utilização dos cinco sentidos, reconhecendo, no
entanto, sem dificuldade que a acuidade de cada um deles varia muito de espécie
para espécie.
A mim, cá em
casa, cheira-me sempre a esturro, mas não é pelo faro que chego lá
...
E o que é que vai na
mente desta carcereira na véspera deste Natal?
Nada de novo.
Em tempo oportuno
comprou o quadro do advento, um abeto, velas finas de cera branca, que vai
acender esta noite de véspera de Natal, depois senta-se com as filhas à volta
da árvore, cantam as canções da época, de louvor ao Senhor, a mim vêm-me as
lágrimas a ver tanta solidão quando o momento deveria ser de comunhão de
alegria pela celebração do milagre do nascimento. Os gatos dormitam, como
sempre, não há alegrias nem tristezas alheias que os comovam.
Não estará pai, nem
os avós, nem os tios, nem os primos das filhas da carcereira. Só elas três.
Há dias passou por
aqui a velhota, visita habitual da casa duas ou três vezes por ano, que se
esqueceu cá, aqui debaixo do sofá a caixa dos comprimidos, a não mais que um
metro da borda do capacho. Telefonou no dia seguinte a perguntar se, por acaso,
não tinha sido encontrada a sua caixa dos comprimidos. Estava preocupada, não
por causa dos comprimidos, já tinha comprado outros, mas porque poderiam ser
encontrados pelas crianças, receava que elas pudessem, por curiosidade,
provar-lhes o gosto. Disparate! As miúdas não eram bebés, sabiam bastante bem o
que era e o que não era bom para elas, melhor que os adultos.
É verdade, é verdade,
respondeu a velha do outro lado, e ninguém mais pensou na caixa dos
comprimidos. Ali mesmo, ao meu alcance, reparei eu uns dias depois.
Hoje, depois dos
cânticos do trio ao mesmo tempo que se extinguiam as velas, e a casa ficar às
escuras, estendi a mão direita e puxei a caixa dos comprimidos para o capacho.
Ao puxar a caixa, não sei que jeito lhe dei, saltaram os comprimidos.
Cheirei-os, gostei do cheiro, provei um ou dois, não eram desagradáveis, para
evitar problemas devolvi a caixa à procedência e os comprimidos à solta.
Horas
depois, não sei quantas nem como estava a muitas milhas dali, entre familiares
e amigos que não via há tanto tempo. Estavam os meus pais, os meus sobrinhos,
os meus tios, estavam os meus amigos, além de outros que eu não conhecia.
Estavam também os meus irmãos vendidos e embarcados há mais de dez anos. Não os
via desde o dia em que nos encontrámos numa reunião de convívio de indivíduos
da nossa espécie. Todos me gabaram o pelo sedoso e a graciosidade máscula das
minhas orelhas. Corremos atrás uns dos outros, nunca corri tanto em toda a
minha vida, desforrei-me de anos de atrofia e tédio sem que os músculos, os
ossos ou o coração reclamassem. Foram horas e horas a encher o papo de
brincadeira, e ninguém estava exausto. Só não foi uma paródia infindável porque
me ocorreu perguntar aos meus irmãos imigrantes como lhes corria a vida. Nada
mal, depreendi, estavam em casa de gente cordata, que os estimavam, eram, se
assim se pode exagerar, tratados como fazendo parte das famílias.
E a ti, perguntou-me um deles, como te
tratam?
Para
não fazer figura de pouca sorte do grupo, engoli em seco as minhas
angústias, os dias e as noites passadas no capacho e o espaço limitado
pela linha invisível que não me permite ir além de dois metros fora dele, a
tortura da espera das horas da mijinha e da tigela à frente de tanta fome sem
pode comer, dos berros que me arrepiam o sistema nervoso, do chip que não me
permite evadir-me do cárcere, daquilo que vejo e me tortura sem poder
denunciar.
Hum!
Acabou-se a paródia, está a nascer o sol ...
E,
oh! diabos a levem, mijei no capacho... E agora?
Se
ela me berra, leva uma dentada! Algum dia teria que ser. E talvez me entregue
no canil... Mal por mal prefiro o canil.
E,
já que tenho que esperar que desçam ao rés-do-chão, vou apanhar e esconder os
comprimidos que sobraram.
NATAL 2018
Sintra, 17 de dezembro de 2018
Querida R.M.,
Querida D.F.,
O Natal é já de hoje a uma
semana.
Lamentavelmente, há mais de dois
anos que continuamos sem poder ver-vos e, pela mesma incompreensível razão, não
vamos poder estar convosco durante este Natal, que, para toda a gente de boa
vontade, é a festa da família, aquela que reúne os pais, os filhos, os netos,
os tios, os primos.
Queridas netas: também vocês,
para além da vossa mãe, têm um pai que vos ama e suporta uma tristeza imensa
por não vos ver, avós que muito vos adoram, tios que muito gostariam de vos
abraçar, primos que adorariam brincar com vocês. Mas, mais uma vez, o vosso
Natal não será uma festa de família e o nosso Natal estará profundamente
magoado pela vossa ausência.
Não vamos alongar mais esta
mensagem que, muito provavelmente, não vos será entregue e muito menos lida mas
permanecerá viva nas nossas memórias, arquivada nas nossas lembranças e nos
nossos registos. Um dia, temos muita esperança, vocês saberão onde poderão
lê-la.
Enviamos umas pequenas
recordações, de valor simbólico, como costumamos fazer todos os anos. E
continuaremos enquanto vivermos, magoados mas esperançosos num futuro menos
carregado de saudades de vos ver.
Muitos beijinhos
Avó I.
Avô R.
Saturday, December 22, 2018
PARA UMA ANTOLOGIA DA PULHICE JURÍDICA EM PORTUGAL
Quando, um dia, alguém editar uma antologia da pulhice jurídica em Portugal vai, seguramente, incluir um texto de opinião do Prof. Freitas do Amaral, BES e GES – Um só responsável? Novos ataques a Ricardo Salgado, publicado aqui no dia 19 deste mês.
A anteceder a leitura daquela peça de antologia, e para orientação no contexto, sugere-se que se preste atenção ao artigo de João Miguel Tavares, Freitas do Amaral loves Ricardo Salgado, publicado aqui.
Wednesday, December 12, 2018
Saturday, December 08, 2018
RETROVISOR DOS PRÉDIOS DEGRADADOS
Câmaras desprezam
arma para combater prédios devolutos (vd. aqui)
São poucas as
câmaras municipais que agravam o IMI nos prédios devolutos. Orçamento do Estado
para 2019 prevê penalização adicional.
O recurso ao agravamento do Imposto Municipal de Imóveis (IMI) como
instrumento para a promoção da reabilitação urbana e combate aos imóveis
degradados e devolutos não é nova e aparece na proposta de Orçamento de Estado
pela quarta vez consecutiva. A novidade na proposta para 2019 é que o Governo
prevê uma espécie de agravamento do agravamento: se até aqui as autarquias
poderiam cobrar o triplo das taxas de IMI (que variam entre 0,3% e 0,45%,
dependendo do município) nos prédios devolutos, em 2019, e de acordo com a
proposta do Governo, esse agravamento pode chegar até ao sêxtuplo.
Falta ainda regulamentar a forma como estes mecanismos vão ser aplicados,
uma vez que o que foi votado na Assembleia foi a autorização legislativa que dá
ao Governo carta-branca para avançar nesta questão. Mas, de acordo com o que o
Governo já deixou transparecer no relatório que acompanha o Orçamento de
Estado, a intenção é acrescentar às áreas inscritas como Áreas de Reconversão
urbanística previamente definidas pelas câmaras municipais a possibilidade de
definir um novo conceito de “zona de pressão urbanística”.
De acordo
com informação recolhida pelo PÚBLICO junto do Ministério das Finanças, no ano
de 2015 apenas 18 dos 308 municípios existentes usaram esta ferramenta. Nos
anos seguintes o número não se alterou substancialmente: em 2016 foram 20
câmaras e no ano seguinte foram 21. Os dados do ano de 2018 ainda não estão
fechados, mas, pelas indicações recebidas em Abril, altura em que surgem as
primeiras facturas do IMI, o número de municípios subiu para 54 (17,5% do
total). Continua, ainda assim, longe de ser uma ferramenta de utilização
generalizada.
Lisboa, Faro, Coimbra, Leiria, Lagos e Setúbal, Palmela e Tondela são
alguns dos exemplos de municípios que sempre accionaram este recurso.
Os indícios de desocupação dos imóveis baseiam-se na inexistência de
contratos em vigor com empresas de telecomunicações e de fornecimento de água,
gás e electricidade (ou na inexistência de facturação relativa a esses
consumos). A taxa agravada já poderia ser aplicada em prédios inseridos em
áreas de reconversão urbanística que estivessem devolutos há mais de um ano. No
caso dos imóveis em áreas de pressão urbanística, a penalização tributária pode
acontecer nos casos em que os prédios estão devolutos há mais de dois anos.
Os indicadores objectivos que vão definir a área de pressão urbanística
ainda estão por determinar, mas devem ter em consideração os preços do mercado
habitacional e os rendimentos das famílias ou as carências habitacionais. A
ideia defendida pelo Governo é que os municípios possam começar por agravar a
taxa de IMI em seis vezes e fazer um aumento adicional de 10% em cada ano
subsequente. O limite máximo autorizado é cobrar 12 vezes a taxa de IMI.
Sendo as receitas das autarquias, de modo a estas financiarem as suas
políticas municipais de habitação, a verdade é que, até agora, elas têm sido
usadas com alguma parcimónia. E nem quando as empresas de fornecimento de água
e electricidade passaram a estar obrigadas a facultar dados de consumo aos
municípios, a partir de 2016, se notou uma adesão maior a este instrumento que
acaba por ser uma fonte de receita do município.
Para fazerem a cobrança, estes municípios só têm de identificar os imóveis
e notificar a Autoridade Tributária de que se trata de um prédio devoluto. As
Finanças limitam-se a receber a comunicação dos edifícios e têm-se recusado a
participar na qualificação dos imóveis como devolutos e a fazer qualquer tipo
de verificação.
É esta postura, por exemplo, que tem impedido a Câmara do Porto de avançar
com a penalização dos imóveis degradados, optando por não o fazer pelo menos
até ao ano de 2017.
Cinco mil proprietários
O último levantamento feito aos prédios devolutos em Portugal apontava para
450 mil imóveis, como identificou a Confederação da Construção e do
Imobiliário, a associação do sector em Portugal.
O número de prédios identificados não corresponde ao número de
proprietários que foram taxados a triplicar.
No ano de 2017 apenas 5132 proprietários foram notificados pelas Finanças
para pagar um IMI agravado nos prédios que estavam devolutos. E, de acordo com
os dados disponibilizados pelo Ministério das Finanças ao PÚBLICO, este número
de proprietários tinha na sua posse um total de 10.125 prédios.
Foi um número de imóveis ainda mais baixo do que aqueles que foram
tributados de forma agravada no ano de 2016 e de 2015: respectivamente, 12.075
e 11.789. Em 2016 foram penalizados 6237 proprietários e em 2015 foram
penalizados 5960 proprietários.O número de proprietários não corresponde ao número de prédios uma vez que
o mesmo sujeito passivo pode ser proprietário de mais do que um prédio devoluto
ou em ruínas. Por outro lado, um prédio em ruínas pode ter vários
comproprietários e havendo compropriedade apenas é contabilizado um prédio,
esclareceu as Finanças.
Friday, November 16, 2018
Sunday, November 11, 2018
A PARADA*
Nas semanas seguintes ao reaparecimento
do quartel Boavida os jornais, os canais de televisão, as estações de rádio, as
redes sociais, não largaram o tema enquanto não surgiram mais ondas de
escândalos públicos, grandes desastres, locais ou remotos. Não no círculo
social da coronela, onde o caso do quartel continuou a dominar as indignações
sobre o clima de suspeita que se tinha derramado sobre todo o pilar de
sustentação da soberania, as forças armadas. Havia um consenso unânime de que
se impunha tomar medidas que devolvessem à imagem das forças armadas o
prestígio maculado pelo caso quartel. Mas quais? A ninguém ocorria uma ideia
forte, inabalável, até ao dia em que a coronela viu desfilar na televisão as
tropas de uma potência nuclear asiática, entre os mísseis, os lança mísseis, os
tanques, e muita metralha que nunca vira na vida, com um aprumo cadenciado a
passo enérgico de ganso. E, no dia seguinte, antes que a discussão divergisse
para propostas polémicas, saltou para cima da mesa a ideia que não a deixara
dormir de noite.
Se queremos transmitir ao país uma
impressão forte proponho que as forças armadas desfilem em parada na avenida
mais emblemática do país.
Uma parada? E temos material,
armamento, e gente para uma parada? A tropa está nas lonas, o que é que podemos
desfilar senão pilecas?
Metemos as polícias ...
As polícias são forças armadas?
Algumas estão mais bem armadas que
algumas tropas...
E os bombeiros?
Os bombeiros estão armados?
São meios de combate, sabem melhor que
ninguém o que é um teatro de operações ...
Parece-me bem que se incluam os
bombeiros. Têm viaturas que fazem um vistaço.
E as bandas? Há muitas bandas, no
exército, na marinha, nos aviadores, ...
Nas polícias ... os bombeiros não sei
se têm ...
Devem ter. Nenhum quartel dispensa uma
banda...
Foi aprovada a proposta e assumido o
compromisso de todas garantirem o sucesso da ideia junto dos respectivos
consortes e destes junto dos seus pares nas forças armadas e actividades
correlativas. E que o desfile se realizasse também como homenagem
daqueles que tombaram e dos que escaparam há cem anos na primeira grande
guerra.
Se a coronela quando chegava a casa ao
fim da tarde baixava dez centímetros de altura, descalçando sapatos
de salto alto que não dispensava fora de casa, é porque entrava em modo
sossegado. Geralmente, o coronel já se encontrava em casa a dormitar no
sofá em frente do televisor, já cá estou, o coronel nem dava por ela. Se
mantinha a altura exterior, era certo e sabido que a conversa da coronela com
as amigas criara esturro, e agora o coronel teria sermão e missa cantada
à volta, compassada com o toque, toque, bem martelado dos saltos altos no chão
da sala.
A PIC, Polícia de Investigação Criminal
tinha sido a última a saber que o quartel Boavida reaparecera no mesmo
sítio de onde desaparecera quatro semanas antes. Uma
pouca-vergonha, um enxovalho para polícias, magistrados e juízes,
mas os militares é que continuavam no ponto de mira da generalidade das
notícias e comentários que continuavam a infectar a opinião pública,
submergindo todos os escândalos que desde há anos se vinham acumulando e
arrastando entre sentenças e recursos intermináveis, e se mediam em
milhares, muitos milhares de milhões encaminhados para corruptores, corruptos e
coniventes.
Já se conhecia quem devolvera o
quartel à procedência, ninguém sabia, no entanto, porquê, nem
como, nem por quem, havia sido roubado. Das suspeitas que impendiam
sobre o coronel, comandante e primeiro responsável pela defesa dos homens
e das estruturas do quartel, refutava a coronela a insinuação de acusação
que lia no mutismo das suas amigas, alegando que o marido não
dormira no quartel na noite do desaparecimento porque tinha família, dormira
com ela no apartamento que tinham comprado na cidade, aliás, nenhum
comandante dorme nos quartéis, salvo em tempo de guerra, e por agora,
para o bem de todos, felizmente reinava a paz.
Assim resumia a coronela a sua
indignação nas reuniões com as suas amigas, casadas com oficiais
superiores do quartel Boavida, corporativamente solidárias com a coronela, mas
esperançadas que o Boavida tivesse perdido, irremediavelmente, as suas ambições
de atingir o generalato, aumentando as probabilidades de abertura de vagas no
comando do quartel, e no encadeamento das promoções até o topo da hierarquia
da instituição militar. E ela perderia a oportunidade de ser promovida
pela inveja de amigos e conhecidos a generala.
Boavida!, disse a coronela do alto dos
seus sapatos altos depois de duas voltas ao sofá onde o coronel dormia de olhos
pregados no televisor, sem pestanejar quando a marcha da coronela passava à sua
frente.
Boavida! Temos que tomar medidas!,
repetiu a coronela e uma palmada nas costas para acordar o coronel. Estremunhado,
o coronel disse han?!, ao mesmo tempo que se voltava em posição de guarda
para a eventualidade de evitar uma segunda palmada.
Temos quê?
Tomar medidas!, repetiu a coronela,
parou a marcha e sentou-se ao lado do Boavida que se encostou a um canto do
sofá para lhe dispensar o outro.
Olha Boavida, se não antecipas a tua
defesa receio que não tardará que te embrulhem no rol dos culpados pelo duplo
caso do desaparecimento e aparecimento do quartel e ...
E....
... E era uma vez um coronel Boavida,
.... a tua carreira acaba, na melhor das hipóteses com passagem compulsiva à
reserva.
Sonhaste isso?
Não, mas reflecti muito sobre o que se
está passar.
E o que é que se está a passar?
Não lês os jornais? Não ouves as notícias
na rádio e na televisão? Em que mundo é que vives, Boavida? Não sabes que o
ministro se demitiu, depois de ter negado publicamente que não sabia da manobra
do reaparecimento, e que o chefe maior do exército foi obrigado a seguir pelo
mesmo caminho? Que não é credível que o chefe do governo não tivesse sido
informado pelo ministro e o chefe do governo não tenha informado o chefe
supremo?
Nem precisava, o chefe supremo sempre
foi capaz, e continua, de ser o primeiro a saber graças ao seu radar de
larguíssimo alcance. Tenho a consciência tranquila, e tu sabes bem que tenho
razões mais que suficientes para não ser acusado seja do que for. O quartel
desapareceu e reapareceu à noite. Onde passo eu as noites? Com quem durmo?
Não te iludas, Boavida, dormindo
contigo não faz de mim uma testemunha fiável nem nada garante que os culpados,
se houver culpados, estiveram no quartel de noite, há grandes golpes que não
são executados por quem os engendra. Há muita gente envolvida à procura de um scapegot
(a coronela leccionava inglês e bode expiatório nunca lhe soara bem), e o
sentinela preso não passa de um contrapeso para um escândalo com uma dimensão
que é uma enormidade.
Mas tens alguma pista, algum indício de
quem cometeu o crime? Os do governo, que se dizem laicos, garantem que os
factos são inexplicáveis e, portanto, milagres ... Assim sendo, como posso eu,
coronel de infantaria, ser responsabilizado por algo inexplicável?
Acreditas em milagres, Boavida?
O governo acredita.
Deixou de acreditar, e demitiu o ministro
e o chefe maior do exército.
A mim, não me demite.
Mas afasta-te com uma passagem à
reserva.
E porquê? Onde é que ouviste esse
boato? Aposto que é coisa congeminada pelas tuas amigas, ou que se fazem passar
por isso.
Recordas-te do que disseste na comissão
de inquérito?
Muito bem. Disse que não sabia nada
acerca da forma como tinha sido retirado o quartel durante a noite, e que
também desconhecia em absoluto como havia sido reposto, também durante a
noite. Aliás, até prova em contrário, trata-se de factos inexplicáveis e que,
portanto, continuarão inexplicados..
Isso é o que tu pensas, Boavida. A PIC,
que foi gravemente ferida na sua reputação, tudo fará para descobrir
o que se passou, como se passou, e quem foram os que tramaram a honorabilidade da
instituição militar e da PIC, a última a saber da tramóia.
Ainda bem. Subscrevo totalmente que a
investigação tem de descobrir os culpados e que eles sejam condenados, doa
a quem doer. Parece que foi assim que falou o chefe supremo e todos os chefes
por aí abaixo.
Não te esqueças que eras, e ainda és, o
comandante do quartel roubado e devolvido. Mas mais grave do que isso, ou
pelo menos tão grave quanto isso foram as tuas declarações na comissão de
inquérito.
Declarei aquilo que sabia, isto é,
nada. Aliás, ainda hoje estou para saber o que se passou.
Não disseste mais nada?
Não. Perguntaram o que é que eu sabia e
eu respondi que não sabia nada.
Só isso?
Só.
Não é o que consta por aí.
E o que é que consta por aí?
Que fizeste afirmações muito críticas a
propósito da falta de meios de combate, da falta de preparação dos efectivos,
que quando há meios não há guerras, e o pessoal, sem guerras para
combater não tem que fazer, inventa encrencas?
Isso não é verdade. Disse, isso sim,
que as forças armadas andam desmotivadas porque os efectivos são escassos e, em
geral, mal preparados, e os equipamentos, na maior parte dos casos, são
obsoletos, considerando a evolução tecnológica que, nem de longe nem de perto,
temos acompanhado. Por outro lado, não sendo politicamente correto afirmar
isto, é inegável que sem acção não há motivação e, salvo raras excepções, noventa
e muitos por cento dos efectivos nunca enfrentaram uma situação de combate real
nos últimos quarenta anos.
Não disseste mais nada?
De relevante, não.
Não disseste que na manhã seguinte ao
desvio do quartel o oficial de dia tinha adormecido e acordado em casa de uma
amiga?
Nesse caso falei off record ...
Não me digas que os quadrilheiros não respeitaram o direito de reserva que
invoquei...
Digo, digo. E digo mais! A mulher dele
já lhe pôs as malas na rua.
Mal feito. Se fez isso é porque não
acredita em milagres. Tinha ideia que era crente. Casaram-se pela igreja,
fomos convidados, se é crente e não acredita neste duplo milagre só confirma a originalidade
deste imbróglio onde os laicos acreditam que houve milagre e os crentes juram
que houve burla! Mas também te digo que foi o próprio oficial de dia em serviço
no turno daquela noite que me disse, quando o interroguei para apuramento dos
factos, que ignorava completamente o que se tinha passado, adormecera a fazer
paciências e acordara em casa de uma amiga... É estranho, muito estranho sem
dúvida, mas temos de considerar paranormal tudo o que se passou naquela
noite de muitos milagres.
Tens de concordar que nada disso abona
a favor do prestígio das forças armadas em geral, do exército e do nosso
quartel, em particular.
Até prova em contrário, todos os
fenómenos relacionados com o desvio e a reposição do quartel são paranormais,
não têm explicação científica, e creio que nunca vão ter.
Também consideras paranormal que um
oficial de turno, responsável imediato pela segurança e defesa do quartel seja
surpreendido pelo sono porque se entretinha com paciências e se borrifou para
os procedimentos da ronda?
Não, neste caso não houve para
normalidade mas normalidade ...
Essa é boa! É com essas e com outras
parecidas que passa para a opinião pública a imagem de que temos uma tropa
fandanga. Como podes tu, Boavida, admitir sequer que seja normal o desleixo
onde é indispensável a disciplina? Como explicas esta contradição máxima?
Não ter que fazer, cansa...
O oficial de turno não tinha que fazer?
Pouco, quase nada, quando o perigo é
muitíssimo remoto. Hoje, não passa pela cabeça de ninguém assaltar um quartel,
os assaltantes preferem trabalhar nas ruas, nos transportes públicos. Hoje, os
quarteis, como os bancos, quando são assaltados, são assaltados por dentro,
percebes?
Então, se bem te entendo, Boavida, o
nosso quartel foi assaltado por dentro...
O nosso quartel não foi assaltado, foi
milagrosamente desviado...
Sem que o sacana do oficial de turno
desse por nada, porque estava cansado de fazer nada, e adormeceu. Foi assim?
Até prova em contrário, parece que
sim.
Mas faz algum sentido?
Faz.
Como explicas, tu, comandante do
quartel a banalização do desleixo dos teus subordinados?
Explico porque os compreendo. Tenho
cinquenta e cinco anos de idade, trinta e cinco de serviço, mais três anos do
que aqueles que levamos de casados...
... E cansados um do outro...
Não disse isso. Aos vinte anos era
alferes de infantaria. No dia em que, pela primeira vez, era comandante de um
pelotão de trinta recrutas, senti o peso da responsabilidade de liderar e da
honra de o fazer em funções de defesa da soberania do meu país. Nunca
esquecerei esse dia, marcante na minha vida de oficial do exército. Tinha a
coadjuvar-me um sargento, ele teria, nessa altura, mais uns dez anos de vida e
de serviço militar que eu. Tinha a tarimba que me faltava, era um sujeito
discreto, cumpridor e respeitador, aprendi muito com ele sem que o meu handicap
de novato nas funções alguma vez tenha transparecido para os homens do pelotão.
Suei como nunca tinha suado durante a formação na escola de oficiais, para, à
frente do pelotão, manter o andamento imposto pelo sargento que, ao lado,
imprimia o ritmo nas saídas para o campo em passo de corrida. Fisicamente
esgotado pelas actividades planeadas para os recrutas, no fim de cada dia
sentia-me satisfeito pela carreira que tinha escolhido. Quando cada pelotão
terminava a formação geral e os via partir para as especialidades sentia que
tinha dado a cada um qualquer coisa de mim. Até ao dia em que me assaltou uma
dúvida danada: se teríamos transmitido aqueles rapazes, ou pelo menos a alguns
deles, alguns valores cívicos e alguns princípios elementares de organização e
combate, se lhes teríamos desempenado os corpos e, em alguns casos, as mentes,
que poderia um dia esperar deles o país se fossem chamados a defender a nossa
soberania em caso de eventual ofensiva externa? E, sem dúvida alguma, concluí
que, em caso de chamada às fileiras, aqueles rapazes, que tinham perdido alguns
meses das suas vidas com pouco proveito, se algum, para eles, nenhum
esforço de defesa poderiam dar ao país. O mundo tinha mudado, a arte da guerra
tinha acelerado e nós continuávamos a marcar passo. Para remediar este contrassenso
óbvio decidiram os que podiam decidir que terminasse a incorporação obrigatória
durante um período curto e se recrutassem voluntários, contratando-os durante
períodos longos, mas os constrangimentos subsistiram por falta de meios
adequados...
Adequados a quê?
Boa pergunta, que suscita outra: de que
forças armadas precisa o país? As que temos parecem-se mais com aquelas que se
combatem em guerras civis intermináveis nas repúblicas das bananas do que as
que estão preparadas para se confrontarem com um inimigo externo. Hoje os
nossos efectivos são profissionais que, em larga maioria, utilizam os meios de
combate em que anteriormente eram habilitados os de incorporação obrigatória, a
diferença está no tempo desperdiçado a fazer as mesmas inutilidades.
Por esse andar, com essas ideias não
vais longe ...
Pois não ... Talvez me passem à reserva
... Não me desagrada a ideia da passagem à reserva como coronel, senhor coronel!,
as estrelas estão reservadas para quem está contentinho com a sua
inutilidade...
Mas que lutam pela afirmação da
dignidade das forças armadas!
Oh! Oh!, ... Qual das tuas amigas
te disse isso?
É convicção generalizada entre os
militares, oficiais, sargentos e praças que ao desprestígio causado pelo
burlesco caso do quartel devem as forças armadas opor a organização de uma
demonstração de força e coesão.
Essa é boa! ... Gosto dela! E
como, sabes?
Há várias hipóteses ... a mais
falada é uma parada ... Ninguém falou contigo sobre isto?
Não, nada, estou a ouvir pela
primeira vez ... Mas não me parece mal essa de uma parada, um desfile não é?
Pois, deve ser isso. O que é que
temos para desfilar? Pergunto porque, a ouvir-te, o que temos parece que está
tudo obsoleto e a cair para o lado.
Na infantaria andamos normalmente
a pé, temos umas unimogs, um tanto gastas mas podem encobrir-se os efeitos da
idade com camuflagem convincente, temos o colorido das boinas dos paras e dos
comandos, na cavalaria os carros de combate, tanques que já mereciam a passagem
à reserva, mas bem camuflados impressionam, a artilharia não tem lança mísseis
para exibir mas com uns lança foguetes bem ataviados prova que ainda existe,
a desfilar fora de água, os marinheiros têm os fuzileiros e, a desfilarem
armados, como é da praxe, botam figura, os outros marinheiros têm fardamento,
galões e medalhas que brilham mais sobre o azul, os da aviação podem exibir-se
numas piruetas aéreas, e que mais? As bandas, as bandas não podem faltar nas
marchas...
Não são marchas, é uma parada.
Não são marchas, é uma parada.
Claro, claro, é uma parada. Não sei
porquê, de repente lembrei-me das marchas... E que mais podemos juntar?
Não me ocorre mais nada. Das tuas amigas recolheste mais algumas dicas?
A polícia, aliás as polícias, por
exemplo, são forças armadas, não são?
Sem dúvida. Venham as polícias!
E os bombeiros?
Evidentemente, os bombeiros. Como é que
eu estava a esquecer-me dos bombeiros? Combatem o nosso maior e persistente
inimigo. E com aqueles carrões vermelhos, as sirenes a apitar, sem aqueles
carrões vermelhos perdia-se o melhor, o colorido da parada... Nunca imaginei
que as nossas forças armadas tivessem tanto poder de combate... Invejo os
comandantes de quartéis de bombeiros...
... ?
Têm um inimigo a combater, duro,
persistente, traiçoeiro, enquanto nós, militares, amolecemos pela ausência de
inimigos que nos despertem e dêem sentido à nossa missão. E, por adormecerem os
militares no conforto da paz à sua volta, podem desaparecer e reaparecer
quartéis militares sem que ninguém saiba como, pelo menos por enquanto...
Essa agora, levaste uma vida
inteira a convencer-me que é em tempo de paz que as forças armadas se preparam
para a guerra...e afinal...
Afinal subsiste a questão primordial:
preparar em tempo de paz para guerra. Mas que guerra? Hoje, se colocarmos de
fora a hipótese de um conflito mundial da qual resultaria, muito provavelmente,
o extermínio total ou quase total da espécie humana continuarão a existir
guerras civis, circunscritas, onde os militares não asseguram a defesa do país
mas a dos interesses de facções que se digladiam e frequentemente resultam em
genocídios. Não nos preparamos para um conflito mundial porque esse, se acontecer,
colocará em confronto as potências nucleares, preparamo-nos, quanto muito, para
integrar forças de intervenção em conflitos localizados ou defesa limitada da
soberania no mar e no ar, por compromissos assumidos no grupo de defesa de
países em que estamos integrados, mas, neste caso, o esforço requer um número
muito reduzido de operacionais altamente especializados. Em resumo, grande
parte dos efectivos das forças armadas prepara-se para uma guerra que não
existe nem vai existir. Já os bombeiros, esses sim, esses têm uma guerra
sempre a bater-lhes à porta todos os anos quando o calor aperta e a chuva não
cai. É muito acertada, portanto, a ideia de fazer desfilar os bombeiros nessas
marchas populares...
Não são marchas, Boavida! Trata-se de
uma parada para resgatar o prestígio desgastado das forças armadas!
Lapsus linguae da minha parte que não desmerece a ideia da iniciativa
muito bem prestigiada com a participação dos bombeiros.
Caíram-te no goto os bombeiros...
Era o meu sonho de menino. Se soubesse o
que sei hoje tinha seguido a minha intuição, seria agora comandante de um
quartel de bombeiros...
Disparate!
Disparate, porquê? Seria comandante de
um quartel de forças armadas com um inimigo a assaltar-nos todos os anos...
Consideras os bombeiros como parte das
forças armadas?
Quem concebeu a ideia das marchas...
Da parada...
Isso, quem a concebeu considera, e não
serei eu quem contrariará os idealizadores da procissão...
...?
... Em honra de quem, ninguém sabe quem
nem como, operou o milagre do desaparecimento e reaparecimento do quartel...
És um caso perdido.
Talvez me encontre um dia destes como
bombeiro comandante de um quartel de bombeiros...
...?
Não te agrada a ideia? A mim atrai-me. É um desafio para uma acção de combate a um inimigo que não desiste de nos derrotar. Como militares quem podemos confrontar? Não acredito, não quero acreditar, que a parada seja uma exibição de força perante o poder político.
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