Quando vejo abordada a questão da sustentabilidade da segurança social (e ela é recorrentemente abordada a propósito da necessidade de sustentabilidade das contas públicas) tanto no discurso oficial
como na generalidade das análises, mais ou menos extensas, ou dos comentários, mais ou menos partidarizados, noto em todos esses discursos uma linha de força, que os correlaciona, assumidamente tida pela esmagadora maioria como inquestionável: a existência de um conflito intergeracional provocado pela insustentabilidade da segurança social. Um dia destes, segundo o resumo da ideia insuspeita, os actuais contribuintes não terão direito senão a uma parte pequena daquilo que está a ser pago aos reformados e pensionistas de hoje. Porque a esperança de vida aumentou e a natalidade decresceu, a relação activo/passivo tende para a insustentabildade do sistema.
Em matéria de conflito intergeracional, na sua vertente economicista, é elementar não esquecer que quando a actual geração de reformados começou a ser, compulsivamente, obrigada a descontar para o sistema de segurança social, as estradas, quando as havia, eram na sua maioria de macadame, os carros eram na sua esmagadora maioria de bois, o menino Jesus, pelo Natal, não tinha mais para dar que bonecos de barro ou de lata, salvo se sobre os meninos tivesse recaído a graça do Espírito Santo, a bola era de trapos e jogava-se pé descalço, porque muitos não tinham sapatos e as regras, pelo menos aquelas, eram democráticas. A democracia dos aipedes, dos andróides, das playstations, etc., chegou hà poucos dias. Mas não quero ir por aí.
Não vou também voltar a invocar como argumento as conclusões do relatório da UE de 2012 citado a páginas 55 do Relatório do Orçamento de Estado 2014, págs.55, de que o sistema de pensões de reforma em vigor em Portugal é um dos que menores risco corre nos próximos 50 anos. Admitamos que estão enganados e também este governo se equivocou ao citá-lo.
Mas não há expectativa de um conflito intergeracional à vista? Vamos ver.
Para olhar melhor, convém aproximar e ampliar a imagem do objecto de análise, e observar apenas a parte mais atingida do todo que correntemente se designa por "Estado Social": o sistema de pensões.
Quem é que recebe pensões e quem é que paga essas pensões?
os que serviram na função pública,
os que nunca contribuiram para qualquer sistema previdencial, não contributivos,
os que contribuiram para um sistema previdencial durante um período curto, insuficiente para construir uma pensão mínima, e
os que contribuiram para um sistema previdencial financiado pelas contribuições sociais realizadas durante a sua vida profissional.
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os que contribuiram para um sistema previdencial financiado pelas contribuições sociais realizadas durante a sua vida profissional.
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Quanto aos que serviram na função pública, as pensões são pagas com impostos. Onde é que, neste caso, pode haver conflito intergeracional? Há, tendencialmente, redução de activos relativamente aos reformados? Admitamos que sim. Ou a situação contrária, dá no mesmo. Como salários e pensões da função pública são pagos com impostos arrecadados em cada ano, o que pode ocorrer é um conflito entre o preço da produção da função pública (no activo e na reforma*) disponibilizada e a capacidade de pagamento dos clientes (contribuintes). Esse conflito só admite duas saídas: ou há, em cada ano, conformidade dos custos com as receitas, ou aumento da dívida pública, ou redução de salários e, ou, das pensões. O eventual conflito intergeracional só ocorrerá, neste caso, se houver recurso ao aumento da dívida para pagamento de despesas correntes**. O que, obviamente, deveria ser constitucionalmente interditado.
O pagamento de pensões aos não contributivos ou o pagamento de pensões mínimas a não contributivos com períodos contributivos insufientes, constitui uma das partes do objectivo último de um "Estado Social", de garantia de condições de vida condigna a quem, por uma razão ou outra, não teve a oportunidade de se incluir num sistema previdencial que lhe garantisse uma pensão mínima. Excluem-se (deveriam excluir-se), portanto, os falsos necessitados que, dispondo de meios de riqueza suficientes, desfrutam de vantagens de um sistema, nestes casos, complacente. Poderá haver, neste grupo, conflito intergeracional? Obviamente, não. O sentimento de solidariedade para com os mais necessitados pode ser eticamente induzido às gerações vindouras mas nem pode ser imposto por via legislativa imutável nem criada uma fundação multimilionária com esse propósito.
Finalmente, o grupo dos contributivos, enquadrados no regime geral da segurança social.
E aqui, sim, pode discutir-se a sustentabilidade de um sistema que paga as reformas aos contributivos com as contribuições sociais recebidas incidentes sobre os salários brutos pagos, na totalidade mais de 1/3 dos salários brutos. A possibilidade do cálculo do risco dessa insustentabilidade está-nos, no entanto, vedada. Por duas razões:
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1 - As contas da segurança social não são suficientemente transparentes para podermos quantificar esse risco. O que sabemos é que, ainda há poucos anos, na realidade há não mais que cinco, o governo de então procedeu a uma reforma que prometia longa vida ao sistema. Por outro lado, a UE há menos de dois anos garantia que o risco é mínimo nos próximos 50 anos, e os Relatórios da Segurança Social, mesmo quando se atravessa uma situação de crise que exponenciou as outras prestações sociais, nomeadamente o subsídio de desemprego, concluem que os saldos da segurança social continuam a ser positivos. A este último propósito poderíamos também discorrer sobre o destino de saldos sistematicamente positivos da segurança social durante os últimos 40 anos. Mais atrás, mais positivos eram, mas por razões de ausência de solidariedade estatal. Também não vou, agora, por aí.
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2 - Ninguém sabe quantificar a evolução da tendência do nível de empregabilidade no futuro. O que se sabe é que o aumento de produtividade significa mais produção por activo humano empregue, e esta é uma tendência pelo menos tão irreversível quanto a que desequilibra a relação activo contribuinte/pensionista em consequência do decréscimo demográfico.
Repito-me: Separem as águas e as contas:
da função pública, paga com impostos (tanto activos como reformados)
da solidariedade social, paga com impostos, ou terão de lhe dar outro nome,
do seguro social, pago com as contribuições sociais entregues pelas empresas,
e constatarão que conflitos intergeracionais sempre existiram mas os que, eventualmente, possam decorrer de um sistema de pensões pouco ou nada terão a ver com o famigerado papão da relação activo/pensionista do sector privado.
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*À primeira vista poderá parecer estranho que se incluam as pensões da função pública nos custos da produção pública activa. Mas essa é, incontornavelmente, a forma como são calculados os custos de produção em qualquer empresa: aos valores líquidos de impostos pagos aos trabalhadores acrescem os impostos e as contribuições sociais entregues ao Estado nos custos das produções realizadas.
** Já fora da órbita das despesas correntes, observe-se que os investimentos públicos podem traduzir-se num ónus gravoso para as gerações futuras, se o seu interesse social ou impacto económico for dispiciendo ou negativo. A este propósito, tem sido muito criticada a opção política seguida pela generalidade dos vários governos, pelo cimento, preterindo o conhecimento. Em todo o caso convém ter em conta que a vinculação constitucional a um ensino tendencialmente gratuito (onde, em muitos casos, a questão de solidariedade não faz sentido algum) implica que as gerações adultas actuais (incluindo os reformados, a alguns dos quais é imposto um esforço fiscal superior a qualquer outro estrato social) suportam a formação das gerações vindouras, sem que alguém alguma vez tenha seriamente colocado a questão de um conflito intergeracional entre pagantes actuais e beneficiários futuros.
** Já fora da órbita das despesas correntes, observe-se que os investimentos públicos podem traduzir-se num ónus gravoso para as gerações futuras, se o seu interesse social ou impacto económico for dispiciendo ou negativo. A este propósito, tem sido muito criticada a opção política seguida pela generalidade dos vários governos, pelo cimento, preterindo o conhecimento. Em todo o caso convém ter em conta que a vinculação constitucional a um ensino tendencialmente gratuito (onde, em muitos casos, a questão de solidariedade não faz sentido algum) implica que as gerações adultas actuais (incluindo os reformados, a alguns dos quais é imposto um esforço fiscal superior a qualquer outro estrato social) suportam a formação das gerações vindouras, sem que alguém alguma vez tenha seriamente colocado a questão de um conflito intergeracional entre pagantes actuais e beneficiários futuros.
11 comments:
Mais um excelente apontamento, pena é que não chegue aos mais distraídos, mas quem sabe se não começa a aparecer um grito de revolta contra as maldades que têm
feito aos reformados.
As próximas eleições podem marcar o início!
Cortem nas empresas municipais, cortem nos estudos encomendados pelo governo aos amigos, cortem na defesa( para que sevem tantos militares?), cortem nos subsídios aos partidos, reduzam o número de deputados e tratem de privatizar os transportes públicos e não parte como querem fazer (a linha do Estoril e transportes carga para entregar aos amigos é pouco!.......)
Caro Rui Fonseca
Achei muito interessante a sua reflexão.
Sobre a insustentabilidade e o conflito intergeracional deixo-lhe um apontamento.
Quando há insustentabilidade num sistema de pensões de benefícios definidos em regime de repartição - é o caso dos nossos sistemas públicos de pensões - não está garantida a equidade intergeracional. A sustentabilidade das pensões pressupõe equilíbrio actuarial, isto é, as responsabilidades do sistema - pensões em pagamento e em formação - devem estar em cada momento cobertas por activos - contribuições presentes e futuras, reservas financeiras e outros activos consignados. Para manter este equilíbrio há três alternativas: aumento dos activos (contribuições sociais, impostos), redução das responsabilidades (pensões) e/ou emissão de dívida. A emissão de dívida e o aumento dos impostos, para lá de determinados limites, têm os resultados que muito bem conhecemos.
As medidas que foram sendo tomadas ao longo do tempo por governos sucessivos - alteração de regras de cálculo de pensões e de acesso à reforma, introdução de factores de sustentabilidade, para dar uns exemplos que nos são próximos - independentemente da sua qualidade e eficácia, mostram a necessidade de conferir sustentabilidade ao sistema de pensões e reflectem (mais ou menos) preocupações de equidade e justiça intrageracional e intergeracional.
A evolução da demografia e das variáveis estruturais da economia influenciam a projecção das contas financeiras destes sistemas. É por isso fundamental, como o Caro Rui Fonseca bem refere, que haja transparência no exercício de previsão e nos resultados. O valor actual das projecções das contas do sistema previdencial (Segurança Social) é negativa, o que evidencia a existência de desequilíbrios financeiros. A questão que se coloca é saber como se financia este défice, como se reparte o respectivo esforço financeiro por entre as actuais e futuras gerações, entre trabalhadores, contribuintes e pensionistas?
O elevado crescimento do desemprego é que originou o desiquilíbrio nas contas da segurança social, a política levada a cabo por este governo é que está na origem do problema.
Os jovens mais bem formados, tiveram que partir e eram eles que podiam contribuir para o crescimento do país.
Ficamos sem os melhores recursos e todos nós com os impostos, pagamos os seus estudos . O desiquilíbrio intergeracinal é da responsabilidade de quem nos governa.
Fiz descontos durante 46 anos e estou a pagar para aqueles que trabalharam uma dúzia de anos e têm grandes reformas, como é o caso da presidente da assembleia da republica ,...
Porque é que não tocam nas reformas dos militares, funcionários do banco de Portugal, juízes e tantos mais?
Intergeracinal, mas que palavrão!..
Iniciei os meus descontos aos 17 anos, depois de ter acabado o curso na escola, porque o liceu era para os ricos!
Deslocava-me todos os dias 24 km de bicicleta , mais tarde com as poupanças comprei uma "casal", os meus pais eram pobres e tinham comprado a bicicleta em prestações .
Cumpri serviço militar no ultramar .
A trabalhar e a estudar tirei um curso superior e não foi na escola do Relvas.
Anos mais tarde consegui comprar um carro usado e foi assim que andei durante anos.
Entrei para uma empresa onde estive 26 anos, onde fui técnico industrial, quadro superior e gestor onde
finalmente tive direito a um carrito novo!
Nesta última empresa "privada" foi-me concedido um fundo de pensões.
Fiz descontos durante 47 anos e agora estou a ser roubado na reforma e com o CES a incidir no fundo de
pensões,.......como é que alguém tem o descaramento em falar em justiça intergeracinal .
Colaborei na formação do ensino superior sem nunca terem recorrido a explicadores e agora eles partiram
para outras paragens porque os mandaram emigrar,...
os descontos para a segurança social ficam por lá....para concluir estamos perante uma cambada que nunca comeram sopa com azeitonas como refeição principal e se tiraram cursos foi naquelas ...privadas.
Fiz descontos durante 47 anos
Intergeracinal mas que palavrão!...
(o que faltou escrever,)
Colaborei na formação de dois filhos no ensino superior,sem nunca ..........
Ajacf, Anonymous, Correia francisco,
Agradeço o comentário.
Estimada Margarida Corrêa de Aguiar,
Grato pelo seu comentario, com o qual concordo plenamente. No entanto, subsistem-me dúvidas quanto à insustentabilidade do sistema previdencial contributivo.
Porque, por um lado, ainda há relativamente pouco tempo, nos garantiam que com a "Reforma de Vieira da Silva" a sustentabilidade do sistema estava garantida a muito longo prazo; por outro, porque o relatório da UE de 2012 aponta no mesmo sentido.Estão todos enganados?
Acresce que nunca vejo citados pelos analistas os efeitos do crescimento da produtividade na sustentabilidade do sistema.
As contribuições dos activos (34,75%)incidem sobre os valores brutos de salários que tendencialmente, inevitavelmente até, se situam bem acima dos níveis sobre os quais são calculadas as reformas,a que,salvo nos casos de reformas muito baixas, são deduduzidos impostos, que chegam agora a ser elevadíssimos, confiscatórios até.
A questão da sustentabildade está, necessariamente, ligada à reposição de alguma justiça relativa do valor das pensões, algumas das quais, tanto no sector público como no privado foram manipuladas. Importa realizar o seu recálculo tendo por base toda a carreira contributiva.
E, de uma vez por todas, tornar claras as responsabilidades de toda a sociedade, e não apenas dos contributivos da segurança social, nos pagamentos de prestações a não contributivos.
Os governos não deveriam poder manipular a seu belo prazer as contribuições devidas pelo pagamento de todas as prestações sociais não atribuidas a contributivos da segurança social.
Implica isso aumento de impostos?
Claro que sim.
Mas é bom que a sociedade saiba que assim é e se está disposta a participar nesse esforço de solidariedade. Onde os contributivos da segurança social sempre estiveram triplamene: primeiro pelos activos capitalizados até à década de 70, depois pelas contribuições sociais e pelos impostos sobre o rendimento.
Na verdade, descontei para a Segurança Social durante 51 anos.Comecei aos 14 porque tive que ir trabalhar e continuar a estudar à noite após o trabalho e, mais tarde, como aluno voluntário da faculdade.
No tempo da outra senhora, a Previdência - como era chamada - até tinha dinheiro para fazer bairros para os beneficiários com rendas de acordo com o rendimento familiar e que, ao fim de 20 - 25 anos ficavam para as pessoas. Depois do 25 de Abril, nem um que me lembre. Onde estará a diferença?
Esseantonio,
Não exageremos...
Apesar de tudo, o Portugal de hoje
é bem melhor que o Portugal de há 40 anos.
Se Esseantonio descontou durante 51 anos e começou a trabalhar aos 14 sabe bem que, por exemlo, no Portugal de então o número de famílias a viver em habitações degradadas, em bairros de lata, e em partes de casa nas maiores cidades era incomparavelmente maior do que nos dias de hoje.
Nesses tempos, eram poucos os que tinham sistemas de segurança social, para além da função pública e as grandes empresas.
Na educação e na saúde a evolução, apesar das ineficiências que existem hoje, a situação antes de 1974 não tem comparação possível com a situação actual.
Estimado Rui Fonseca
As medidas Vieira da Silva foram fundamentais, mas não foram suficientes. As projecções da conta da segurança social têm sofrido variações substanciais de lá para cá, como se pode observar nos relatórios de sustentabilidade financeira da segurança social anexos aos OEs. Variações que se prendem com alterações aos pressupostos demográficos e económicos assumidos.
A informação publicada é, no entanto, insuficiente para fazer uma análise aprofundada.
Sem contas apuradas e sem um escrutínio dos pressupostos utilizados nas projecções, sem informação sobre o impacto das medidas que estão a ser tomadas, como foi o caso do aumento imediato da idade de reforma para os 66 anos, não é possível separar o conjuntural do estrutural e conhecer o verdadeiro défice e estudar como pode e deve ser financiado.
Sobre as prestações sociais dos regimes não contributivos - financiadas pelos impostos - é fundamental que seja estabelecida a regra da aplicação da "condição de recursos" na sua atribuição.
Não faz sentido, na minha opinião, que se continuem a pagar pensões sociais sem cuidar de saber da situação económica dos beneficiários.
Muito obrigado, Estda.Margarida Corrêa de Aguiar por mais este seu contributo.
Que espero seja também considerado por quem vai decidir a solução final para este assunto.
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