Friday, July 14, 2006

DIREITOS USURPADOS

A discussão que algumas medidas reformistas do Governo suscitou entre os atingidos, a comunicação social e a opinião pública em geral, cunhou a expressão “direitos adquiridos”, que se generalizou e entrou também na discussão que a situação da segurança social tem gerado, a propósito das intenções do Governo de alterar os critérios de atribuições de pensões de modo a garantir sustentabilidade ao sistema.
Esta generalização tem vindo a colocar no mesmo saco situações que não são apenas substancialmente diferentes mas, sobretudo, invocam direitos que se colocam em planos completamente distintos, e, por conseguinte, distorce completamente a apreciação que deve fazer-se de cada uma delas.
Nos “Cadernos de Economia”, Jan /Mar 2006, o actual Ministro do Trabalho e da Solidariedade Social, Vieira da Silva, diz-nos que “as despesas com as pensões e reformas com os trabalhadores do Estado atingem 57% da despesa correspondente ao Sistema de Segurança Social face a um número de beneficiários substancialmente inferior (17%)”.
É indesmentível, porque são vários os indicadores que concorrem no sentido de idênticas conclusões, que o Estado paga aos seus funcionários substancialmente acima da média paga pelo sector privado aos seus trabalhadores. Além disso, decidiram vários governos conceder a alguns segmentos da administração pública sistemas especiais de segurança social e assistência médica. E a todos eles, a reforma em idades aquém das que impôs ao sector privado.
Não admira, portanto, que, nestas condições, cerca de 1/6 dos beneficiários comam bem mais de metade do bolo.
Que a redução de parte de tanta benesse, imposta ou não pelas dificuldades financeiras emergentes da gestão muitas vezes desbragada dos dinheiros públicos, possa pôr os atingidos a clamar pelos seus “direitos adquiridos” pode perceber-se. A ninguém agrada a redução das vantagens. Mas conceda-se que “o sacrossanto princípio dos direitos adquiridos não é sacro nem é santo: ou é possível ou não é. E deixará de ser possível quando e onde deixar de haver recursos para pagar tais “direitos” conforme afirma J. A. Serra na mesma publicação. O que é inadmissível é que J.A.Serra, que foi membro de alguns governos pelo Partido Socialista, o afirme a propósito das pensões, as quais, se correm o risco de não ser honradas pelo Estado, é porque os dinheiros que compulsivamente lhe foram confiados, foram desbaratados em outros sorvedouros. Lamentavelmente, já se sabe, o pecado do Estado é a inimputabilidade, e a possibilidade de J.A.Serra afirmar o que afirma, neste caso, decorre dessa fatalidade que dá cobertura a todos os desmandos. A sua posição, sendo inadmissível, percebe-se: quem participou, de um modo ou de outro, na ruptura da segurança social, tem de encontrar argumentos, ainda que falaciosos, para justificar o buraco.

Se o Estado assumiu em alguma altura compromissos para com os seus colaboradores que, em dado momento, excedem as suas capacidades de solvência, não parece restar ao Estado alternativa se não recuar na sua prodigalidade. Nas empresas, o ajustamento faz-se consoante a sorte dos negócios e não há nenhuma razão moral para que no Estado não se proceda de igual modo.
O Estado é um prestador de serviços aos cidadãos, e o princípio da igualdade, constitucionalmente estabelecido, entre os cidadãos, implica que não pode o favorecimento dos funcionários públicos desfavorecer os que o não são. De outro modo, os impostos pagos pelos últimos não deixariam de crescer à medida do crescimento dos privilégios dos primeiros ao abrigo da discricionariedade do Estado, sem capacidade de reacção dos cidadãos, mesmo em democracia, se os governos se revezam e os privilégios se mantêm.
A questão da segurança social dos beneficiários ou ainda só contribuintes dos sistemas públicos de segurança social inscreve-se, inquestionavelmente, num plano bem distinto.Por imposição do Estado, os trabalhadores por conta de outrem e os empregadores, são compelidos a entregar mensalmente, actualmente, 34,5% do valor dos salários pagos. Parte desta verba, destina-se à formação do direito a uma pensão definida em função de critérios fixados pelo próprio Estado. O facto do pagamento das contribuições mensais tem exactamente a mesma configuração jurídica da entrega, com a mesma finalidade, a uma instituição seguradora ou de crédito. Não podem a instituição seguradora ou a instituição de crédito negar o pagamento da pensão nas condições acordadas, a não ser em caso de insolvência, com as consequências que daí decorrem. Mas, pelo menos nestes casos, aos credores foi dada a faculdade da escolha e a sorte da sua pensão dependeu dessa mesma escolha, que pode ser gerida ao longo do tempo.
Acontece que, no caso do Sistema de Segurança Social em Portugal, as dificuldades esperadas decorrem em grande parte, para já, do facto de não terem sido pagas pelo Estado, entre 1985 e 1995, “integralmente as verbas devidas ao correcto financiamento dos sistemas não contributivos”, cf. A. P. Metelo, DN, 2006-07-12. Significa isto que, para além de outros contributos em nome da solidariedade social, são exclusivamente os compulsivos contribuintes do Sistema de Segurança Social, que têm arcado e continuam a arcar com o pagamento das despesas de solidariedade social.
Seria, evidentemente, ingenuidade ou deficiente informação, pensar-se que o Sistema de Segurança Social não exige prementes medidas de reforma. Não é honesto, contudo, que se cataloguem da mesma forma direitos que têm substratos muito diferentes. A redução das pensões que vier a observar-se far-se-á, não como cessação de uma expectativa de direito mas como usurpação desse mesmo direito. Com uma escandalosa e anticonstitucional agravante: é a de que essa usurpação se faz, em grande parte, porque o contributo para a solidariedade social de todos os cidadãos a quem essa obrigação deveria ser exigida é imposta apenas a alguns.
Já se referiram os funcionários públicos.
Estranhamente, nenhum dos parceiros sociais levantou a questão da enormidade que decorre do tratamento desigual entre os trabalhadores do Estado e das empresas, em sede de concertação social, durante as últimas reuniões. Também ninguém falou do tratamento especial do sistema de segurança social das instituições financeiras. Porquê?
“ A minha razão de princípio, é uma razão de equidade social. Considero inaceitável, que, num Estado de direito em que há um comando constitucional no sentido de toda a gente estar submetida ao regime da Segurança Social, o sub-sistema dos bancários, o sector mais lucrativo esteja de fora” – Teixeira Pinto, Presidente do Millennium BCP, em entrevista publicada no “PÚBLICO” de 6/02/2006.
“É certo que a transferência desses fundos e das suas responsabilidades para o sistema público pode colocar problemas delicados de difícil solução, não podendo ser feita em prejuízo do sistema público. Mas nada justifica que, a partir de agora, os novos activos desses sectores não sejam integrados desde já no sistema geral, com os arranjos necessários em relação aos subsistemas privativos de base contributiva. Além do mais, trata-se de superar uma evidente inconstitucionalidade por omissão, que subsiste desde 1976!” – Vital Moreira, no PÚBLICO de 2/05/2006

No comments: