Wednesday, January 31, 2024

O JOGO DA CABRA CEGA

A sanidade da democracia exige viver num estado de direito que não contemporize com o jogo da cabra-cega que não pára de divertir os brincalhões que escandalosamente troçam da justiça, provocando o seu quase permanente desequilíbrio e, com esse desequilíbrio, o desequilíbrio até ao tombo das instituições democráticas.
Este tem sido o tema mais abordado nas notas que há mais de 18 anos averbo neste caderno de apontamentos.
Por uma, para mim, elementar razão: a justiça, a falta da justiça, é a causa maior do nosso múltiplo atraso no contexto dos países desenvolvidos.

Manuel Soares, presidente da Associação dos Juízes Portugueses tem publicado no Público opiniões sobre o estado da Justiça em Portugal que há muito tempo deveriam ter merecido a consideração daqueles que são parte do poder legislativo.
Pelos vistos, em vão.
 
O Juiz Desembargador Manuel Soares não desiste e, honra lhe seja feita, insiste.
Agora, quando temos as atenções da opinião pública voltadas para as eleições legislativas em 10 de Março, é lamentável que ainda nenhum dos partidos candidatos tenha abordado de forma claramente explícita o que se propõem fazer sobre o que pensa Manuel Soares, representante de uma Associação inequívocamente interessada no bom funcionamento da Justiça e no apagamento das opiniões negativas que a opinião pública tem dela.

"...É preciso definir melhor as formas da coordenação e intervenção hierárquica nos inquéritos, devidamente documentada, para assegurar a responsabilização individual de cada magistrado e do órgão MP e a transparência dos procedimentos.

É preciso questionar o âmbito do sacrossanto princípio da legalidade na acção penal. Não faz o mínimo sentido que o MP tenha de iniciar tantos inquéritos para desperdiçar recursos nos 80% que acaba por arquivar e depois não consiga cumprir os prazos nos 20% em que tem de deduzir acusação.

É preciso discutir a justiça penal negociada. Pelo menos na pequena e média criminalidade, não há razão para o MP e a defesa não poderem acordar sobre os limites da pena, a troco da admissão da culpabilidade e da dispensa do julgamento, deixando para o tribunal a fixação concreta da pena numa sentença abreviadíssima. Não vale a pena arrancar cabelos com uma coisa que se faz em tantos países com bom resultado.

É preciso ver a utilidade da fase de instrução com a extensão que hoje tem. Será mesmo necessário um juiz para validar o juízo de apreciação da prova indiciária feito por uma magistratura qualificada, que actua sujeita ao dever de objectividade e livre de interferências externas? Talvez se possa reduzir a instrução ao controlo da legalidade do inquérito e das provas e a outras questões prejudiciais, como a prescrição do crime. É indefensável haver instruções — como a do “caso Marquês” — em que se podem gastar seis anos (para já) apenas para saber se os arguidos têm ou não de subir a escada e entrar pela porta do tribunal que os há-de julgar.

É preciso, por fim, dar ao juiz do processo um poder efectivo para travar a litigância manifestamente abusiva com intenção dilatória. É ridículo um sistema em que se coloca o juiz a fazer figura de “pau-mandado”, à ordem de um qualquer interveniente, com um processo pronto para avançar para a fase seguinte, parado, refém de um interesse que não é de certeza o da justiça.

É preciso travar este monstro, antes que a justiça e com ela o regime democrático sejam engolidos de vez.

O autor é colunista do PÚBLICO

1 comment:

Rogério Silva said...

Gostei. Abraço.