O JURISTA
Soube
agora que nos vais deixar para a semana …
Também
soube isso há instantes; que vou ser rendido esta quarta ou quinta-feira; irei
de volta no voo que trará o meu substituto; até lá, penso poder ter tempo para
encerrar todos os processos em curso de modo a evitar duplicações de
diligências;
Vai
um scotsh?
Obrigado,
mas não bebo álcool.
Nem
uma cerveja?
Também
não; posso beber um copo de água.
Água?
Não sei se temos água aqui no bar. Vick!, temos água? Não temos água. No bar só
são permitidas bebidas alcoólicas. Vick! Dá um salto à messe e traz-nos de lá
uma mineral. Das grandes, manda apontar no meu nome. … Também bebo pouco álcool, mas a alma pede-me um malte de vez em quando para ficar afinada. Tal e
qual a alma do violoncelo, ou do violino, sem afinação da alma, o nosso
instrumento fica frouxo. Quando me sinto mais tenso, um bom scotch
descontrai-me a alma. Puro. Nunca estrago um bom malte com água ou gelo… Vens
pouco ao bar…
Sim,
vim pouco. Aproveitei o tempo disponível para escrever…no bar ninguém se
concentra, há sempre muita excitação, muita discussão, muito ruído …
És
escritor, poeta, ouvi dizer; é por isso que trazes sempre essa pasta contigo?
Ensaio
uns poemas, umas ficções, … mas não, ainda não editei nada; vou escrevendo,
relendo, alterando …. eliminando, … não tenho pressa de editar … é o meu scotch
para animar a alma; tomo-o sempre que tenho a secretária limpa de processos
pendentes de análise ou informação da minha parte. Na pasta guardo um caderno
de apontamentos, de ideias, imagens, coisas onde possa vir a ver interesse. Se
não registo, posso esquecer-me ou preocupar-me poder esquecer; algumas notas
retirei-as de processos que analisei e de pareceres que dei, são uma espécie de
jurisprudência íntima.
Estás
em pulgas, hem? Quarta-feira …
Ou
quinta …
Quarta
ou quinta dá no mesmo, é sempre menos de uma semana; também gostaria de sair
daqui nas próximas semanas; duas ou três que fossem, estou farto disto. És
casado? Ainda não. Que sorte! Eu sou
casado, tenho duas filhas, a mais velha fará dezoito no mês que vem; não vou
estar lá; há quantos anos não estou com as minhas filhas nos dias de
aniversário delas? muitos, muitos, demais … e para quê? por que estou eu aqui?
sabes dizer-me para quê?
Eu
sei porque estou aqui …
…
estou aqui, porque ainda não chegou o dia em que vou voltar … digo isto, que
parece uma redundância mas não é; até ao dia da saída farei o que fiz durante
os quase dois anos que já levo de permanência aqui: inutilidades, todo o
trabalho que aqui produzi foi inútil.
Percebo
onde queres chegar… Disseram-me que levas o teu impedido contigo?
Não
é meu impedido. É escriturário, dactilógrafo, auxilia-me no despacho dos
processos.
Sorte
dele. Com aquele corpo seria melhor aproveitado em combate. Ainda estou para
perceber como se anichou cá dentro.
Já
cá estava quando entrei.
Pois
já, pois já …ele não é casado?
Se
é formalmente casado, não sei. A mim disse-me que tem três ou quatro filhos;
aqui um homem tem de ter filhos de uma ou mais mulheres. É possível que os
filhos nem sejam filhos dele.
É
possível. Vai contigo, à tua responsabilidade?
Vai.
Em princípio, continuará a ser meu assistente. Não é caso único. Julgo saber
que há precedentes.
Há,
há. Ouvi falar de outros casos, mas de menores órfãos da guerra; de homens
adultos, não tenho conhecimento.
Não
há impedimento. A emigração foi-lhe consentida uma vez que me responsabilizo
por ele.
Bem.
Tu é que sabes. Como é que caíste aqui?
Terminei
a licenciatura em 65, fui incorporado dois meses depois; um ano lá e dois cá,
três anos inúteis …
Perguntei
porque, falando muito francamente, quando soube que integravas um contingente
de reforço, estranhei a vinda de um jurista quando, para além de forças
treinadas em acções de combate, esperávamos a vinda de dois médicos; nunca me
passou pela cabeça a necessidade da presença de um jurista aqui; … digo isto
sem menosprezo pelos homens de leis, uma sociedade sem leis só na selva onde
impera a força do mais forte. Quando pedimos reforços de combatentes, as
actividades da guerrilha tinham crescido para um patamar em que não seria mais
possível contê-la a distâncias defensivas, precisávamos de mais forças
militares, precisávamos de médicos, mas de um jurista, para quê?, perguntei ao
ajudante de campo do governador. Ordens do nosso governador. Caput! Manda quem
pode, obedece quem deve, manda o supremo chefe;
E
para quê? Com que objectivo? Considera o governador que não estamos no meio da
selva?
Ele
pensa, penso eu, que a presença de juristas aqui nega a ideia de que estamos na
selva. Temos juristas entre nós, temos leis, logo, não estamos na selva. A
presença de juristas civiliza a selva. Há leis, há julgamentos de obediência ao
direito, à lei, não prevalece a lei da selva. Deve ser isso que ele pensa.
O
governador não saberá que a minha vida aqui não poderia ter sido mais vazia de
sentido se não tivesse ausentado o meu pensamento sempre que me livrava dos
processos inconsequentes, que me caíram em cima.
Saberá,
certamente. A tua presença, a presença de juristas nesta situação, cumpre o
objectivo de afirmação que há leis, e isso basta.
Basta
ou basta-lhe?
Qual
é a diferença? Não sabes, não sei se alguém sabe, à excepção de alguns idiotas
que desconhecem a trajectória da história, que supõem que o mundo é imutável,
nenhum dos que se defendem neste círculo
cada vez mais apertado em que nos encontramos sitiados sabe porque está ou o
que veio fazer aqui, para além de defender a vida dos ataques dos sitiantes;
não sabemos, mas obedecemos, e se obedecemos a idiotas somos o quê? somos
imbecis, reféns de um desígnio idiota que não denunciamos nem combatemos; sim,
sim, considero-me imbecil porque obedeço, sigo na manada e não descortino uma
porta de saída deste círculo em que estou metido.
Não
está a exagerar, coronel?
Estou?
Talvez esteja, mas diz-me porquê. E não me trates mais por coronel. Aqui dentro
temos todos a mesma condição, a mesma patente; somos sitiados, estamos todos
sitiados. Sitiados que não estão aqui para morrer pelo seu país mas para
obrigar os sitiantes a morrerem pelo país deles.
Nunca
um filho-da-puta venceu uma guerra morrendo pelo seu país; venceu obrigando o
outro pobre filho-da-puta a morrer pelo país dele.
Conheces
o original mas repara na diferença: nós
não estamos aqui para morrer pelo nosso país mas para obrigar os
sitiantes a morrerem pelo país deles; não é absurdo? Estamos embrulhados numa
guerra absurda porque é a mais absurda das guerras, é uma guerra sem objectivo
que se possa atingir; agora, que estás de volta a casa, depois de dois anos no
centro deste círculo, sem sair dele, não te deves ter apercebido bem da
contínua redução do espaço que dominamos, ou julgamos dominar; ainda bem para
ti que estás de saída, o cerco apertou-se muito, continua a apertar-se; depois
destes dois anos neste sítio, sair dele nesta altura pode ser uma das últimas
oportunidades de sair vivo. Alguma vez foste até lá fora, ao meio deles?
Duas
vezes, para ouvir testemunhos por queixas de
ataques a civis; mas foram duas tentativas falhadas porque logo, eu e os
três comandos que me acompanharam, nos vimos cercados por dezenas de nativos
atropelando-se nas palavras uns dos outros tornando impraticável a recolha de
qualquer depoimento consistente; decidi passar a convocar os signatários das
denúncias e ouvi-los aqui dentro, no meu espaço, mas a maior parte não
apareceu; porquê? disseram-me os que apareceram que os outros tinham medo que
os fizéssemos reféns para troca de gente nossa refém dos sitiantes. Depois,
foram ganhando confiança, e não tive mãos a medir durante estes dois anos …
foram centenas de denúncias de crimes bárbaros, muitos deles repetições de
outros que já registara antes, por vezes alguns meses antes … sim, sim, ouvi
também os testemunhos dos que seriam putativos autores, cooperantes ou só
assistentes nos actos denunciados … sim, alguns dos crimes denunciados pelos
nativos foram praticados por outros nativos … de outras tribos, concluí pouco
tempo depois;
Tens
ideia do número de nativos implicados nos crimes denunciados por outros
nativos?
Poucos,
relativamente poucos; poucos mas de uma crueldade inacreditável se esses actos não tivessem sido, de um modo
ou outro, confirmada por gente nossa…
Nossa?
Não nativa?
Qual
a diferença?
Há
muitos nativos que combatem do nosso lado; se combatem do nosso lado são gente
nossa, não?
Até
ao dia em que se passarem para o outro lado …
Para
os outros lados. .. Já se estão a passar, alguns já se estão a passar;
voluntariamente ou capturados, já se estão passar; esta é uma guerra com vários
lados; neste lado, o nosso, estamos sitiados num círculo que se aperta à medida
que se reduz o contingente de combatentes nativos. Se o combate fosse entre
duas frentes, entre nós, os que não somos nativos, e as tribos nativas, há
muito tempo que os não nativos teriam sido obrigados a sair daqui, vivos ou
mortos.
É
muito óbvio.
Assim
como é muito óbvio que a resistência do nosso lado vai partir-se quando as
tribos que continuam a combater-se entre si se formarem uma frente comum de
assalto ao círculo em que nos encontramos sitiados. Em resumo, e para voltar à
questão inicial: é gente nossa aquela
que, independentemente do sítio onde nasceu, se considera gente nossa e
decididamente combate do nosso lado. Sem nativos deste lado há muito tempo que,
nós, os não nativos, teríamos sido obrigado a sair daqui. Sabes quantos, do
nosso lado, denunciaram autores de crimes praticados em combate por gente
combatendo do nosso lado?
Não,
penso que não, e não devo responder com um número que nem sequer calculei…
…
Muitos? poucos? alguns? nenhuma ideia? …
Quando
disse denúncias … eu disse denúncias?
Disseste
actos denunciados, se percebi bem.
Disse
actos denunciados o que não quer dizer que esses actos tenham sido revelados
com a intenção de denunciar; não sei se num caso ou noutro não possa ter havido
a intenção propositada de denunciar; aparentemente, não, e, na dúvida, sempre
interpretei que nunca houve intenção de denunciar mas por enaltecimento e, com
alguma frequência, de auto glória. Ficam-me registados na memória, enquanto
os anos não os desvanecerem, os
depoimentos feitos em tom de elogio ou orgulho de actos que considerei,
e considero criminosos, por aqueles que assistiram, praticaram ou cooperaram
activamente na prática desses actos. Na descrição do caso mais horroroso de
todos, se há uma graduação possível para o horror, o autor, …
Um
nativo.
…
sim, um nativo, é fácil adivinhar a quem me refiro,…
É,
é. Mas continua, continua; prometo não voltar a interromper-te.
…
o autor impressionou-me, não apenas pela naturalidade e a fluência na descrição
dos acontecimentos … a propósito, a que nível de escolaridade chegou ele?
Não
faço ideia, nunca me coloquei essa dúvida; mas, agora que me perguntas, posso
supor que tenha frequentado um colégio de missionários, havia alguns no
território, encerraram a maior parte quando se intensificaram os combates; É
fluente? pois é; deves ter ficado impressionado porque falaste com ele apenas
uma vez; para mim, para nós, os que temos muito mais contactos com ele,
parece-nos natural a forma como fala; expressa-se como qualquer um de nós, como
qualquer tropa, praça ou oficial, não nativo; nem arrogante nem subserviente.
Sim,
sim, relatou-me acções que comandou, com muita naturalidade, nunca vangloriante
das suas acções quando o interroguei;
Sabia
quais eram os propósitos da reunião contigo; mas gosta de se vangloriar,
discretamente, mas gosta.
Já
para os que participaram, assistiram ou apenas ouviram falar das suas acções, o
homem praticou feitos, no seu entendimento, heróicos, só ao alcance dos
predestinados pelos deuses.
A
condição humana está condenada a adorar ídolos; na guerra, os comandantes
vencedores são ídolos para os homens que comanda;
Ao
ouvi-lo relatar, vestido com um ar inocente capaz de convencer qualquer juiz
muito batido, uma acção que parece ter sido retumbante, depois de ter ouvido os
outros, fiz um esforço que, antes, nunca teria pensado ser capaz conseguir, de
não transmitir o mínimo da emoção repulsiva do que estava obrigado a ouvir…
Digo isto, ainda a vê-lo falar vestido com o ar mais inocente deste mundo…
…
tinham chegado ao por do sol ao sítio que tinha sido indicado por informadores
confiáveis, … sabia que o inimigo estava lá … preparava-se para atacar, de
madrugada, as nossas tropas no aquartelamento de leste, que se encontrava
desfalcado de combatentes e armamento, … aguardava reabastecimentos no dia
seguinte … rondaram o aldeamento, tudo sossegado, mas sentiam no ar o cheiro de
expectativa na indiferença da gente nada surpreendida com o aparecimento …
Falou
mesmo assim? que havia no ar o cheiro da expectativa …
…
na indiferença da gente nada surpreendida com o nosso aparecimento, dir-se-ia que
até a brisa, que se tinha levantado à tarde, tinha adormecido à espera que
estoirasse um tiroteio a qualquer momento …
Não
acredito.
Admito
que deve ter-se preparado.
Porra!
sendo assim, o homem, além do mais, é poeta … com o devido respeito pelos poetas.
Alguns
dos seus homens, mais impacientes, insistiam que deviam entrar nas habitações
para apressar a saída do inimigo dos seus esconderijos e, deste modo,
alterar-lhes os planos que teriam acordado com aqueles que tinham acampado
longe dali e com quem tinham concertado o momento de ataque conjunto ao
aquartelamento…
Ele
não permitiu.
Não
permitiu o mínimo indício de tentativa de entrada nos refúgios; o objectivo era
defender e não atacar, a presença ostensiva era um aviso de que estavam ali e
não iriam permitir que eles atravessassem as linhas de defesa e avançassem,
eram essas as indicações que tinha recebido de acordo com o objectivo
primordial de captar a adesão das populações para o nosso lado e não de
afugentá-las para os lados inimigos … colocou os seus homens a formar o cerco,
com ordens para ninguém disparar a menos que houvesse disparos da parte dos refugiados
nas habitações do povoado; aguardaram duas horas, o luar iluminava tanto que
seria impossível que eles escapassem do cerco sem serem vistos a uma distância
que os colocava ao alcance do tiro dos seus homens; eles já cá não estão!
começou a correr a ideia de que os terroristas já teriam passado por ali antes
deles terem chegado e que poderiam passar toda a noite sem sinais de tentativas
de saída. Subitamente, ouvem um tiro vindo de dentro do aldeamento, depois
outro, e outro, às tantas havia fogo cerrado a sair das habitações. Filhos da
puta! – aqui o guião escorregou-lhe para o chão - os filhos da puta estavam a
colocar os pobres dos aldeões como escudo, a desafiar-nos para um massacre!
Reforçou as indicações dadas aos seus homens, expressão dele sempre repetida
quando se referia aqueles que estavam sob as suas ordens …
É
uma expressão normal.
É
uma expressão comum que dita com a ênfase com que ele a carrega adquire um
sentido de propriedade assumido como se as vidas dos homens que ele comanda lhe
pertençam, como um senhor feudal.
E
é. Entre as sociedades tribais e as sociedades feudais a diferença não é tão
grande como à primeira vista possa parecer. As guerras entre senhores feudais
são aqui guerras entre chefes de tribos; a obediência servil aos senhores
feudais é de natureza idêntica à subordinação dos povos de cada tribo ao seu
chefe. Quando sairmos daqui, não sei quando, gostaria de saber mas não sei, as
guerras tribais persistirão; mudarão de nome mas a sua natureza permanecerá
durante muitos anos; os necessários até que um desses chefes assuma o poder
como grande chefe a quem os outros chefes das tribos prestarão vassalagem e
colocarão ao seu dispor os seus homens. O mundo muda mas a história muda pouco,
e, em muitos aspectos, vistos com a atenção necessária, não muda nada. Mas continua, continua, estou
com curiosidade de saber se aquilo que ouviste coincide com aquilo que me
contaram.
Os
seus homens contiveram-se até ao momento em que os outros saltaram dos esconderijos cobrindo todo o espaço à
volta com rajadas intermitentes de metralhadoras, e o tiroteio só terminou
quando as munições se esgotaram e na luta corpo a corpo; só não estrangulámos
os que fugiram para a mata. Não podiam ter feito outra coisa, concluiu ele. E
os civis, os que habitavam no povoado? Creio que morreram uns quantos homens
que não se resguardaram como deviam. E as mulheres? E as crianças? Não contámos
as baixas, mas devem ter sido mortos alguns, não sei quantos, mas morreram
alguns. É muito provável que sim, que também mulheres e crianças tenham sido
atingidas. Mas não contámos as vítimas civis; logo que o tiroteio terminou,
saltámos para os dois camiões e fomos no encalço dos que tinham fugido. Sem
sucesso; eles meteram-se nos caminhos por onde os camiões não passam. Foi este
o depoimento do herói do dia. Os outros, os seus homens, contaram histórias
diferentes, misturando nos seus relatos factos das diferentes acções em que
intervieram sob o comando do seu herói. Neste caso em concreto, contudo, há
maior coincidência nos relatos dos participantes. Segundo eles, o chefe, o
grande chefe, assumiu o comando dando o peito às balas. Logo que do lado dos
refugiados ouviu o primeiro tiro, avançou para a barreira de fogo contrária ao
mesmo tempo que dava indicações aos seus homens para lhe garantirem cobertura.
Foi atingido na perna esquerda e no ombro direito, passando a disparar com a
mão esquerda, coxeando, sem nunca rastejar.
Como
nos filmes do farwest. Esses tipos andam a ver maus filmes de cowboys. Numa
guerra de guerrilha só um doido, e o homem de quem se fala não é doido, não enfrenta
o inimigo dando o peito às balas; na guerrilha o estratagema é a ocultação, a
noite, a surpresa, a mobilidade, o terreno minado, as granadas a explodirem
quando menos se espera; ele é audaz, uma audácia suportada por grande uma
grande argúcia na utilização dos conhecimentos do terreno e dos nativos de cada
zona, que lhe permitem ser bem sucedido onde qualquer outro, mesmo com muita
coragem, falharia; é natural que os seus
homens se excedam na admiração da
audácia de quem os comanda. Ele não te disse que tinha sido ferido nessa
ocasião…
Não
fez a mínima referência. Talvez pela fama de coragem ou desapego pela vida, a
sua presença em pé depois de atingido terá tido influência decisiva no ânimo
dos seus homens e desanimado o inimigo, que fugiu deixando atrás de si
camaradas a agonizar.
Em
que século é que isso se passa?
Acredito
que no meio de algum excesso haja um lastro de verdade; talvez não tenha dado o
peito às balas mas avançado para um inimigo escondido com grande coragem.
Pode
ser, pode ser, por aí já estará a versão dos acontecimentos mais próxima do sucedido;
No
fim, um dos miúdos sobreviventes do povoado, terá pegado numa metralhadora
caída, e começado a disparar ao acaso matando dois dos seus homens, teria
matado mais se não tivesse sido agarrado pelas costas pelo chefe; mesmo
agarrado, e a espernear, o rapaz continuou a disparar para onde estava voltada
a pistola metralhadora. Bem agarrado o rapaz, tentámos sossegá-lo sentado no
capot de um dos camiões. Mas quem é que conseguia segurar aquela pequena
víbora? Conseguiu o chefe, sujeitando-se a levar mais um tiro, não se sabia se
sobrara alguma bala depois do tiroteio à toa do rapaz, obrigando-o a bater com
cabeça no capot até que ele, finalmente, deixou de espernear.
Matou
o rapaz?
Deixou
de espernear, responderam-me, encolhendo os ombros, quase todos quando fiz essa
pergunta.
Já
ouvi a mesma história contada em situações diferentes. Quantos rapazes afinal
matou ele batendo com a cabeça deles no capot dos camiões? Outra história
também muito contada é a da facada no ventre de uma grávida.
Não
há nenhuma verdade nesses relatos?
Haverá,
certamente; eu nunca presenciei nenhum; fui apanhado em três emboscadas,
tiroteios demorados, matei alguém?, não sei, ao todo, vi cair cinco do nosso
lado. E tu?
Recordo
o que consta dos processos que fui obrigado a instruir para informar quem tinha
incumbência de sentenciar. Incompreensivelmente, para mim pelo menos, em todas
as situações de crimes graves que deveriam ser penalizadas nos termos da lei,
os autores desses crimes, e muito principalmente o maior criminoso, não foram
penalizados, foram condecorados.
Aqui
neste recanto é, relativamente, fácil olhar retrospectivamente para os
acontecimentos. Por exemplo, o caso da cabeça do miúdo esmagada no capot,
tomando como verdadeiros os testemunhos que referiste. Foi um crime ignóbil? Admitamos
que sim. Mas não posso deixar de ensaiar ver-me no lugar do homem que praticou
esse acto ignóbil, no momento em que, como um relâmpago, a sua mente é
atravessada pelo medo de perder a vida em consequência da resistência caótica
no estrebuchar do rapaz; esse medo transforma-se em fúria incontrolável; um
acto ignóbil praticado em legítima defesa? se o interrogares sobre o móbil do
seu acto ele dir-te-á o que já terá perguntado inúmeras vezes a ele mesmo:
podia ter sido de outro modo? Ainda pensas que poderia? Como? Sabes que ele e o
seu grupo resgataram cinquenta reféns, gente nossa, não nativa? Que argúcia,
que meios foram utilizados? Na apreciação dos actos dos combatentes numa
guerrilha são os resultados que se sobrepõem à legitimidade dos meios
utilizados. É uma avaliação anti ética, pois é. A guerra, e muito principalmente
a guerrilha, é ignóbil na perspectiva de quem nunca foi obrigado a estar
envolvido nela. Mas ainda não se
descobriu forma de a evitar.
Um
dia, nós, os não nativos vão ter de sair daqui…
Já
disse isso tantas vezes que me sinto ainda mais velho do que já sou de tanto me
repetir. Mas não só os nativos terão de sair se quiserem sair vivos porque os
não nativos que combatem ainda ao nosso lado, que nos protegem, e por isso os
condecoramos como heróis, serão eliminados como traidores. Mas a guerrilha não
acabará com a nossa saída daqui: os homens das tribos vão continuar a matar-se
e a praticar actos ignóbeis, a esfaquear mulheres, a esmagar crianças…
Que
vim eu cá fazer?
O
que disseste: instruir processos e informar
a quem compete decidir… e ninguém decide contra quem lhe protege as
costas.
Preciso
de beber um copo de água …
Vick
traz-nos mais uma mineral e um scotch puro.
(Cinco dias depois …)
Coronel,
temos um problema bicudo.
Só
um?
Este
é criminal. Passional, desta vez, presumo.
Então?
O
secretário do jurista foi encontrado esta noite morto à facada aqui nas
proximidades.
O
nativo que ia sair hoje com o jurista?
Esse
mesmo
Já
foi identificado o autor?
Se,
como tudo parece, se trata de um crime passional, o homem foi morto por quem
teria razões para o matar. Mas, facto provado, ainda não temos nenhum autor
identificado; só suspeitos;
Já
interrogaram alguns suspeitos?
Se
os suspeitos estão na zona deles, para lá entrar só com muita troca de tiros;
não sei se uma vida pode valer várias vidas de homens mulheres e crianças, mas
o nosso coronel manda.
Boa
reflexão. Há testemunhas?
Deve
haver, mas ainda não encontrámos nenhuma.
Percebo.
O jurista já sabe?
O
jurista engoliu uma dose razoável de soporíferos; está dormir e não se consegue
acordá-lo.
E
logo agora que se precisava de um parecer dele …
Para
já, não podemos contar com isso.
Tentativa
de suicídio?
Não
parece que a intenção tenha sido essa. Se fosse esse o caso, teria engolido o
frasco todo e o frasco está meio. O problema dele é que são horas de ir apanhar
o avião e ninguém consegue que acorde.
Estará
em situação de coma?
Quem
sabe?
Que
diz o médico? Já chamaram o médico?
Não
temos médico. O que tínhamos está a embarcar para o avião;
Nem
enfermeiros?
Médicos
e enfermeiros estão todos fora. Tem havido muitos feridos nestes últimos
tempos.
E
entre os civis, não se arranja um médico, um enfermeiro?
Difícil.
O que há mais são curandeiros.
Esses
não. Chegou o substituto do médico que embarca hoje à noite no voo que aterrou
esta manhã.
Negativo.
Veio um jurista.
Não
veio médico para render o que sai hoje?
Não,
senhor; só o jurista.
Não
se perde tudo. Quem vier tem trabalho a fazer. Transmite imediatamente ordens
minhas para impedir o embarque do médico por razões urgentes. Esse médico não
sai de cá enquanto não chegar outro…. Vick, um scotch!