Friday, June 17, 2011

CÁBULAS & Cª.

Era filho de um polícia da PVT, Polícia de Viação e Trânsito, uma corporação que viria uns anos mais tarde a ser extinta por acumulação de processos de corrupção observados entre os seus membros. Era conhecido pelo Pêvêtê, numa época em que era quase indigno não ter alcunha. Mais velho que eu um ano, teria na altura quinze, era o melhor em desenho e trabalhos manuais mas pouco interessado no resto. Já era repetente naquele ano e no fim do ano lectivo estava novamente ameaçado a quase tudo, salvo, obviamente, a desenho e oficinas. Deve ter farejado todas as artes possíveis para atingir o dez que precisava a português e inglês até o acaso vir ter em socorro dele. Encontrou-o no caixote de papéis usados que a secretaria mandava regularmente para o lixo. Ia a caminho de casa, desasado com a ameaça do ponto de português daí a dois dias, quando olhou para o caixote, e, no caixote, uma matriz daquelas a partir das quais na secretaria policopiavam os questionários redigidos pelos professores. Olhou, desconfiado se não estaria a sonhar, confirmou que não havia testemunhas e embolsou a cera.

Mal chegou a casa, descodificou a matriz amachucada e tratou de procurar as soluções para os quesitos pelos seus próprios meios. Que, já se disse, eram escassos. Não chegavam. No dia seguinte, veio ter comigo e contou-me a descoberta porque precisava de ajuda. Ajudei-o, claro. Fomos até casa dele, a mãe serviu-nos um almoço de estalo, em menos de uma hora tínhamos as respostas alinhavadas e a composição feita. À saída recomendei-lhe que não tentasse decorar aquela redacção mas descrevesse a ideia por palavras dele. Deve ter ficado tão esperançado com a obra que não se conteve e falou na descoberta ao Psioca, outro atrapalhado com a escrita. E, deste modo, se foi espraiando a marosca. De tal modo que à hora de entrada para o ponto não havia ninguém que não conhecesse o questionário, as respostas certas e uma redacção modelo.

Nunca uma prova de português se fez a tanta velocidade. Até o Coelho, que para acabar era preciso arrancar-lhe o papel das unhas, só não entregou o ponto mais cedo para não levantar suspeitas acerca das razões de tanta ligeireza.

Daí a três dias, estavam os pontos vistos, e a batota à mostra. Tínhamos todos errado uma pergunta, "curiosamente" a mesma, até as composições "também por grande casualidade", segundo a professora, eram "quase iguais",  salvo a minha, mas mesmo na minha a música era a mesma talvez tocada por um instrumento diferente. Talvez "um pífaro", e divertia-se com o nosso comprometimento estampado na cara.

De modo que, rematou ela quando era evidente que não havia quem pudesse contestar, como o período acaba dentro de três dias, terão todos oito na pauta salvo haja voluntários que queiram fazer oral para aumentar a nota. Quem quer começar? Levantou-se a turma inteira.

Assim vai ser complicado, mas faz-se, disse ela. Cada oral, dez minutos, pela ordem alfabética da pauta. Começamos já, quem não for interrogado hoje apresenta-se todos os dias aqui às oito da manhã enquanto não chegar a sua vez. O Pêvêtê, era Fernando, ainda foi interrogado naquele dia. Conseguiu dez. Deu para passar.

Ele, a caminho de casa, eu a caminho da estação de caminho de ferro, que ficava para o mesmo lado, dizia-me: A culpa foi do Psioca. Mas fiquei mais contente assim. Assim, como? Mostrei que sabia alguma coisa, não?

1 comment:

António said...

Uma delícia.
Você, de vez em quando, esmera-se.

16 valores!