Caro J.
Você desafiou-nos a ir ao confessionário e dizer publicamente de que lado arrumamos as nossas opções políticas. É um exercício que obriga a algum diálogo interior que, nem por ter sido já recalcado durante anos e anos, não deixa de obrigar a um trabalho de revisão. Isto, claro, para aqueles que, como eu, lamentavelmente ou não, nasceram sem ter certeza de coisa alguma. Uma espécie de extraterrestres.
Também não é assunto que se despache, honestamente, com um sou porque sou, ou com a ingenuidade de uma amiga minha que se diz de esquerda porque tem pena dos pobres (não sei se alguma vez fez alguma coisa para reduzir as penas deles e a dela) e se diz católica mas não acredita na imortalidade da alma. A incoerência, se muitas vezes decorre de uma boa dose de ingenuidade, noutros casos é filha de propósitos menos perdoáveis. Daí que me pareça que dizer de que lado estou me exija explicar porquê.
Sei que, começando desta maneira, começo a pôr quem me lê de atalaia e desconfiado de que tanta conversa só pode querer escusar-se a falar claro e fazer a direito. Geralmente, as pessoas têm os seus convencimentos desportivos, religiosos e políticos, e vivem, felizmente para elas, sem dúvidas de princípio. Eu só tenho algumas convicções e, mesmo assim, vou-as interpelando a ver se as abalo.
Nem no futebol sou indefectível de um qualquer clube, mas gosto de futebol; quanto a divindades, acho que a maior indignidade humana é a de os homens se matarem em nome de Deus, que, se existe, só pode ser o mesmo para todos; politicamente, estou certo de duas coisas: não sou do centro e sou democrata. Não sou do centro porque o centro, politicamente, é uma abstracção para arrumar os envergonhados da direita. Estamos à esquerda ou à direita uns dos outros, e ninguém, por mais pintado que seja, está ao centro. Sou democrata, porque não há outro sistema menos mau, como dizia o outro.
Quanto ao ser de Esquerda ou de Direita, vamos lá a ver se me faço entender.
Antes de mais, para mim o posicionamento político relativo, só faz sentido dentro dos sistemas democráticos, isto é, daqueles que encontram a sua razão de ser no voto livre e universal. Nenhum sistema político não democrático se pode considerar de esquerda ou de direita. Tal não significa que na teia das ditaduras não estejam presos espíritos livres, de esquerda e de direita, a congeminar revoltas. Do mesmo modo que não estão os regimes democráticos imunes a infecções totalitárias, geralmente localizadas, mas prontas a propagar-se a todo o tecido social.
Neste sentido, não foram de esquerda as “experiências de comunismo, ou socialismo real” levadas a cabo na ex-União Soviética e nos países do leste europeu que caíram na sua órbita, como não são de esquerda os regimes que ainda governam Cuba, China ou a Coreia do Norte. Em qualquer destes casos o que se observou, e observa, é o domínio absoluto de uma nomenclatura que tomou o poder e se apropriou dos principais meios de produção em proveito próprio dispensando o registo notarial a seu favor. Ao virar da esquina do mesmo gaveto político situaram-se, e situam-se, as ditaduras que muitos, erradamente, consideram de direita. Estruturalmente, contudo, nada as distingue. Entre o nacional-socialismo de Hitler e o “socialismo real” de Estaline a diferença é de ditador e seus comparsas. O número de vítimas e os processos de dizimação não foram significativamente diferentes. Aliás, se outro meio de evidência não existisse para justificar a semelhança, bastava o facto de não se sentarem os próceres das ditaduras em alas separadas, segundo as suas convicções, porque são as mesmas na aclamação unânime do grande chefe.
Reservando a dicotomia esquerda-direita às democracias representativas, já que a democracia directa, salvo casos muito excepcionais, é uma forma mascarada de populismo, parente próximo das ditaduras, a diferença, ao contrário do que muitos querem fazer crer, existe e nem sequer é subtil. Estará, porventura, esbatida relativamente aos tempos em que a designação da relação foi cunhada, mas subsiste.
Subtil, contudo, na diferença entre a Esquerda e a Direita é a diferença entre aquilo que geralmente é percepcionado a propósito destes conceitos e aquilo que realmente eles representam.
Um inquérito que indagasse, hoje, a relação do conceito esquerda, em sentido político, com diversos atributos, muito provavelmente os seis mais votados não andariam longe de: 1 – Pessoas 2 - Pobreza 3 - Solidariedade 4 – Ecologia 5 - Ateísmo 6 – Aborto. A direita mereceria, por sua vez, a companhia de 1 – Negócios 2 - Riqueza 3 – Individualismo 4 - Eficiência 5 - Igreja 6 – Vida
E, no entanto, se excluirmos os dois últimos, que não podem colar-se inquestionavelmente cada um a cada uma das partes, porque são transversais a ambas, os outros quatro têm matriz económica: o que sobreleva da primeira trempe é uma sorte materialmente pior do que da segunda.
Houve tempos em que à esquerda era mais saliente o emblema liberal e à direita o conservador, ou reaccionário até, na ressaca das revoluções. Mas, nesses tempos, eram liberais os adeptos do amor livre enquanto os conservadores faziam amor de pijama. Mas as coisas mudaram muito: hoje a direita bate-se pelo liberalismo nos negócios e, segundo estudo recente de Universidade prestigiada que não recordo o nome, os conservadores tornaram-se mais liberais nos costumes da cama que os liberais anteriormente tidos à esquerda.
Sobra, portanto, o dilema económico da dimensão da intervenção do Estado, pugnando, tendencialmente, a esquerda por que seja máxima, de modo a promover a solidariedade através da redistribuição de rendimentos, e a direita por que seja mínima para que se atinja a máxima eficiência dos meios produtivos.
À invocação de que o dilema não existe e de que a solidariedade é compatível e, mais do que compatível, exigível de eficiência, porque só é susceptível de repartição o que é produzido, respondem da esquerda que o recuo do Estado determinará a sua crescente submissão ao poder económico e, com o decorrer do tempo, à ditadura das multinacionais.
Posicionando-me à Esquerda, porque não devem, por imperativos de consciência humanista colectiva, ser deixados à sua sorte aqueles que nasceram com menos ou nenhuma, e porque me repugna que a solidariedade decorra, ainda que com outro nome, da caridade, virtude teologal que, na acepção socorrista, fazia sentido na Idade Média mas não hoje, considero como indeclináveis funções dos órgãos do Estado para além da administração da Justiça, a defesa do território e a segurança interna, a promoção da solidariedade social.
O Estado Solidário (designação que prefiro à de Estado Social) é, na actualidade, em que toda a actividade económica está, directa ou indirectamente, sujeita à lógica irredutível da concorrência global, a bandeira mais alta que a Esquerda pode levantar: se, na convulsão da globalização, o Estado Solidário soçobra, a Esquerda perde a sua referência maior e só lhe restará, se restar, alguma superioridade moral.
Nestas condições, para que a Esquerda realize o seu projecto não pode deixar de se empenhar no reforço da eficiência do Estado mas esse reforço só poderá ser atingido se o Estado se desembaraçar de funções que hoje realiza mas para as quais, manifestamente, não tem condições para atingir os níveis de competitividade que a globalização impõe.
Há uma esquerda alargada que vê na redução da dimensão do Estado uma consequente submissão do poder político ao poder económico. Quem assim pensa, contudo, entende que o poder político depende das relações económicas que tutela, o mesmo é dizer que insinua que o poder político ou é venal ou não subsiste. Lamentavelmente, os jornais não cessam de noticiar casos que parecem confirmar esta fatalidade: muito recentemente, o pacto assinado pelo Governo e o principal partido da oposição ignora o problema da corrupção e o partido que apoia o Governo parece estar em dificuldade em acertar, internamente, um preceito legal acerca do combate aquele flagelo.
De modo que não é a dimensão económica do Estado que previne o assalto das ditaduras, sejam elas quais forem; bem pelo contrário, a História relata que as ditaduras se forjam e prosperam na promiscuidade com o poder económico.
Da Esquerda, espera-se uma atitude moral consonante com os seus votos primordiais. Espera-se que a Esquerda não venda a sua alma pelo poder. Espera-se que a sua força resida na defesa intransigente de um Estado de Direito eficiente e respeitado. Tudo, ao contrário, do que, lamentavelmente se observa actualmente, quando a Justiça é um arremedo e a esquerda, ou quem por ela se faz passar, vende os seus créditos com a mesma facilidade que os seus opositores da direita.
O Estado é, inegavelmente, mau gestor das relações económicas. Não o Estado, como entidade abstracta sem capacidade volitiva, mas os órgãos, eleitos ou nomeados, seus tutores/gestores, que governam as suas funções. Mas esses gestores não são maus por uma razão congénita. A ineficiência do Estado, enquanto agente económico, não decorre de uma fatal inabilidade desses gestores mas dos condicionalismos em que essa gestão decorre e da frequente divergência de interesses entre os tutores e o tutelado. Quanto menor for a dimensão das funções com matriz económica realizadas pelo Estado, maior será a independência das funções de Justiça, de Defesa e Segurança, e de realização do Estado Solidário.
A Esquerda em que me revejo é essa: Menos Estado total, mais Estado de Direito para a realização de um Estado verdadeiramente solidário. Uma Esquerda que, em vez de viver, também ela, de fundos de fontes obscuras, propugne para que a Democracia se consolide sobre a clareza dos processos e das contas.
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