Friday, September 01, 2006

A QUADRATURA DO CIRCO

Vital Moreira escrevia na passada terça feira no Público, num artigo titulado “Partidos e eleitos partidários”, e acerca da demissão forçada do presidente da Câmara Municipal de Setúbal, que não acompanha “o criticismo generalizado que o caso do afastamento … por decisão do PCP motivou por parte de tantos observadores”. O artigo no Publico retoma, assim, algumas posições de VM acerca do assunto já anteriormente publicadas no Causa Nossa e acrescenta outras.

Sucintamente, VM:

Clarifica que o presidente da CMS não perdeu o mandato só porque o PCP assim o “decidiu” . Os partidos não têm tal poder nem poderiam ter;
…Foi o próprio presidente que renunciou ao mandato, por determinação partidária, que ele aceitou, sem ser obrigado a isso;
…Afinal, o mau desempenho dos cargos políticos reflecte-se também, e sobretudo, sobre os respectivos partidos;
… Se não for o próprio partido nacional a exercer algum controlo, quem controla?

e, a terminar,..

Se forem para a frente (oxalá, não!), as propostas de hiperpresidencialização do governo municipal que o PS (e parcialmente o PSD) apresentaram, …é imperioso que a vagatura do cargo de presidente conduza a novas eleições…De outro modo, a democracia local sofreria um rude golpe.

Ontem, quinta-feira, Jorge Miranda, no mesmo Público, começa por afirmar que “tenho visto afirmações atribuídas a juristas qualificados no sentido de os mandatos municipais pertencerem aos partidos, e não aos próprios eleitos. Não posso concordar, de nenhuma sorte, com tal tese”…

……A única ressalva – exigida pela transparência e pela moralidade política – consiste na perda de mandato na hipótese de adesão a partido diferente

E, a terminar, “ Não me interessa discutir os aspectos políticos do caso de Setúbal. O que me preocupa é o desvio aos princípios da democracia representativa que envolve. Para além do precedente, está aqui uma questão de princípio”.

Para além da profunda divergência entre dois constitucionalistas tão qualificados (salvo erro ambos participaram intensamente na elaboração e revisão da nossa lei fundamental) o que me importa realçar, a propósito do caso que atirou, inesperadamente para a grande maioria dos portugueses, o sr. Carlos Sousa para a ribalta, é um aspecto que não vi abordado e me parece fundamental para a compreensão de determinados fenómenos que se têm observado na gestão autárquica e que, do meu ponto de vista, está na origem desses fenómenos: o modelo de gestão autárquica.

As divergências entre os Professores Vital Moreira e Jorge Miranda radicam no seu enquadramento político-ideológico e subsistirão independentemente das suas qualificações jurídico-constitucionais. Se assim não fosse, se a apreciação que fazem do caso decorresse da aplicação correcta da “ciência jurídica”, poderiam subsistir diferenças de grau mas não atingiriam nunca os 180. De qualquer modo, e porque ninguém, minimamente consciente da praxis política envolvente, está imune a algum enquadramento ideológico, revejo-me totalmente nas posições do Prof. Jorge Miranda, e considero que as considerações do Prof. Vital Moreira reflectem, ainda que de forma retocada, o seu retrato do político quando jovem.

Mas se a atitude que possamos e devamos ter relativamente a esta questão de princípio, a que o Prof. Jorge Miranda, se refere é muito importante, assim como a conclusão final do Prof. Vital Moreira, a questão suscita outras abordagens que ponham em causa o actual modelo de gestão autárquica.

O órgão executivo da gestão municipal é a Câmara, composta por um Presidente e um número variável de vereadores executivos, consoante a dimensão da edilidade. O Prof. Vital Moreira admite que a renúncia do Presidente, no caso de hiperpresidencialização, não envolva a dissolução da Câmara se for eleito um vice-presidente nessa qualidade, mas a questão situa-se ainda no campo da legitimidade política e, consequentemente, não tem implicações com o modelo de gestão autárquica configurado na lei em vigor.

Sendo os vereadores executivos (há vereadores não executivos mas uma parte deles é) desde logo as decisões camarárias são aprovadas pela maioria dos vereadores (executivos ou não), incluindo o presidente. Daqui decorre que as decisões não são do presidente mas da Câmara, o que desde logo levaria a perguntar porque razão ao presidente, com razão ou se ela, são imputadas responsabilidades e ilibados todos os restantes co-responsáveis?
Ainda que a Câmara, para além do presidente, fosse constituída por um vice-presidente a situação em nada se alteraria, a menos que o vice-presidente, em matéria que levasse à destituição do presidente, se tivesse posicionado inequivocamente contra.

A explicação para este fenómeno da presidencialização, ou da hiperpresidencialização que Vital Moreira rejeita, e que implica, inequivocamente, na sua responsabilização sem cúmplices, podendo dar lugar a que seja o presidente culpado substituído por alguém que subscreveu as mesmas medidas que o condenaram, decorre do claríssimo facto dos vereadores obedecerem, na generalidade dos casos, ao presidente por dependência política e/ou por interesses próprios.

O vereador camarário executivo não é, geralmente, um técnico das áreas que superintende. O vereador responsável pelo pelouro urbanístico (para referir o pelouro geralmente mais apetecido) foi eleito, não pelos seus especiais conhecimentos da matéria, por razões de política partidária e nomeado pela Câmara, após a constituição desta, em função do peso político dentro do partido a que pertence ou dentro da coligação, explícita ou implícita, que os resultados eleitorais às vezes impõem.

De qualquer modo, o vereador executivo não está na Câmara com isenção política (porque deve obediência ao partido) nem com isenção de interesses pessoais (porque é envolvido directamente nas decisões que afectam terceiros, mas não por razões técnicas, para as quais lhe faltam conhecimentos específicos). O vereador executivo, assume-se, portanto, como director do pelouro respectivo, com despromoção do respectivo director de carreira, esse sim, pretensamente tecnicamente habilitado, e branqueia, ou compromete-se, com a sua assinatura, os atropelos técnicos ou outros que a direcção cometer na apreciação e execução dos projectos.

O governo autárquico deveria segregar de forma muito clara as competências de aprovação e controlo de políticas de gestão (que deveria competir à vereação, enquanto órgão colegial, sem pelouros atribuídos, e sem funções executivas) da sua execução, que deveria competir ao presidente e à direcção da edilidade.

Evitar-se-iam, assim, não todos, mas os maiores problemas de promiscuidade que têm sido observados na gestão autárquica. Enquanto se mantiverem as sobreposições de competências, que só podem vislumbrar interesses próprios ou dos partidos representados, construtores civis e dignitários da bola encontrarão terreno propício para as sementes de corrupção.

E a proposta de monocolorir o executivo camarário não evita os desmandos; facilita apenas o presidencialismo que, nesse caso, não tem que negociar com a oposição a atribuição de pelouros executivos. Mas o executivo camarário continuará, desta forma, e então sem margem para dúvidas, composto por um presidente de um conjunto de yesmen.

Teremos, então, a quadratura do circo: uma só trupe para todos os números.

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