Monday, January 09, 2006

E SE, DE REPENTE, ACABASSE A DROGA

Se a morte morresse já sabemos a confusão que seria: o Bem Amado teve uma ameaça dessas quando, há já uns bons anos, quis inaugurar o cemitério e não apareciam fregueses; há dias Saramago, sarcástico como sempre, voltou ao assunto enredando muitas situações trágicas ou cómicas ou uma coisa e outra. As tentativas que têm sido feitas, desde que o mundo é mundo, para matar a morte apenas a têm feito esperar, e nem sempre com os melhores resultados.

E se, de repente, acabasse a droga?

O esforço para acabar com o tráfico da droga parece ser, ao mesmo tempo, tão sério quanto inglório como aquele que é feito para nos garantir a vida.
Um prognóstico sociológico acerca do tema daria igualmente para encher um saco avantajado de dramas e comédias. Mas não se vá por aí, ainda que o assunto seja demasiado sério, não é essa a intenção da pergunta.

Frequentemente recebemos notícias de apreensões de droga, e tão frequentes são os recordes de quantidades ou os valores de mercado apreendidos, que facilmente se deduz que ou as polícias estão cada vez mais eficientes ou o negócio está em crescimento exponencial. Lamentavelmente, tudo leva a crer que os traficantes, apesar da porventura cada vez mais apertada vigilância policial, estão cada vez mais activos e as apreensões, por mais recordistas que sejam, representarão uma parte pequena da montanha, em expansão, traficada. Se assim não fosse, a crescente eficácia da polícia interceptaria mais cargas mas estas seriam cada vez mais reduzidas. Aliás, os relatórios dos observatórios da droga são inequívocos acerca do crescimento dos consumos de drogas em quase todas as partes do mundo, ocorrendo embora transferências de uns tipos para outros.

O negócio da droga inscreve-se no quadro estatístico da economia suja que regista outros abomináveis comparsas: o tráfico de armas, o tráfico de órgãos humanos, o tráfico de crianças, o tráfico sexual, além do mais, por que a lista está aberta à imaginação humana perversa, que é, por natureza, insondável. Designemo-lo por Quadro 1.

Os caminhos dos dinheiros destes tráficos cruzam-se com os de outros crimes, não tão execráveis mas igualmente condenáveis: a corrupção e o roubo a altos níveis, o contrabando de tabaco e a fuga aos impostos, além de outros delitos de natureza geralmente fiscal. Designemos este outro quadro por Quadro 2.
Os montantes envolvidos nos negócios abrangidos pelo Quadro nº.1 não são, evidentemente, facilmente computáveis, mas já o Relatório Anual do PNUD de 2001, o ano do fatídico 11/9, admitia que só o tráfico de droga a nível mundial envolvesse montantes financeiros equiparáveis aos da energia.

Desde a produção ao consumo a cadeia de traficantes de droga estrutura-se de forma altamente hierarquizada de modo que o passador na rua, embora lidando com o valor unitário mais elevado encaixa margens mínimas quando comparadas com os valores abocanhados pelos tubarões, e mesmo os proveitos desses distribuidores são frequentemente regurgitados para pagamento do auto consumo já que a maior parte deles são drogados. As receitas da droga não se distribuem portanto, ao contrário do que poderia fazer pressupor uma cadeia de distribuição muito ramificada, por um grande número de agentes, e concentra-se nas mãos de um número muito restrito e, consequentemente, muito próspero de patrões do negócio.

As fortunas acumuladas deste modo têm absoluta necessidade de se infiltrarem nos fluxos financeiros limpos e têm, portanto, que ser sujeitas a lavagens. Os lavadores de dinheiro sujo procuram, naturalmente, os instrumentos legais de processamento de entradas de fluxos financeiros supostamente limpos. É nesta fase de entrada no sistema financeiro regular que o dinheiro sujo proveniente dos negócios do Quadro 1 se encontram com os oriundos dos negócios abrangidos pelo Quadro 2.

E porquê?

Muito simplesmente porque as portas de entrada de parte do dinheiro do Quadro 2 são cegas e não distinguem, ou não querem distinguir, o que está sujo do que é limpo. Situam-se, normalmente, naquilo que passou a designar-se por “paraísos fiscais”. O paraíso fiscal é uma invenção suíça que, ao contrário do relógio de cuco, foi adoptado, e muito adaptado à ocorrência de novas circunstâncias, com grande sucesso em várias partes do mundo.

No rescaldo da Primeira Guerra Mundial, os suíços aperceberam-se que as grandes convulsões sociais espantam tanto as fortunas como os movimentos bruscos a passarada, e concluíram que era negócio dar-lhes abrigo. Zurique tornou-se, então, uma praça financeira capaz de rivalizar com Londres, especializando-se no ramo das contas numeradas, altamente confidenciais, demonstrando que, indiscutivelmente, o segredo é a alma deste negócio. Não tardou que essas contas numeradas fossem utilizadas para acolher dinheiro das mais diversas origens e ilegalidades.

Hoje, os paraísos fiscais, divergindo em muitos aspectos do figurino suíço, são um regalo para quem tem dinheiro e vícios, e os atractivos oferecidos constituem uma panóplia mais diversificada e apetecível que qualquer menu de um restaurante de luxo. Num ponto, contudo, todos coincidem e não abdicam da receita: o segredo bancário, sustentáculo de quaisquer engenharias que a imaginação conceba.

A partir do momento em que o paraíso fiscal existe com o objectivo inegável de permitir a evasão fiscal, se não teria outro nome, abre-se o canal com entrada franca para todas as habilidades sujas: corrupção e roubo de primeira grandeza e suas variantes, que constam do Quadro 2. Com efeito, nunca passaria pela cabeça de um paraíso fiscal indagar se o pretendente a cliente roubou o dinheiro ou só quer minimizar impostos. Mas ainda que fosse tão escrupuloso, há várias maneiras, aliás de construção simples, que permitem dar brancura aparente ao dinheiro sujo. Tão simples que não vale a pena ensinar a missa ao vigário; nunca os grandes ladrões e corruptos deste mundo tiveram dificuldade em por a salvo os encaixes das suas acções criminosas. Muitos destes personagens são conhecidos do grande público, a nível mundial, e os montantes dos valores extorquidos só são conhecidos quando eles caem. Mobutu e Pinochet são apenas dois exemplos de uma longa lista.

E como por onde passam os ladrões passam todos, os crápulas do Quadro 1 não têm que inventar nada para lavarem as fortunas que os negócios espúrios lhes proporcionam.

Claro que a lavagem de dinheiro sujo nem sempre pressupõe a passagem por um paraíso fiscal nem a evasão fiscal tem de passar obrigatoriamente por ali. O sistema financeiro mundial tornou-se, geralmente, suficientemente permissivo para competir com as vantagens oferecidas pelos paraísos fiscais; por outro lado, muitas vezes o próprio sistema financeiro não intervém directa ou indirectamente no branqueamento de capitais, sobretudo quando os montantes em causa, por serem relativamente pequenos, se infiltram no sistema da forma mais óbvia: todos nós já ouvimos falar, por exemplo, de vivendas ou apartamentos de luxo, transaccionados realmente acima de 1 milhão de euros serem pagos na totalidade em notas, e escriturados por muito menos.

O dinheiro sujo sujeito a lavagem assume valores astronómicos e dirige-se, naturalmente, para abrigos seguros, nomeadamente nos Estados Unidos e na Europa. Rondará 3 triliões a montanha de dólares que todos os anos é transferida de países do terceiro mundo para os países desenvolvidos e, sobretudo, os europeus e Estados Unidos da América.

É muito dinheiro e a influência desta transferência colossal nas economias europeias e norte-americana tem sido tão decisiva para o seu crescimento como a sua fuga tem deprimido constantemente os países subdesenvolvidos donde ele provem. É por demais evidente que, para além desta corrente de dinheiro branqueado, afluem às economias ocidentais, à procura de aplicações rentáveis, montantes também elevadíssimos provenientes de transacções inteiramente legais, destacando-se entre eles os provenientes dos países produtores de petróleo e, nos últimos anos, os excedentes de liquidez chineses, mas o saldo líquido das transferências para o ocidente desenvolvido oriundo de operações lícitas ficam flagrantemente aquém dos valores nascidos de operações condenáveis.

São estes fluxos enormes que ajudam a economia americana crescer e criar empregos sem que o duplo déficit (do orçamento e de transacções correntes) restrinja esse crescimento e, o que é ainda mais saliente, sem que o dólar entre em perda descontrolada como muitos auguraram. As operações financeiras, por outro lado, garantem aos seus agentes rendimentos que se situam geralmente bem acima dos proporcionados pelas outras actividades económicas em geral e dão um contributo decisivo para o crescimento económico, pelo menos nos termos em que este é geralmente medido.
Um exemplo muito nítido desta maior apropriação é o da economia luxemburguesa que consegue situar-se no primeiro lugar do ranking da produtividade mundial sem que tenha sido alguma vez notada a etiqueta “made in Luxembourg”. Até os emigrantes portugueses que trabalham naquele simpático membro da União Europeia gozam do prestígio inerente a quem participa na confecção de tão saboroso bolo.
Muito bem se canta na Sé mas é para quem é e para quem lá está ao pé!
Na realidade a produtividade dos luxemburgueses deve tanto ao seu dinamismo e criatividade como o recheio do Museu Britânico à cultura anglo-saxónica.

Estes fluxos financeiros, uns de proveniências lícitas, outros branqueados, com destaque nestes últimos para os provenientes da droga, canalizam-se para o financiamento de actividades especulativas, por serem estas as que acenam com rendimentos mais elevados e de realização mais imediata. De entre essas actividades, uma das mais tentadoras e que confere uma aparência sólida porque assenta em bens reais, é a especulação imobiliária.

Segundo a Bond Market Association, que consultou economistas de 29 empresas suas associadas, a maioria das quais grandes companhias de investimentos, a economia norte-americana deve crescer 3,4% em 2006. No entanto, a possibilidade de uma retracção do mercado imobiliário constitui, este ano, o maior risco para a economia norte-americana, tendo em conta a possibilidade de aumento das taxas de juro e o excesso de oferta
sobre a procura de casas.

Economistas da Wells Fargo & Cº. analisaram o crescimento do emprego nos Estados Unidos desde 2001 e concluíram que metade desse crescimento ficou a dever-se a empregos criados em actividades directamente no sector da construção civil. Se, para além dos empregos directos criados por este sector, forem também considerados os empregos por ele criados indirectamente, a dependência do crescimento norte-americano do sector imobiliário, nestes últimos anos, tem sido muito elevada e a probabilidade de uma recessão, em 2006, causada pela eventualidade de uma contracção da procura imobiliária é cerca de 10%, segundo a Economy.com (Washington Post, January, 1)

Um exercício de transposição para a economia portuguesa das consequências que poderiam decorrer de uma contracção da procura de casas para habitação não parece admitir qualquer paralelismo com aquilo que ficou atrás referido para a economia norte americana. E, talvez, ainda bem que não admite.

As últimas estimativas do Banco de Portugal para o crescimento económico em Portugal para 2006 não vão além de 0,8% com tendência para revisão em baixa se atendermos às estimativas anteriores feitas pelo BP. A economia portuguesa é excessivamente dependente do sector de construção e obras públicas e essa dependência estende-se também ao desporto, a partidos políticos, a câmaras municipais, a autarcas, que convivem, muitas vezes de forma promíscua com construtores civis e companhia.

Por mais que digam o contrário, nem o governo central nem os autarcas prescindem de um bom programa de cimento armado. Podem jurar a pés juntos que doravante vão apostar na formação, na técnica, na ciência, na cultura, etc., mas não tiram o olho do cimento armado. O cimento paga muita coisa e dá direito a destapar tabuleta para a posteridade.

E depois temos o problema da habitação por resolver. Um problema crónico de famílias a viver em condições infra-humanas ao mesmo tempo que temos um stock de casas que dá para albergar mais do dobro da população actual: para cada família portuguesa já temos, em média, 2,3 alojamentos, há centenas de milhar de apartamentos e vivendas para venda e continuamos alegremente a construir!

E Deus nos livre de parar! Se a construção civil parar ou abrandar a sério o carrossel sai das calhas desconjuntado.

De onde vem o dinheiro para financiar todo este stock enorme? Como é que pode uma indústria continuar indefinidamente produzir para stock?

Na Casa Branca, pelos vistos, mora a Dona Branca. E cá, quem mora?

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