Friday, January 13, 2006

O SENHOR SILVA

Uma das formas que alguns escrevedores encontraram para depreciar a imagem de alguém é tratarem-no nas suas verrinas por senhor. Quem não gosta do Silva, chama-lhe O Senhor Silva.

Senhor, passou a ser no dialecto desta gente, uma forma de tratamento desprezível. O designativo perdeu prestigio, aliás há muito tempo, nos meios urbanos, pelo pendor provinciano que aqui habita e foi denunciado por Pessoa, e a mesma sorte teve a consorte, a Senhora Silva.

Dona, por outro lado, só mesmo para o pessoal menor ou para a bisavó.

Quando nos meios rurais o Tio Silva ascendeu a Senhor Silva, o Silva da capital etc. e tal, tinha que ser outra coisa: ou doutor ou trate-me por Silva por favor. Elas fizeram uma inversão curiosa: De Dona e Senhora Dona passaram a Tias. Os pais que se tratavam entre si e aos filhos por tu, e os filhos aos pais por você, passaram a tratar-se entre si e aos filhos por você e os filhos aos pais por tu. De modo que já contamos com onze pronomes pessoais: eu, tu, você, ele, nós, a gente, vós, vocês e eles, e o senhor ou os senhores em circunstâncias geralmente conflituosas; a gramática continua no entanto a registar seis, dos quais um está moribundo e outro em vias disso. Tanto pronome só se concebe na ânsia da diferença.

O Senhor foi tão depreciado que, quando há tempos, José Saramago foi entrevistado na televisão, a entrevistadora viu-se e desejou-se para encontrar modo conveniente para se dirigir ao escritor. E vá lá, vá lá, não o tratou por doutor, ele que tem já uma boa dose de distinções honoríficas.

A preocupação da distinção foi magistralmente gozada por Jorge Amado na figura de Seu Aragãozinho, que viu curados os seus complexos de inferioridade por obra e graça dos compinchas que o fizeram capitão-de-longo curso, em terra seca.

Os equivalentes a Senhor nas outras línguas europeias mantêm-se, com toda a naturalidade, irredutíveis; os espanhóis vulgarizaram o tu, coloquialmente, mantêm o Dom para gente de peso. Por cá a diferença está no título, se as classes baixas se apropriam de um, as altas adoptam outro.

O fenómeno de deslocação das castas observa-se também com os nomes: se
as empregadas copiam para as filhas os nomes das patroas (Maria Albertina porque foste nessa de chamar Vanessa à tua menina) estas passam para outro ficheiro, podendo a idade das pessoas ser calculada cruzando o nome com a classe social. Mas este é um registo de evolução social que também se observa em outras sociedades (vd. Freakonomics /Steven D. Levitt ) . Típicamente portuguesa é a diferenciação das castas pelos títulos. Como no antigo regime, onde, em certo sentido, a sociedade portuguesa ainda se mantém.

Curiosamente, uma forma de tratamento que perdura imperturbável em Portugal é aquela que se utiliza, geralmente, nos endereços epistolares onde quase ninguém arreda pé do Exmº. Senhor e dentro, na missiva, andam V.Exªs. para aqui e para ali numa roda viva intrigante. E deslocada, porque, mesmo que o texto sirva para recordar ao credor pela enésima vez que deve pagar o que deve, nunca se passa sem o V.Exª. faça favor de.

Se o destinatário é dignatário e a missiva exposição, abaixo-assinado ou requerimento, então temos Excelência por extenso.

Nas relações do dia a dia nas empresas ou nas repartições do Estado, na rádio e na televisão, atropelam-se os doutores: doutor para cá, doutor para lá, a banalidade é tanta que até as apresentadoras de televisão e da rádio são doutoradas, e não reagem, lá pensarão que não são menos que os seus doutores convidados. Em noventa e muitos por cento dos casos os títulos são falsos, a senhora ou o senhor em causa quanto muito obtiveram uma licenciatura.

O título é um assunto tão sensível na nossa sociedade que um conhecido intelectual da nossa praça, doutorado, fazia graça há tempos com o tratamento impessoal de um call center que, imprevidentemente, o tratara por Senhor Coelho depois de ele ter repetido duas vezes o nome próprio e dois apelidos.

“Esta expansão do indivíduo (no século XVI) através de um nome duplo tem implicações pessoais interessantes. Aproxima o homem comum do senhor nobre, detentor de um nome muito completo e distinguido por uma pedra-de- armas. Hoje a tendência é regressar à simplicidade tribal ... as figuras públicas têm vergonha dos seus nomes duplos. Para serem populares, chefes de estado e outros políticos devem ser Jimmy e Betsy e Bill.”. From Dawn to Decadence: 500 Years of Cultural Triumph and Defeat. 1500 to the Present / Jacques Barzun / Ed. em português, da Gradiva

A brincar, a brincar, o Senhor Coelho achava o tratamento um deslustre e fez disso uma das suas colunas diárias.

Assim vai Portugal: Com uma grande falta de Senhores, com S grande, sobretudo.

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