Thursday, February 11, 2021

UM SALTO À DICK FOSBURY

                              

Moramos aqui, … há quantos anos Mary? a Mary é que tem todas as datas apontadas. 
Viemos para aqui em 60, em Setembro de 60, esteve um dia muito quente, à noite, estivemos à janela a saborear uma brisa fresquinha antes de nos deitarmos … e era a nossa primeira noite … 
A nossa primeira noite na nossa casa; já nos tínhamos deitado algumas vezes… 
E o que é que isso interessa agora? foi a nossa primeira noite nesta casa, ponto final. 
Foi a nossa primeira noite, sim senhor, a Mary tem boa memória, antes de nos deitarmos estivemos à janela a apanhar fresco. Viemos para aqui em Setembro de 60, portanto, portanto, chegando a Setembro, se lá chegarmos, é sempre bom pôr esta ressalva porque o bicho anda aí por todo o lado, chegando Setembro celebraremos 61 anos na Charles Street; … parece mentira termos chegado aqui há 61 anos … 
Chegarmos, não; tu chegaste; quando eu nasci já a minha família morava na Charles Street, noutra casa, mas na Charles Street; eu sempre residi na Charles Street, nunca residi noutro local qualquer. 
Residimos várias vezes fora … 
O que é que queres insinuar com isso? 
Nada, nada, foram residências ocasionais … de turismo, por exemplo, em Paris, Londres, Roma, … viajámos muito, … mas concordo com a Mary, residir, residir mesmo, na comum acepção da palavra, a Mary nunca residiu noutra rua, eu é que resido aqui apenas há 60 anos, 61 em Setembro, se lá chegar. Agora é que não saímos daqui, nem para ir à rua; o que nos vale são as duas janelas que dão para a Charles Street; passamos grande parte dos nossos dias a olhar para o que se passa na rua; mas agora não se passa quase nada, parece que o mundo parou; quem a viu e quem vê agora Charles Street! Dia e noite, sempre acordada! agora dorme e só de vez em quando parece querer mexer-se … é muito triste. 
Não se vê ninguém na rua mas mesmo assim ele não quer ir até lá abaixo dar uma voltinha ao quarteirão, só para que as pernas não se esqueçam como se anda … 
Tenho medo, confesso que tenho medo, com a nossa idade, se o bicho atira sobre nós é tiro e queda. 
Queda nenhuma, levamos máscaras, chegando a casa lavamos as mãos, não passa ninguém na rua, onde está o perigo? 
O perigo está em ti, Mary, lamento dizer isto, mas a Mary é um perigo … 
Eu sou um perigo? 
És, és, se te apanhas lá em baixo, na rua, nunca mais te ponho a vista em cima … quero dizer, tenho receio que tu nunca mais pares de andar em toda a zona, és mesmo muito capaz de dar a volta toda à cidade; não seria a primeira vez. 
A primeira vez, o quê? 
Que daríamos a volta toda à cidade, num dia inteiro; quantas vezes não saímos às oito e voltámos às oito, vinte quatro horas, sem parar? levávamos sanduíches e água … 
Só doze horas, eram doze horas, não exageres; e tu, levavas cervejas. 
É verdade, eu carregava com as cervejas, a Mary com as garrafas de água; no Verão bebíamos muito, fazíamos reabastecimento nas Deli que encontrávamos pelo caminho. 
Não percebo por que é que agora não podemos fazer o mesmo. 
Não é verdade o que eu digo? se vamos até à rua, a Mary não se fica pela Charles Street, não pára. 
E qual é o perigo? 
O perigo é muita gente andar sem máscara, não respeitar as devidas distâncias, passarem os atletas urbanos a bufar para nós, a espalhar o bicho; a Mary ainda não percebeu que há muita gente que quer ver os velhos todos mortos; 
Isso é uma perspectiva doentia, cínica, … 
Será cínica por parte dos que se julgam imortais. 
E tétrica da tua parte porque, já alguém disse, que se morre cada vez que se pensa na morte. 
Tu nunca pensas? 
Eu? nem parece que nos conhecemos há mais de sessenta anos; vives aterrorizado, não vives, ainda não percebeste isso? 
Fomos apenas uma vez à rua depois que tudo isto começou … 
E tu não paravas de dizer a quem passava: Ponha a máscara! Ponha a máscara! Ponha a máscara! … 
Só dizia a quem passava sem máscara. Não disse isso a muita gente. 
Já não te lembras, parece que já não te lembras, mas um dia, foi logo ao princípio, saímos durante uma hora, se tanto, ele a agarrar-me para voltar para trás, quase me deitava ao chão, fiquei muito preocupada com a saúde mental dele, fiquei mesmo preocupada, eu quase a cair e ele a continuar a gritar, ponha a máscara! ponha a máscara!
E ninguém punha … 
Dois ou três tiraram a máscara do bolso ou puxaram para cima a que tinham a cobrir-lhe o queixo; quando chegámos a casa, estava ele nervoso e cansado, só se acalmou com um chá que lhe dei com um calmante dissolvido sem ele saber; dormiu toda a tarde, ficou cliente do chá desde então, mas eu agora já não dissolvo calmante nenhum, se ele quiser tomar, toma, se não quiser não toma; quando não toma, passa a noite a voltar-se de um lado para o outro; o que me vale é ter bom feitio e não acordar com tanto movimento. 
Lá isso é verdade, a Mary tem muito bom feitio, sai à mãezinha dela, era uma santa paciência, a minha sogra, o meu sogro também era a calma em pessoa; mas dinâmico, foi ele que construiu grande parte desta zona … 
Quem começou foi o meu avô, aliás, quem começou mesmo na actividade foi o meu bisavô; já não o conheci, mas o meu pai tinha uma enorme admiração pelo avô; muito determinado, muito organizado, muito sem medo, acredito que saio a ele. 
Não sei se ele hoje seria tão inconsciente para descer à rua e andar por aí a desafiar a sorte de passar incólume sem pensar na possibilidade de vir a espernear num ventilador … 
Sobreviveu à pneumónica. 
Muitos sobreviveram, não foi só ele, o teu bisavô e o teu avô; muitos também sobreviverão a esta pandemia, mas há muita gente a morrer. 
Sempre houve e continuará a haver. 
Não é o que eu digo? a Mary se vou na conversa dela e descemos à  rua, desaparece-me da vista. 
E então? Que mal viria ao mundo se eu desaparecesse? 
Estás a ser pouco simpática, sabes muito bem que não conseguiria sobreviver sem ti. 
Já tinha desconfiado; não é o bicho que te assusta mas a falta que posso fazer-te; sou o teu seguro de vida. 
Sempre foste; sabes bem que nunca sobreviveria se, por um mau acaso da vida, ficasse sem ti; morreria logo de desgosto. 
Ninguém morre de desgosto. 
Eu morreria de desgosto se alguma vez deixasses de estar comigo. 
É por isso que não dormes no quarto ao lado e passas as noites às voltas na cama; só não me acordas mais vezes porque durmo bem, tenho a consciência tranquila. 
Eu também não tenho pesos na consciência, nunca tive, mas sonho muito; tu não sonhas? 
Se sonho, não me recordo do que sonho; tanto quanto julgo saber passa-se o mesmo com as pessoas normais. 
Eu durmo pouco, nunca fui grande dorminhoco, só raramente me levanto depois das sete, mas já me tenho levantado às nove e até às dez se a Mary está ainda a dormir a essas horas, só para não perturbar-lhe o sono;   se a insónia me põe picos na pele, saio da cama e vou ler qualquer coisa na sala só para não a acordar; outras vezes, deito-me a meio da noite na cama do outro quarto, e aí alargo os braços e as pernas, fico vitruviano, e adormeço … 
Devias fazer isso todas as noites; não percebo porque não fazes isso todas as noites … 
Porque me faz falta o calor da tua companhia. 
Tens medo que eu abra a porta e me ponha a andar … 
Não é bem isso … 
Mas quase. 
Talvez, inconscientemente, sim. 
Esta noite dormiste na outra a cama; não sentiste a minha falta. 
Senti, senti muito, até porque fui acordado por alguém que batia à porta. Tinha adormecido, talvez duas horas antes, saí da nossa cama eram cinco e meia da manhã e ainda não tinha dormido um minuto sequer; acordei estremunhado por aquele bater tão insólito, nunca tinha acontecido; levantei-me. Coloquei logo uma máscara cirúrgica, made in China já se sabe, exportaram para cá o bicho, agora fazem negócio com a exportação de máscaras, ventiladores, gel, tudo o que é necessário mas que não nos tira esta carga de medo que nos meteram em cima. Mal entreabri a porta entra-me na casa, sem autorização minha, uma mulher, na casa dos oitenta, não, não teria ainda oitenta, mas não andaria longe. Depois de ter recuperado do meu espanto perante aquela invasão privada perguntei-lhe qual era a ideia dela; 
Venho para a vacina? 
Para quê?, perguntei sem ter percebido o que ela tinha dito. 
Para a vacina, respondeu ela muito empertigada, como quem quer dizer, venho para a vacina e o senhor não tem nada com isso. 
Deve estar enganada … 
Não, estou não, recebi sms a indicar-me que hoje é o meu dia para ser vacinada … 
Talvez seja, mas não aqui. 
No sms indicam o dia, a hora e o local aonde devo dirigir-me. Quer ver? Tirou o telemóvel da mala, mensagens, mensagens, aqui! leia. 
Li … às oito a.m., Charles Street, 39, 5º., não há dúvida, é essa a indicação da mensagem, mas é erro, um erro lamentável porque aqui não há serviço nenhum de vacinação; gostaria que houvesse, já teria aproveitado, mas não é aqui, aqui é a minha casa, minha e da minha mulher; lamento, faça o favor de sair. 
Saio nada; quem é o senhor para me mandar sair? 
Antes de mais, ponha a máscara! Ponha a máscara! já lhe disse; sem máscara, é muito possível que já me tenha infectado. 
Eu? O senhor não deve estar bem do juízo; Quem é o senhor para me mandar pôr a máscara? 
Nesta altura, eu já estava começara perder a estribeiras. Quem sou eu? Sou o Arnold Schwarzenegger; diz-lhe alguma coisa o meu nome? Não, já vi que não; ponha a máscara! e ponha-se na rua! disse e empurrei-a para a saída. Empurrei-a para a porta, mas, eu não queria acreditar, a porta ficara aberta e, a tentar convencer a mulher que entrara primeiro, não reparara que tinha entrado gente que me enchera a casa, certamente, todos convocados pelo mesmo irresponsável sms. 
E toda aquela multidão, sem máscara! 
Ponha a máscara! o que é que o fez vir até aqui? 
Mensagem, sms, Charles Street, 39º., 5º. Só a hora era diferente, pelos vistos teriam chegado todos ao mesmo tempo para não perder a vez. 
Ponha a máscara! e saia! 
Ponha a máscara! e saia! Já! 
Ponha a máscara! e saia! Já! Já! Já! 
Ponha a máscara! e saia! Já! Já! Já! Já! 
Estava a ficar exausto, talvez até já estivesse infectado com tantos aerossóis a dançar no ar. 
Um após outro iam saindo; é melhor irmos saindo, ainda dá alguma coisa má ao velho e dirão que a culpa é nossa. 
Quando pensava que já tinha metido aquela invasão na rua, reparo que no sofá do canto que temos à esquerda do hall de entrada, continuavam em amena conversa, como se nada se tivesse passado ali, duas velhas. ... Sem máscaras! 
Ponham as máscaras! 
Levantaram-se, espantadas, as máscaras? nós estamos aqui para a vacina não precisamos de máscaras para nada … 
Precisam, precisam, e façam o favor de sair porque vieram ao engano; receberam uma mensagem, eu sei que receberam uma mensagem, mas não é aqui o local de vacinação, mensagens erradas, percebem as senhoras? Aqui, é a minha casa. 
Olharam desconfiadas para mim, só perceberam que tinham mesmo que sair quando lhes berrei, Rua! Rua! Rua! E ponham as máscaras! Irra! 
Bati com a porta, quando me volto, reparo que está sentado a uma secretária, um fulano, ainda jovem, alheado a bater no teclado de um PC portátil. 
O que é que está a fazer aqui? 
O meu trabalho, responde ele sem olhar para mim; vim para fazer o registo das vacinações aqui. 
Já percebi. Ponha a máscara! Ponha a máscara, quero falar consigo, mas, primeiro, ponha a máscara! 
Tirou do bolso, com muito custo gravado na cara, uma máscara, aspecto machucado, e  disse que estava ali porque recebera indicação por sms para se deslocar à … 
Charles Street, 39 … já sei, já sei, não precisa de mostrar o sms; é engano, esta casa é minha, não está à disposição para vacinações do público. Faça o favor de sair! 
Tenho de falar para o centro de saúde … 
Pois tem, mas tem de telefonar lá fora, não quero libertação de mais aerossóis aqui. Com tantos que já entraram, penso que já estou infectado. 
Remédio santo; o escriba de serviço agarrou no portátil e saiu parecia um foguete a caminho de Marte. 
Uf! Acabou-se, finalmente, o pesadelo.
Mary! Mary!, a Mary não estava no quarto, nem no outro, nem no outro, nem em nenhuma das quatro casas de banho do apartamento.  
Mary! Mary! Mary! A Mary não me respondia. 
Oh! Céus! Que é feito da minha Mary?, implorei, as lágrimas a soltarem-se-me, incontíveis. 
A Mary aproveitou a confusão para sair e deve andar lá em baixo a saborear o ar fresco na solidão da rua. Saltei até à janela, estava uma manhã linda, lá em baixo não passava ninguém. Pensei, vou também sair, tenho de encontrar a minha Mary, a força da minha vida, sem ela, o que sou eu? 
Coloquei a máscara, revesti-me o mais possível de roupa, com óculos não haveria polegada de pele minha exposta aos aerossóis. 
Aproximei-me da porta, ouvi um alarido do lado de lá. Discutiam. 
Como é possível? Avisam-nos para vir aqui para a vacinação e a morada está errada? Quem é que acredita nisso. 
Eu não. 
Nem eu. 
Eu ouvia muito distintamente aquela multidão na escada, espreitei pelo buraco da fechadura, calculei que estaria congestionada até à entrada do prédio; tentar atravessar em sentido oposto aquela multidão embriagada pela oportunidade de uma injecção que os livrasse da peste seria um suicídio. Fui novamente até à janela, e a rua convidou-me; não tinha alternativa, ou saltava e talvez me salvasse para encontrar a minha Mary ou ficava ali a morrer de desespero se os aerossóis não me dessem o golpe de misericórdia. 
Olhei, mais uma vez para a rua; havia lá em baixo uma vegetação rasteira que as chuvas de inverno tinham feito crescer o suficiente para, talvez, me proporcionarem o milagre de um colchão de amortecimento da aterragem. 
Acreditando nesse milagre, lancei-me do peitoril da janela, os pés voltados para o solo; 
Oh! azar dos azares!, ocorreu-me a meio da queda a dúvida de ter ou não ter fechado a porta e retirado a chave. 
Acontece-me frequentemente: Mary! 
Diz! 
Recordas-te se eu terei fechado a porta e tirado a chave? 
Na dúvida, fiz a pressão possível para inverter a queda, e acreditem, fui bem sucedido; como vinha de costas, passei o parapeito da janela com um salto à Dick Fosbury! E caí em cima de uma multidão que, entretanto, se apinhara na minha sala. 
A verem um  fantasma, só poderia ter-lhes parecido um fantasma, a entrar do céu pela janela, e ainda por cima de costas, fugiram aterrorizados, ficou a sala vazia em três tempos.
Mary! Mary! Mary! 
O que é que se passa Arnold? 
Temos Voltaren cá em casa? 
Caíste? Onde é que caíste? 
Depois explico-te; agora preciso que me ponhas Voltaren nas costas e me deixes dormir mais um pouco.

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