Monday, July 13, 2020

MARIA BEATRIZ


Morreu Maria Beatriz, artista de sentido poético, tão portuguesa quanto holandesa - c/p aqui

Vivia e trabalhava desde 1970 em Amesterdão. Tinha 80 anos. O sentido poético da sua linguagem plástica e as preocupações sociais e humanas atravessavam a sua obra.


A artista portuguesa Maria Beatriz, que vivia e trabalhava há muitos anos em Amesterdão, morreu este sábado à noite, de cancro, na cidade holandesa, confirmou o PÚBLICO junto de fonte familiar. Tinha 80 anos. A pintura, desenho, gravura, colagem, instalação, fotografia ou azulejaria, foram algumas das técnicas artísticas que desenvolveu. Distinguia-a o sentido poético da linguagem plástica, as preocupações sociais e humanas, e os modos de fazer, o recorte e a colagem, compondo e recompondo elementos. 
Conhecida nos meios artísticos portugueses, não é muito reconhecida pelo grande público, em parte pela sua vivência holandesa, pelo arredamento dos circuitos mais comerciais e também, dizem os que lhe são próximos, pela personalidade discreta. No seu site oficial da internet descreve que as principais características do seu trabalho são o envolvimento social, a forma como lida com a emancipação, em particular, a luta pela libertação. E também a sua abordagem poética. “É o aspecto inconsciente que me interessa”, descreve, adiantando que a técnica de colagem lhe interessa sobremaneira, seja para utilizar em pequenos desenhos ou em telas grandes. 
Nascida em 1940, em Lisboa, nunca se adaptou bem a Portugal, em parte porque cresceu durante a ditadura do Estado Novo, vindo a dedicar-se às artes plásticas após uma inicial e breve incursão por biologia. Opta então pelo curso de pintura na Escola de Belas Artes que também cedo abandona devido à crise académica de 1961-62. Em 2015 afirmava numa entrevista à historiadora e actual directora do Museu Nacional de arte Contemporânea (Museu do Chiado) Emília Ferreira, que sentia “falta de ar” no Portugal dos anos 1960. “Não havia qualquer possibilidade para os jovens de escolherem a sua vida. Os rapazes viram-se a ter de seguir o serviço militar e partir para a guerra do Ultramar”, dizia, enquanto “as raparigas viram-se metidas num espartilho de proibições e preconceitos - para uma moça como eu, não conforme, rebelde e desejosa de poder escolher a direcção à minha vida, a opção foi partir.”
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PÚBLICO -
Foto 
Na galeria Ratton em 2016 
Galeria Ratton
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Após uma estadia em Londres, em 1962-63, onde toma contacto com a “arte pop” inglesa dos primórdios, começa a ter lições de desenho e de gravura, na Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses, por onde passaram alguns dos mais importantes artistas da época. Começa então a experimentar as técnicas de gravura em metal e é lá que encontra o inglês Stanley William Hayter, fundador do Atelier 17, estúdio de gravação em Paris, que tinha vindo a Lisboa dar um seminário sobre esta técnica artística. 
Em 1965, é-lhe atribuído o 1º prémio em Pintura na Exposição de Outono da Sociedade Nacional de Belas Artes, e no ano seguinte vai para Paris, como bolseira da Fundação Gulbenkian, onde retoma os estudos com S. W. Hayter, no Atelier 17, durante dois anos. Os anos na capital francesa foram tempos de aprendizagem artística e de crescimento cultural, mas também político e cívico, vivendo o período efervescente do Maio de 68. A proximidade da Cinemateca francesa de sua casa, levam-na a ver clássicos e filmes experimentais, ao mesmo tempo que priva com o pintor Júlio Pomar. Com ele, diz ter percebido o que era a “dificuldade da pintura”. Uma luta incessante “que era preciso levar avante para acabar uma pintura. Com os materiais e consigo próprio. Uma pintura espelha o que somos.” 
A partir de 1970, fixa residência na Holanda, realizando estudos de pintura e artes gráficas, diplomando-se na Academia Livre (Vrije Academie), de artes visuais. Em 1974, obtém uma bolsa do Ministério da Cultura holandês que lhe permite ir ao México, país onde a gravura teve um importante papel na modernidade artística. 
Nesse ano, de regresso à Holanda, começa a leccionar gravura (de 1974 a 1987) e depois pintura e desenho (de 1988 a 1990) na Academia Livre de Haia. É bolseira da Amsterdam Kunstfonds em 1977, e depois, mais uma vez, do Ministério da Cultura holandês entre 1978 e 1980. 
A partir de 1983, começa a trabalhar com a Galeria Asselyn, em Amesterdão, onde expõe diversas vezes. Expôs pela primeira vez individualmente nos anos 80, com La tierra es lo probable paraiso perdido no Museu de arte moderna de Arnheim. Nos anos 90 expõe na Casa da Cerca de Almada, na Galeria Palmira Suso e na Diferença, em Lisboa. Em 2002 expõe a sua série Vita Brevis no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, em Lisboa, tendo esta mostra individual transitado para o Kunstuitleen K.N.S.M. de Amesterdão e para o Centro Cultural Calouste Gulbenkian em Paris, em 2004.
A sua última exposição individual museológica em Portugal foi a mostra Comedores de Batatas no Museu da Electricidade, Fundação EDP, em 2012. Sobre essa exposição, afirmou: “É possível que esta exposição seja a última de grandes formatos (tenho muitos problemas de artrose). E quis, neste semi-adeus, referir-me a Van Gogh. Porque, na situação actual em que o dinheiro se tornou a bitola de tudo, me pareceu relevante lembrá-lo, por se ter dedicado a desenvolver o seu talento, seguindo um desejo profundo interior. Sem ser por sucesso ou dinheiro. E assim foi a vida de muitos outros artistas que me têm acompanhado.”
Ao longo dos anos realizou exposições no Museu de Arte Moderna de Arnhem (1987, 2005), no Kunstuitleen K.N.S.M., em Amesterdão (1998, 2003), no Centro Cultural Calouste Gulbenkian em Paris (2004), na Gallery 59/SBK Zuid /Adam (2009), e em Portugal, na Casa da Cerca, em Almada (1998, 2003), na Galeria Palmira Suso (1998, 2000), na Galeria Diferença (1999), no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian (2002), na Galeria Ratton (2009, 2012), no Centro de Artes e Cultura de Ponte de Sôr (2011) e no Museu da Electricidade (2012), entre outras.
Em 2016 existiram duas exposições simultâneas, Calendário na galeria Ratton, e a antológica Trabalho de Casa 1960-2013, na Casa da Cerca, com curadoria da Galeria Ratton, tendo sido publicado um catálogo conjunto. Nessa altura dizia que não escolheu seguir uma carreira, mas sim enveredar por um desejo. “O ter querido desenvolver o desenho e a pintura pediu-me horas de trabalho no meu ateliê. Tive, pois, menos tempo para a vida social. Também não tive um salário certo ao fim do mês. Mas preferi a vida que tenho.” 
Está representada em Portugal, nas colecções da Caixa Geral de Depósitos, da Fundação Calouste Gulbenkian, da Casa da Cerca - Almada, do Museu da Cidade, em Lisboa, do Museu do Traje, da Fundação Ilídio Pinho (Porto), da Fundação EDP, na Colecção Jorge Gaspar, e no Município de Ponte de Sor, e no estrangeiro, no Nederlandse Bouwfonds - Gemeente Hoevelaken, na colecção John Loose (Amesterdão), na colecção Bram Volkers (Amesterdão), no Congresgebouw (Haia), em CRM, Rijksdienst (Haia), no Museu Haags Gemeente (Haia), no Museu de Arte Moderna de Arnhem, no Museu Stedelijk (Gouda) e a Colecção S.B.K. (Amesterdão).
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Comentário



Nuno Júdice

De fora para dentro: Maria Beatriz (1940-2020)

Maria Beatriz utilizou processos como a citação e a colagem para afirmar uma individualidade que tirava da sombra e do obscuro uma luz carregada de lirismo.




A pintura portuguesa do século XX ganhou uma dimensão internacional graças a duas pintoras expatriadas: Maria Helena Vieira da Silva e Paula Rego. Outros pintores viveram fora de Portugal, como António Dacosta, Costa Pinheiro, René Bertholo, Júlio Pomar, por períodos mais ou menos longos, ou nalguns casos em definitivo, e nestes últimos destacam-se dois que acabamos de perder nos países que escolheram como residência: José Barrias, em Milão, e Maria Beatriz, em Amesterdão. Essa escolha de um exílio que, em tempos de democracia, já não é político mas pessoal ou cultural, faz com que os seus nomes não encontrem, entre nós, o prestígio ou o conhecimento que outros, com uma presença maior no mundo das nossas galerias e salas de exposição, têm; mas não será menor a sua importância no campo de experiências e projectos que as suas obras trouxeram.


O caso de Maria Beatriz distingue-se pela forma como o seu trabalho aproveitou uma vida nesse mundo em que o acesso à grande pintura fazia parte do seu quotidiano, da pintura holandesa a outras a que tinha acesso no seu espaço próximo de todos os grandes museus da Europa além-Pirinéus. Maria Beatriz utilizou processos como a citação e a colagem para afirmar uma individualidade que tirava da sombra e do obscuro uma luz carregada de lirismo, sugerindo por vezes um percurso em que é possível ler um diálogo com os Mestres, a começar por Van Gogh que lhe inspirou uma sequência baseada nas batatas da fase inicial do pintor, exposta em 2000 na galeria Diferença, até aos nus femininos que expôs na Galeria Ratton, já em 2016-17, em que surge um erotismo que vai buscar a sua raiz às Vénus renascentistas para terminar num século XIX que vai de Ingres a Manet, usando a colagem de uma forma inovadora e inteiramente pessoal.



Não creio que se possa, para lá dessa situação literal que é a morte física da pessoa, falar de morte quando referimos um artista. Nenhum dos nomes acima referidos, que conheci pessoalmente, com excepção de Vieira da Silva e de Dacosta, a que gostaria de acrescentar João Vieira e Manuel Amado, desapareceram do meu horizonte: claro que sinto a sua falta física, com destaque para o amigo mais próximo que foi Pomar, mas cada obra sua permite o reatar e o aprofundar desse diálogo que mantivemos em múltiplos encontros, e que se prolongava quando mostravam e explicavam nos seus ateliers as obras em curso.
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É o caso com Maria Beatriz. A sua figura discreta talvez não deixasse adivinhar essas explosões visuais que nasciam das soturnas batatas vangoghianas; ou o erotismo fulgurante das imagens femininas, algumas ligadas ao conceito de modelo que tem vindo a ser posto em destaque na crítica de arte francesa (sim, ainda tenho a França como referente cultural, que me desculpem os anglo-americanófilos a quem cada vez mais desculpo menos coisas), outras a um realismo que, no fundo, está por detrás do seu universo.
Se em certos momentos o objecto se esconde sob a cor que evoca a abstracção, é quase sempre o gosto pela imagem concreta que se encontra na sua pintura, e isso decorre do prazer com que a mão evolui ao longo do desenho de cada figura. A precisão com que o executa não deixa de evocar os predecessores que a essa arte se dedicaram desde a época dos flamengos, não obviamente em termos de imitação mas antes da forma como capta o olhar e o faz descobrir o génio da inventio que, na retórica romana, acompanhava a dispositio, ou seja, a arte de organizar no espaço os elementos fornecidos pela memória, indispensáveis para que o resultado final capte essa admiração que, por muito que custe aos que defendem minimalismos de facilidade para esconder a ignorância, é parte integrante do funcionamento do dispositivo estético.
Esperemos que a sua obra não se perca de uma apreciação mais vasta do público e que possa estar disponível, como merece, em colecções ou museus de acesso público, não se limitando a uma referência enciclopédica (nos tempos actuais diz-se wiquipédica) que reduz tudo a um conhecimento de superfície. Não acontece muitas vezes, mas guardo na memória alguns dos quadros ou desenhos que vi em momentos e tempos diversos; e se não fosse essa capacidade de dar vida a cada fase do seu trabalho, infelizmente demasiado discreto em termos nacionais, nenhum dos que tiveram o privilégio do seu contacto guardaria tão presente essa memória.

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