Hum!!!!!, .... comprimidos??? Senti pairar no ar um som qualquer, ... comprimidos ..., será comprimidos? E, se for ou se não for, que me importam os sons, que me importa a luz, que me importa seja que diabo for? Não sei se durmo se estou acordado, agarrou-se-me esta dúvida ao pêlo desde que ensaiei fugir e borreguei no momento decisivo. A partir daquela tarde, apoderou-se de mim esta indolência que me adormece o corpo todo, já não distingo, não me interessa distinguir, o dia da noite, o calor do frio, enfio o focinho entre as mãos, enrolo-me na manta, e atravesso o tempo à espera de nada. Estou velho, velho e doente. Que idade tem ele? Quinze, disse ela há dias, mas faz mal as contas para disfarçar o meu envelhecimento acelerado nos últimos tempos. Sei que sou velho mas não tanto quanto pareço. Talvez tenha dez, quanto muito onze. Nos últimos três anos envelheci uns seis, há muito que não vejo, não quero ver, o reflexo da minha imagem, se acaso passo por onde me podia ver. Que é feito do meu pêlo preto, laranja e branco, sedoso, orelhas com madeixas fartas, mescladas de laranja e branco, pendentes, que se arrebitavam ao menor sinal de sentido? A última vez que me vi na água do lago não me reconheci. Aquele não era eu, e agora, certamente, ainda menos que nunca. Sonho repetidamente os mesmos sonhos, sonhando que são sonhos os azares em que me envolveram. Os comprimidos, os comprimidos, ... sonho ou pressinto que a velha os perdeu outra vez? Uma vez, quando contei à Cherry que ... não sei se foi à Cherry se foi à Gipsy, deve ter sido à Gipsy, nunca tive grandes conversas com a Cherry, a Cherry era pouco dada a conversas e, por outro lado, há muito tempo que não vejo a Cherry ... quando contei à Gipsy que andava meio zonzo, mas feliz, porque engolira uns comprimidos da velha, ela, que ouve e regista todas as conversas que capta por onde passa, avisou-me que os comprimidos podem dar-nos uma fólega aos desesperos mas, a pouco e pouco, vão arruinando a nossa memória. Tanto melhor, pensei eu, pior que as situações desesperadas são as recordações que não se apagam. Que me vale agora recordar os tempos em que fui feliz, porque era novo e livre, farejava para comer e namorar, e me trouxeram para aqui onde não tenho préstimo nem amigos? Há uns dois meses que não vejo a Gipsy, a Gipsy é quem me ia dando algumas dicas do que ouvia em casa ou no caminho por onde a levavam a passear, além de que há televisão lá em casa, a primeira vez que ela me falou em televisão e explicou do que se tratava andei uns tempos desconfiado que a Gipsy ou acreditava em bruxas ou no céu dos gambozinos. Mas pus-me atento, e confirmei que sim, que era verdade, aqui e ali, nos caminhos por onde passava vi de relance umas caixas e dessas caixas saía gente a dizer coisas. A Gipsy é, quero dizer era, a minha informadora, sem ela, o mundo que eu imaginava pelo que via e ouvia não tinha sentido, era um caminho repetido de banalidades e pequenas intrigas de amigas e amigos; com as informações da Gipsy, e aqui tenho de esclarecer que Gipsy é codinome, eu nunca denunciaria as minhas fontes de informação, consegui perceber o que se passara no interior desta casa há três meses onde passei a vegetar há uns dez anos. Foi a Gipsy quem me explicou o estranho caso que eu desconhecia, que tinha saltado para os jornais e televisões, e tudo se tinha passado a alguns metros dos meus bigodes sem que os meus sensores olfactivos e auditivos se tivessem activado. Culpas ou vantagens da sobredose de comprimidos da velha, que engoli há tempos, da última vez que ela passou por cá, o certo é que, nos momentos de lucidez que perpassam por mim para me afligir de vez em quando, consegui reunir as peças de um puzzle, que é o mundo em que vivo, se ainda vivo e não sonho que sonho uma realidade surreal num outro mundo a girar em ondas ultramagnéticas de quinta dimensão.
Contou-me a Gipsy, não querendo ela acreditar que, estando eu dentro da casa quase o dia inteiro, não tivesse percebido que polícias tinham vindo cá a casa e levado as gémeas com eles. É estranho, Gipsy, é muito estranho, mas pode ter uma explicação plausível. Estou velho, como sabes, e vivo sem saber se vivo, os meus sentidos estão frouxos, provavelmente estão tão quase mortos que já não funcionam como deviam, não ouvi, não vi, nenhum odor estranho entrou no raio de acção do meu faro debilitado. Mas posso imaginar que as gémeas não tenham sido arrastadas, à noite, de casa, que a mãe tenha sido surpreendida, durante um passeio de rotina com as filhas, e convidada a acompanhar os polícias destacados para conduzir as crianças para local fora da presença obecessivamente absorvente da mãe. Se assim foi, não ouvi, não vi, não me apercebi de nenhum modo o que se passou, até porque tudo se terá desenrolado longe da minha, agora débil, capacidade de alcance, mas parece-me bem. Parece-me bem que as tenham retirado de um ambiente de subjugação a excentricidades que, só não via quem não queria ver, estavam a transtornar a personalidade daquelas crianças, tornando-as criaturas de um mundo absurdo e, portanto, mentalmente suicida. Mas é revoltante que, só passados três anos, tenham decidido libertar as crianças. Não sabiam os médicos pediatras, os psicólogos, os psiquiatras, os juízes, até os vizinhos, que a mãe sofre de uma maluqueira qualquer? Sabiam. Sabiam e sabiam isso há muito tempo. Eu, que nessa altura ainda tinha o ouvido afinado, escutava a toda a hora, desde o princípio do isolamento das crianças, os impropérios da mãe sanguessuga contra tudo e contra todos porque ela e só ela sabia o que era o melhor para as suas filhas, e, em circuito fechado, quem melhor sabia o que convinha às crianças eram elas mesmas. Apoiava-a insistentemente na obstinação patológica de isolamento a velha dos comprimidos através de conversas telefónicas que quando pareciam que iam terminar continuavam até parecerem que iam terminar outra vez, mas não.
É ela culpada pelos rombos psicológicos que infligiu nas crianças durante um período tão longo? Como estou aqui amarrado a este capacho por incapacidade de deslocação interna e não tenho saído diariamente mais do que o mínimo tempo necessário para levantar a perna ou encolher a coluna nos sítios, muito próximos, do costume, como e durmo e, quando não durmo nem sonho, penso. O pensamento não pára, pensamento parado só a dormir de olhos abertos, e isso não consigo. De modo que desde há uns tempos a esta parte, penso que as culpas, sejam elas de quem forem, andam geralmente mal atribuídas. O doido tem culpa de ser doido? E, sendo doido, é culpado dos actos criminosos que possa cometer? Disse-me a Gipsy que ouviu lá em casa que para emendar os distúrbios ou mal formações do criador do universo e viver em sociedade a espécie humana inventou regras e a polícia, mas pelo que se vê a cada passo, falha mais vezes que acerta. Já agora, a propósito de culpas e culpados, diz-me Gipsy se o feio tem culpa de ser feio? E se o bonito, tem culpa de ser bonito? Pois não. Eu nasci bonito, agora estou velho já não sou bonito, e ninguém, com justiça justa, me pode culpar de ter nascido bonito e de, com a idade e a prisão a que fui condenado por nenhuma lei justa, ter ficado feio. Por que nasci bonito? Por um acaso para o qual não mexi uma palha. Por que me tornei feio? Porque não há modo de travar a nossa viagem pelo tempo nem evitar as consequências, boas ou ruins, que encontramos na rota.
Por ser bonito, toda a gente admirava o meu porte, o meu pelo, o brilho das minhas cores, a vivacidade inteligente dos meus olhos, encantava-se, e eu e meus irmãos, que também não eram feios, fomos vendidos e trazidos do calor e da maresia, onde brincávamos, corríamos, lutávamos, roubava-mos até, porque era preciso, para estas paragens brancas e tanto tempo frias, compulsivamente parados como esfinges à espera de raros momentos de desentorpecimento das coxas. O Pimpas, da nossa idade, de bonito só tinha o nome, de resto era feio, tão feio que ninguém o quis, lá ficou, a divertir-se na praia, a espantar as gaivotas com corridas de alta velocidade, a dormir à sombra se o calor aperta, a espojar-se na areia da praia a regalar-se com o calor quando o sol anda mais baixo, a fugir quando rouba para comer e a namorar a sério. Nunca mais vi o Pimpas, não sei sequer se ainda é vivo. De qualquer modo, o Pimpas, pelas minhas contas deve ter, até agora, feito pelo menos uns duzentos filhos que lhe deram não menos que quatro mil netos, e perco-me nas contas se quero contar-lhe os bisnetos, trinetos, tetranetos, e por aí fora, com o sangue e as fuças do Pimpas, que ninguém compra, e assim detêm o privilégio monopolista da reprodução exponencial da sua linhagem. Feia? É o que dizem os da espécie humana, da mesma espécie dos que me compraram para me enclausurarem e condenarem a morrer neste capacho, por ter sido por eles considerado lindo. E, com essa irrazoabilidade, cortaram-me cerce a possibilidade de povoar as redondezas de filhos, netos, trinetos, tetranetos, bonitos como eu. E, como eu, desaparecem os pintassilgos e todas as aves canoras e vistosas condenadas a cantar engaioladas, os animais da selva abatidos pelo imbecil mas irreprimivel vício de posse congénito na espécie humana. Às vezes penso que sinto uma enorme inveja do Pimpas mas logo me pergunto se é inveja este querer ter nascido feio como ele. Quando há já algum tempo disse isto à Gipsy ela deu uma gargalhada, e, disse, sempre que nos encontramos vens com a mesma ladainha.
É verdade que me repito mais do que devia se não me atormentassem as recordações daquilo que vi e que não posso testemunhar senão à Gipsy. Inutilmente, bem sei, porque vivemos em mundos separados dos humanos que nos acorrentam sem outra razão para além do instinto de posse da sua espécie. Eu não me sinto acorrentada, respondeu-me a Gipsy. Livre? Como podes ser livre se tens dono? Aliás, dois, ou quatro se contarmos com os dois filhos do casal. Não tenho dono nem donos, tenho acompanhantes! Desta vez, a gargalhada foi minha. E a trela? Decoração, respondeu-me ela secamente perante a evidência da sua real condição, a conversa ficou por ali, e eu passei a ruminar as minhas conjecturas intermináveis, que abandonado aqui no capacho sem ouvinte nem acompanhante, subjugado a uma tirania de isolamento infame que ninguém quer ver. E desconfortável por ter confrontado a Gipsy com a resposta do cão vadio ao cão com trela na fábula antiga que ela há algum tempo me contou.
Hum! ... afinal para onde levaram as gémeas? Não sei. E como há uns dois meses que não vejo a Gipsy porque nem eu saio daqui porque estou preso e a Gipsy não vem até cá porque tem trela, a minha ignorância é total e, como precisa de alimento, alimenta-se de hipóteses e suposições. O telefone toca todo o dia, é, suponho, a velha dos comprimidos, do que falam não sei porque, já disse, agora ouço muito mal, e porque a doida suspeita de tudo e todos, desconfia talvez que sou espião infiltrado e refugia-se no andar de cima quando o telefone toca.
Houve tempo em que as ideias se me atropelavam para a saída, agora, talvez porque se tenha partido a mola do tambor das recordações, não vislumbro hipótese de voltar a ver as gémeas, e a minha vida ficou sem qualquer sentido. Por que me pôs o criador no mundo e, ainda por cima, bonito para ser comprado e agora preso, prematuramente cego, surdo e mudo por falta de exercício e atormentado pela maluqueira de uma carcereira perversa, talvez sem culpa? Recuo na memória e recordo-me em imagens que vêm à superfície continuamente dos tempos do país do sol e do mar, das tropelias de putos a aprender a safarem-se para sobreviverem, quantos andarão ainda por lá? Talvez o Pimpas, se não o Pimpas certamente vários descendentes dele. Mas é pelas gémeas que o meu coração suporta as minhas angústias. Por que me abandonaram aqui? Porque já não presto, porque já não corro? Porque já não vou e volto vezes sem fim quando saíamos a passear e éramos cinco numa família feliz? Ou já terei morrido e o que de mim sobra a desfazer-se é uma nuvem onde o criador guarda os registos das suas criaturas?