Sunday, June 02, 2024

NÃO CULPE O POLVO, SENHOR PADRE ANTÓNIO VIEIRA!

Senhor Padre António,

Vossa Reverendíssima, invocando, "O Sermão de Santo António aos peixes", há trezentos e setenta anos, "verbera a maldade, os vícios, as ambições e as prepotências dos homens"

Um amigo meu publicou um comentário: 
 
"As novas religiões laicas com os seus dogmas indiscutíveis e os seus profetas e pregadores radicais fizeram-me lembrar a hipocrisia e a impostura bem denunciadas no Sermão aos peixes"  e que "a descrição do polvo, com os seus tentáculos e as suas capacidades de ilusão e traição é uma prodigiosa alegoria. 
“Com aquele seu capelo na cabeça parece um monge; com aquele não ter osso, nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta ou desta hipocrisia tão santa, o polvo é o maior traidor do mar. Consiste esta traição, primeiramente, em se vestir das mesmas cores, de todas aquelas a que está pegado..."
Vossa Reverendíssima prossegue, (mas o meu amigo não prosseguiu) : "Judas com os braços fez o sinal. e o polvo dos próprios braços faz as cordas. Judas é verdade que foi traidor ..."  mas "Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor".
 
Não vou embrenhar-me em discussões sobre as novas religiões laicas, assunto nuclear do comentário do meu amigo sobre quem é mais culpado das alterações climáticas: o ser humano, criação divina, as circunstâncias do planeta, do mesmo criador, ou da conjunção de uma e outra.
O polvo, como qualquer outro ser vivo, é resultado da evolução e selecção natural das espécies ao longo de milhões de anos.
Vossa Reverendíssima não podia ter conhecimento desta revelação feita duzentos anos depois do seu Sermão em São Luís do Maranhão. Revelação, reconheça-se, ainda hoje muito contestada por quem continua a crer que no Universo, no nosso pequeníssimo planeta, por divina criação, a espécie humana foi enviada e instalada aqui como obra acabada.
 
O que me motivou teclar este texto foi a acusação, ainda que metafórica, das circunstâncias que  engendraram o polvo, considerado, hélas! mais traidor que Judas!

A traição de Judas, nunca foi historicamente comprovada.
 
"Jesus e todos os seus apóstolos eram judeus, filhos de judeus. Mas na imaginação popular cristã, o único que ficou marcado como judeu - foi Judas Iscariotes. Quando os enviados dos sacerdotes e os guardiões do Templo vieram prender Jesus, todos os apóstolos se assustaram e, temendo pelas suas vidas, dispersaram à pressa: só ficou Judas ... Que ironia do destino, que o primeiro e último cristão, o único que não abandonou Jesus, ... que não o negou, o único cristão que acreditou na divindade de Jesus até aos seus derradeiros momentos na cruz, o cristão que acreditou até ao último momento que Jesus ressuscitaria e desceria da cruz perante toda Jerusalém e o mundo inteiro,.. seja precisamente o judeu mais horrível e desprezível. Aquele que personifica a traição, personifica o judaísmo e a relação entre o judaísmo e a traição" - Amos Oz - Judas

De que não restam dúvidas foram, e continuam a ser, as consequências desta traição no imaginário popular, na incitação à perseguição do povo judeu, na sua quase total aniquilação, porque está a história da humanidade, sobre ela, mais que documentada.
 
Quod et demonstratum, senhor Padre António Vieira: o inocente polvo deve ser despronunciado e mandado em liberdade, com direito à felicidade de viver enquanto um indivíduo da espécie humana não o capturar numa armadilha. Para que o capturador ou outrem, se delicie com um arroz do bicho, ou com ele simplesmente cozido ou assado à lagareiro.

1 comment:

Anonymous said...

Muito bom, caro Rui, nesse virar o bico ao prego para justificar um bom arroz de polvo…