"No curso de mais de quatro décadas da Guerra Fria, cada um dos lados foi responsável pela sua parcela de arremetidas e tropeços perigosos. No campo soviético, houve o falhado estrangulamento de Berlim em 1948-49 e a invasão da Coreia do Sul pela do Norte em junho de 1950. Passados cinco meses, o arrogante general Douglas Mac Arthur conduziu rapidamente e em força as tropas das Nações Unidas até às fronteiras da Coreia do Norte com a China e advogou depois o emprego de armas nucleares, como forma de retaliação pelas humilhações que os «voluntários» do Exército de Libertação Popular de Mao Zedong lhe tinham infligido no campo de batalha. Mais tarde, vieram, em 1956, a repressão soviética do Levantamento Húngaro e a invasão anglo-francesa do Egito para reaver a posse do Canal de Suez. O ataque a Cuba de abril de 1961 patrocinado pelos EUA abalou a incipiente administração Kennedy. Em 1968, tropas soviéticas suprimiram sangrentamente a «Primavera de Praga». Dois anos mais tarde, as greves dos estaleiros de Gdansk foram do mesmo modo reprimidas a tiro. A intervenção no Afeganistão em 1978-79 revelou-se um desastre para a União Soviética, rivalizando com aquele gerado pela longa agonia da América no Vietname, que se tornou uma tragédia muito mais profunda para os povos da Indochina.
Nenhum destes acontecimentos, porém, nem outros que envolveram os dependentes de ambos os lados, se equiparou ao perigo criado pela Crise dos Mísseis de Cuba em 1962. Alguns historiadores procuram hoje em dia diminuir a sua gravidade. Garantem eles: nenhum dos lados queria uma guerra nuclear. Isto é verdade, mas parece totalmente errado supor que era improvável que o pior acontecesse. Em 1992, numa conferência em Havana sobre a Crise, o ex-secretário da Defesa dos Estados Unidos Robert McNamara manifestou o seu espanto perante as revelações sobre o arsenal à disposição dos defensores soviéticos de Cuba trinta anos antes, incluindo armas nucleares táticas. Disse a um repórter: «Aquilo foi aterrador. Significou que se tivesse sido levada a cabo uma invasão americana, caso os mísseis não tivessem sido retirados, haveria 99 por cento de probabilidade de ter tido início uma guerra nuclear.» McNamara disse isto, é claro, durante os seus anos de mea culpa, a seguir à destruição da sua reputação no Vietname. O seu palpite dos «99 por cento» era largamente exagerado. No entanto, o seu choque era bem justificado.
Ao longo de outubro de 1962, John F. Kennedy citou frequentemente o celebrado best-seller de Barbara Tuchman August 1914, publicado poucos meses antes na Grã-Bretanha, pela empresa familiar do primeiro-ministro Harold Macmillan. O relato de Tuchman é contestado por alguns especialistas modernos. Num ponto, todavia, a sua opinião parece incontornável. Nenhuma das potências beligerantes queria a grande guerra que teve. Mas tanto a Áustria-Hungria como a Alemanha quiseram uma guerra pequena, para esmagar e desmembrar a Sérvia, e alguns generais alemães estavam desejosos de aproveitar qualquer oportunidade para humilhar a Rússia antes que o seu crescente poder económico e militar se pudesse tornar avassalador. Os intervenientes perderam o controlo dos acontecimentos, com consequências para a Europa que se revelaram calamitosas.
Nos primeiros dias da crise de 1962, os chefes do Estado-Maior das Forças Armadas americanas transmitiram à Casa Branca a recomendação unânime de um bombardeamento maciço de Cuba, seguido da invasão e ocupação da ilha. É arrepiante ler hoje nos arquivos da Força Aérea dos Estados Unidos (USAF) o testemunho subsequente dos seus oficiais superiores afirmando a sua impenitência por terem instado à guerra; a sua persistente convicção de que a América podia ter assegurado uma «vitória decisiva»; o seu desprezo pelo presidente e pelos civis que o rodeavam, que se tinham «acobardado».
Houve vários momentos nos Treze Dias – 16-28 de outubro – em que John F. Kennedy foi sujeito a uma enorme pressão por parte de alguns dos membros da sua equipa da Casa Branca, incluindo o Conselheiro Nacional de Segurança, McGeorge Bundy, para ceder aos falcões. «Ken, nunca fará ideia da quantidade de maus conselhos que recebi», disse mais tarde o presidente a Kenneth Galbraith. Parece precipitado assumir que, por mais contrárias que fossem as opiniões do Kremlin, os oficiais russos em solo cubano pudessem ter aceitado milhares de baixas entre os seus 43 mil soldados, juntamente com uma derrota local, sem desfecharem algumas das armas nucleares táticas sob o seu controlo. Não havia salvaguardas tecnológicas que impedissem as guarnições de disparar à ordem dos seus comandantes. Uma vez sofridas pelos invasores as suas próprias pesadas baixas através de uma explosão nuclear, mesmo pequena, é improvável que o povo americano tivesse permitido a Kennedy recusar-se a escalar o conflito.
Há pormenores contestados, quanto a episódios como o que terá envolvido um submarino russo Foxtrot a seiscentas milhas ao largo no Atlântico: o seu comandante, sem saber ao certo se a guerra à superfície tinha ou não começado, ameaçou alegadamente disparar o seu torpedo nuclear quando assediado por navios de guerra dos Estados Unidos. O certo é que ambos os lados tatearam através da crise à sombra de enormes mal-entendidos e que alguns oficiais subalternos dispunham de um controlo sobre o uso de armas de destruição em massa que podia ter desencadeado uma catástrofe não pretendida quer pelo Kremlin quer pela Casa Branca.
Quanto mais me dedico a escrever relatos históricos, mais me deixa arrepiado a névoa de ignorância em que os governos tomam grandes decisões. No século xxi, os Estados Unidos e a China compreendem-se mutuamente pouco melhor do que se compreendiam há seis décadas. Não é mais fácil à Casa Branca adivinhar as intenções do autocrata irritado e meio doido que é inquilino do Kremlin em 2022 do que era as do seu predecessor em 1962. Os governos de todas as três superpotências, para não falar de nações nucleares menores, assumem riscos que podem um dia revelar-se desastrosos para a humanidade, porque alguém calcula mal, se excede ou concede a subordinados a oportunidade de o fazer.
Há um ponto importante quanto a esta crise que é muitas vezes ignorado: foi predominantemente uma questão política, não estratégica. John Lewis Gaddis escreveu: «As armas nucleares […] tiveram um efeito notavelmente teatral no curso da Guerra Fria. Criaram um clima de presságio sombrio que trespassou o mundo enquanto os últimos anos de 1950 se tornavam os primeiros de 1960. Obrigaram os estadistas a tornarem-se atores: o êxito ou o fracasso dependia, ou assim parecia, não do que uma pessoa estava a fazer realmente, mas do que parecia estar a fazer.» Racionalmente, e vista em qualquer quadro temporal que não seja curtíssimo, a instalação de armas nucleares soviéticas em Cuba não tornava os americanos significativamente mais vulneráveis do que eram antes: de ambos os lados, os mísseis balísticos de lançamento por submarinos estavam a tornar-se realidades omnipresentes nos oceanos do mundo inteiro. A questão era, antes, de perceção: os Estados Unidos sentiram-se obrigados a reagir à intenção indiscutivelmente agressiva do gesto cubano dos soviéticos.
Se o conflito coreano de 1950-53 foi o mais sangrento choque no campo de batalha da Guerra Fria, a Crise dos Mísseis foi o seu episódio mais perigoso, abrangendo um extraordinário elenco de personagens em todos os lados – temos obviamente de incluir os cubanos a par dos americanos e dos russos.
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Semanas antes de que Cuba explodisse, Kennedy enfrentou o motim asperamente divisivo da Universidade do Mississippi, organizado por racistas brancos que se opunham à admissão de um estudante negro. Fidel Castro, entretanto, tinha realizado a sua ambição de sempre de se tornar o revolucionário mais famoso do mundo, a despeito de chefiar um dos Estados mais pequenos. Alguns historiadores sustentam que as personalidades desempenham apenas um papel menor na determinação do curso da história, que é dominado ao invés por marés de acontecimentos e ideias. Depois de estudar a Crise dos Mísseis, é difícil defender uma tal tese como verdade universal. Três homens extraordinários – Castro, Khrushchev e Kennedy – dominaram as suas decisões e decidiram o seu resultado.
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Durante a Segunda Guerra Mundial, Winston Churchill observou com sardónica complacência que a respetiva história o trataria com amabilidade porque ele próprio a ia escrever, como de facto fez. Isto é também parcialmente verdade de John F. Kennedy e da Crise dos Mísseis de Cuba. Foram feitas gravações das reuniões diárias, e às vezes quase de hora a hora, na Casa Branca, cuja transcrição constitui a principal fonte dos historiadores que analisam a conduta americana. Só dois participantes sabiam que as máquinas estavam a rodar – o presidente e o seu irmão mais novo. Não há razão para acreditar que isto tenha influenciado significativamente as suas palavras e atos, mas deve ter havido momentos em que o presidente, especialmente, se tenha lembrado de que estava a preservar para futuras gerações uma crónica do seu comportamento numa crise.
No verão de 1940, Churchill murmurou muitas vezes, na presença do seu pessoal, a frase de Andrew Marvell a respeito da execução do rei Carlos I em 1649: «Nada fez, ou significou, de banal naquela memorável cena.» Churchill, é claro, estava conscientemente determinado que a posteridade dissesse o mesmo dele. Pode bem ser que John F. Kennedy, um estudante aplicado de Churchill, pensasse uma coisa parecida em outubro de 1962. Outros, entretanto, sentiram-se traídos quando em 1973 foi revelada a gravação. Dean Rusk telefonou à Biblioteca Kennedy para protestar nos termos mais veementes por ter sido conservado um tal registo sem conhecimento de membros do governo como ele. Algumas testemunhas contemporâneas já afirmaram que existem disparidades entre o que Kennedy e outros disseram durante as reuniões do EXCOM e opiniões por eles manifestadas noutras ocasiões e lugares durante aqueles treze dias, mas não foram gravadas. Tais apartes não invalidam as gravações, que são muito mais credíveis do que as atas escritas das grandes conferências internacionais.
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A causa duradoura da nossa gratidão pela Crise dos Mísseis é, claro, que ainda estejamos aqui para ler e escrever a seu respeito. Hoje, na esteira dos novos atos monstruosos de agressão por parte da Rússia, esta história possui uma atualidade profundamente deprimente. Mostra os perigos de que as grandes potências se aventuraram até à borda do abismo da qual, felizmente, recuaram em 1962. O mundo não pode estar certo de que tenhamos sempre a sorte de ver os líderes nacionais mostrarem uma sabedoria comparável."