Tuesday, March 24, 2020

COM TERNURA, PARA SAX TENOR


A tua mulher ressona?
Foi assim mesmo, de rompante, sem bom dia nem boa tarde: A tua mulher ressona?
Era o Teófilo, o velho Teófilo Braga, assim registado pelo pai, o Joaquim Braga, entusiasmado com as promessas dos republicanos, que, quando chegavam aquele mundo de curto diâmetro já tinham corrigido várias vezes a rota sem que se quebrasse nem desanimasse a esperança do pai Braga num mundo melhor, sem reis nem duques.
Já não ouvia o Teófilo há algum tempo. Está retido em casa há meses.
Sabes, não saio, não posso sair, eu bem queria mas não posso, as minhas pernas, estás a ver, o reumatismo, o reumatismo está a dar conta de mim, a vida é uma gaita, uma grande chatice, às vezes dou comigo a pensar que só são  felizes os que não nasceram, mas não, também tive muitos momentos felizes, só momentos, momentaneamente, percebes-me? Passo a maior parte do dia sentado, as minhas pernas, dizem que é reumatismo, mas, penso eu, isto não é só reumatismo, o reumatismo já não se usa, conheces alguém preso em casa, como eu, só por causa do reumatismo? Não conheces, tenho a certeza que não conheces, não há, o reumatismo, simplesmente, já não se usa. Não tenho pernas, agora não tenho pernas, tenho trambolhos, percebes?
O maior tormento do Teófilo não era ter de passar os dias sentado, não poder sair, não ir onde lhe desse na gana, o que mais lhe doía era ter sido obrigado a deixar a banda depois de mais de meio século a  tirar delícias de som do seu maior amigo, um fiel saxofone, que ele estimava acima de tudo. Preso em casa por ordem das pernas, ainda abraça o seu sax e tira dele o que em cada momento lhe ocorre, sabe-se lá vindo de onde, mas é agora um desespero improvisado aquele tocar solitário.
Há cinquenta anos, terminado trabalho, o Teófilo refugiava-se no sótão da casa a ensaiar o que, a princípio, a vizinhança não entendia que fosse música o que saía daquela dedicação do Teófilo.
O que é isto? É música, dizem, ouvi dizer que é jaze. A mim, sempre me pareceu que ele não tem queda para a música, quem não sabe tocar coisa que valha a pena toca jaze. O problema é que somos obrigados a ouvi-lo. Quem não gosta que tape os ouvidos. Hum! E achas que é fácil tapar os ouvidos para não ouvir esta trapalhada sonora? Pois, ele bem podia ir tocar para a casa da eira, lá em baixo, no vale. Ele fazia o que queria sem obrigar ninguém a ouvir o que não gosta. Eu gosto!| Pois ninguém te impediria de ir até ao vale ouvi-lo, se gostas. Há gostos para tudo. Talvez até talvez possas vir a casar com ele. Está livre. Sempre esteve livre. Casar, ele?, e a música?, se aquilo é música. 
Música mesmo era a que os punha a dançar, ao som afinado quanto possível de orquestras de amadores formadas nas redondezas, de composição ocasional e variável, geralmente, o apresentador e vocalista, dois violinos, um baixo, um trompete, um baterista, e o sax do Teófilo a deixar o jazz em casa e acompanhar a moda no clube. A menina dança? Dançavam-se modas e o jazz, por ali, não estava, nem nunca chegou a estar na moda.
Até aquela noite de baile quando o Teófilo pediu ao baixista e ao baterista que o acompanhassem e que os outros descansassem até à moda seguinte. Era uma estreia local absoluta de Tenderly, uma pérola de swing que, por mero acaso, tinha caído nas mãos do Teófilo num disco que comprara e ensaiara, tentando seguir Ben Webster durante semanas a fio com a paixão que aquela musicalidade, ali fora da moda, desprendia em cada fôlego do saxofonista. O sax do Teófilo tocava e cantava, assim cantasse o vocalista.
Mas isto é jaze? É, dizem que sim. Se isto é jaze, gosto disto.
A orquestra passou a "Jaze", "Jazz Band" desenhado a letras bem gordas, bem visíveis mesmo ao longe, no tambor da bateria, os bailes passaram a ser abrilhantados, era o termo usado, pelos "Jazes!" onde antes abrilhantavam as orquestras, mas as modas continuaram as mesmas, só perdurou, no meio do sempre o mesmo, o Tenderly e a voz inimitável do sax do Teófilo.
Mais tarde o Teófilo casou-se, nasceram dois filhos, e o sax continuou a animar-lhe a alma depois do trabalho e do jantar, aos domingos no clube, na filarmónica, conforme o calendário dos compromissos.

Se a minha mulher ressona, perguntas tu?
Só respondes se quiseres. A minha ressona. E a tua?
Provavelmente, ressonamos os dois. Um empate é sempre um bom resultado nestas circunstâncias, penso eu, agora que me colocaste a pergunta. E tu, ressonas?
A minha mulher diz que sim, que ressono, mas não muito. Ela ressona muito.
Como sabes que ressonas menos que ela?
Tens razão. É possível que ressonemos o mesmo, o problema estará na falta de afinação para ressonar ao mesmo tempo. Como pouco me mexo, durmo de dia mais do que devia, quando chega à noite é o dormes. E agora, nestes últimos dias, com quase todo o mundo em quarentena, tenho o sono completamente virado do avesso. Sabes, habituei-me ao som da rua, à passagem do pessoal, do trânsito, agora não se ouve vivalma na rua, e durmo menos de dia. O silêncio acorda-me. Sinto então um contentamento irreprimível de que logo me condeno, penso no mundo aprisionado em casa como eu, e sinto-me acompanhado, vê lá tu. Não devia dizer isto, mas é verdade, é o pensamento numa igualdade perversa num mundo congenitamente muito desigual. Que mal fiz eu a quem para não poder andar? À noite, nestes últimos dias, já me tinha habituado ao ressonar dela, e estava a dormir alguma coisa. Mas esta noite, sem explicação visível, ela não ressonou e eu, preocupado com o que poderia estar a acontecer-lhe, ali mesmo ao lado de mim, mas receoso de a acordar, porque é que não ressonava?, ela, que ressona todas as noites, estaria a respirar?, não estaria a respirar? Não preguei olho toda a noite. De manhã, perguntei-lhe, como dormiste? Dormi bem, dormi até muito bem, há muito tempo que não dormia tão bem. Mas por que é que perguntas? Não costumas perguntar. Porque não te ouvi ressonar. Porque também dormiste bem, não? Dormi nada. Nada, mesmo.
Talvez este silêncio assustador me tenha bloqueado o subconsciente, em auto defesa, e nem sequer sonhei. E ainda bem porque, quando sonho, é cada coisa mais disparatada ou pesadelo de matar um inocente.

Que me recomendas? Agora que preciso, para dormir, que ela ressone e ela não ressona?
Amanhã telefono-te. Fazia-te bem, e à vizinhança, em clausura, que lhe oferecesses as velhas melodias que o teu sax sabe cantar tão bem. E, sobretudo, não te esqueças de lhes dar dose dobrada do Tenderly, a abrir, e, no final como encore do concerto.

Hoje, 25, liguei ao Teófilo. Atendeu-me a mulher. Então o que é feito do Teófilo a estas horas. São onze da manhã, ou tenho relógio avariado?
O Teófilo está bem. Está a dormir que nem um penedo. Doze horas seguidas.
Tomou algum soporífero?
Qual soporífero, qual quê. Se tomou soporífero só se foi sem eu saber. Mas creio que não. Não há disso cá em casa, ele não foi à farmácia porque, como sabes, não pode, e a farmácia, por estes dias tem mais que fazer que entregar soporíferos ao domicilio. De modo que ele continua a dormir a sono solto porque não dormia há duas noites seguidas. Ah! Ao almoço, bocejou e disse-me que não dormia porque eu agora não ressonava. Alguém, com juízo, entende isto. Ri-me, o que é que podia fazer? Mas está descansado que quando ele acordar, liga-te.

E ligou. Felizmente, disse ele, ela tinha voltado a ressonar.

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