Friday, February 21, 2025

PROMESSAS *

Do Almirante Gouveia e Melo, publica hoje o Expresso um longo comunicado que vai fazer correr muita opinião e preconceito. 
Havia até agora uma generalizada convicção que Gouveia e Melo será candidato às presidenciais de 2026, provavelmente em Janeiro, mas que só anunciaria a candidatura depois de conhecidos os resultados das municipais entre setembro e outubro deste ano. 
Gouveia e Melo ainda não anunciou até agora candidatura nem deu ainda qualquer indicação de quando o irá fazer.
Mas, talvez, para responder à generalizada opinião de que "não se sabe o que pensa o Almirante", o presumível candidato escreveu o que pensa sobre o país e a Presidência. 

Esclareceu alguma coisa?
Num texto tão longo, que a seguir transcrevo na íntegra, alguma coisa deve ter sido esclarecida.
Mas também levantou muitas dúvidas.
A mais polémica será a sua afirmação de que Governo que não cumpra as promessas feitas ao eleitorado que o elegeu deve ser dissolvido pelo Presidente da República.
 
É uma intenção para merecer largos aplausos.
Mas como é que essa intenção se pode concretizar? 
Como é que o incumprimento de uma promessa pode ser medido sem consideração das alterações de circunstâncias incontroláveis entre os momentos da promessa e da sua avaliação? *
 
Começa Gouveia e Melo por afirmar: "Situo-me politicamente entre o socialismo e a social-democracia, defendendo a democracia liberal como regime político, começa" .
É uma afirmação forte mas muito controversa.
 
A partir de agora, Gouveia e Melo, que ainda não é candidato, colocou-se no centro do palco político do país.
Vantagem para o Primeiro Ministro Montenegro que esta tarde vai ter que justificar uma distração jurídica incómoda; vantagem também para o partido admirador de Trump que, deste modo retira os holofotes de cima das suas flagrantes incongruências entre o que afirma e o que faz.
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* Uma leitura mais atenta do texto de Gouveia e Melo não permite validar o título da notícia do Expresso: 
O sensacionalismo vende, mas frequentemente vende gato por lebre.
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"Honrar a Democracia": o artigo de Gouveia e Melo sobre o país e a Presidência 

 "Situo-me politicamente entre o socialismo e a social-democracia, defendendo a democracia liberal como regime político.

Considero essencial que a Justiça, enquanto pilar fundamental da democracia, permaneça imune a qualquer tentativa de manipulação e politização, tanto externa como interna, reforçando a sua independência, eficácia e eficiência. Defendo uma Justiça célere, que se distancie do espetáculo mediático e do julgamento na praça pública, uma Justiça que inspire confiança e segurança e não receio e instabilidade nos cidadãos.

Defendo uma administração pública independente e competente, centrada nos cidadãos e liberta de alinhamentos partidários, para lá da orientação política legítima dos governos. Acima de tudo, a administração pública não deve servir de suporte ou trampolim para clientelas políticas.

A economia deve centrar-se nas pessoas e trabalhar para elas. É fundamental reduzir as assimetrias sociais extremas e capacitar todos os cidadãos para que possam integrar, de pleno direito, uma sociedade verdadeiramente inclusiva. Todos contam; ninguém deve ficar para trás. A exclusão social, o racismo e outras formas de discriminação não podem limitar o direito a uma vida digna e livre. A caridade não pode servir para apaziguar consciências. Devemos ambicionar uma sociedade próspera, com um elevado nível de vida. Devemos combater a pobreza e as desigualdades sociais extremas com medidas estruturais que criem verdadeiras oportunidades de mudança. Formar, requalificar, garantir habitação condigna, reabilitar espaços e bairros, apostar nas pessoas e nas comunidades, financiar a iniciativa e a inovação — esse parece ser o melhor caminho.

A prosperidade só se materializará numa economia de mercado livre. O Estado não deve cair na tentação de conduzir a economia, mas intervir apenas na medida do necessário para garantir uma sociedade mais próspera, coesa e menos desigual ao alcance de todos os cidadãos.

É também imperioso libertar a economia, a iniciativa privada e os cidadãos de um sistema burocrático, complexo e asfixiante, que atrasa e dificulta o desenvolvimento. A proliferação de pequenos poderes favorece um terreno propício ao compadrio e à corrupção.

Importa transformar uma economia estagnada numa economia dinâmica, baseada no conhecimento e no elevado valor acrescentado. Uma economia que valorize o risco, a criatividade, a inovação e o empreendedorismo, com os empresários na linha da frente do caminho para a prosperidade.

Apenas neste novo modelo, assente na produtividade, na inovação, na flexibilidade e adaptação constantes, e num tecido social composto por cidadãos empoderados, poderemos ambicionar reduzir a carga fiscal e tornar o Estado mais eficiente e eficaz. Só assim estaremos preparados para enfrentar as variações cíclicas de um mundo em permanente transformação, e criar um ambiente propício à fixação dos nossos jovens.

OS PARTIDOS POLÍTICOS SÃO FUNDAMENTAIS

Vivemos tempos perigosos, com atores poderosos a tentar subverter a ordem mundial em função dos seus interesses. A ameaça já não vem apenas do Leste; surge agora de todas as direções, num cenário de 360 graus. Os valores fundamentais da ética republicana e das democracias liberais estão a ser postos em causa, inclusive por aliados historicamente próximos.

Agora, mais do que nunca, a liderança, a capacidade de decisão e a coesão nacional poderão revelar-se fatores críticos para o sucesso ou, pelo contrário, para o fracasso das nossas sociedades.

Não basta sonhar ou recorrer a discursos elaborados, repletos de fórmulas gastas e banalidades cínicas. É essencial saber fazer, apontar caminhos, ultrapassar obstáculos, decidir com base em evidências e ter a coragem de explicar, envolver e agir.

Exige-se dos atores políticos, acima de tudo, responsabilidade, transparência e coragem. O sistema político deve impedir a degradação das instituições e evitar o perigoso descrédito do regime democrático.

Os partidos políticos são fundamentais para o bom funcionamento da democracia. Por isso, é imperativo que façam uma autorreflexão profunda, para recuperarem a confiança e credibilidade junto da população.

Ninguém tem o monopólio da política. É preciso renovar, agregar conhecimento e experiências, e melhorar o ecossistema político, tornando-o mais diversificado e competente.

Transformar a Presidência num apêndice dos interesses partidários é uma ameaça à capacidade da democracia liberal de manter um sistema equilibrado e funcional

As pontes não se constroem sobre redes de influência, compadrios ou intrigas político-partidárias, mas sim sobre consensos assentes em valores humanitários, no desejo de liberdade, prosperidade e solidariedade efetiva, e, acima de tudo, na defesa intransigente da democracia liberal.

A preservação ambiental e o combate às alterações climáticas devem estar presentes em todas as nossas ações e planos. É um dever e uma exigência de solidariedade intergeracional.

Do operário ao empresário, do estudante ao professor, do médico ao Presidente da República, somos um só povo, habitamos o mesmo território e partilhamos um destino comum.

É preciso saber sonhar, mas, acima de tudo, é essencial concretizar o sonho.

O Presidente não está ao serviço dos partidos, está ao serviço dos portugueses e de Portugal. Garante a Constituição, a união e a integridade do país e é, por isso, um poder-contrapoder de um sistema democrático equilibrado ao serviço da liberdade, segurança, equidade e prosperidade dos portugueses e, consequentemente, de Portugal.

Um dos poderes informais mais importantes do Presidente é o poder da palavra. Quando o Presidente fala, não é um cidadão comum, é a República. Tem a obrigação de usar a palavra seguindo as regras da relevância, isenção, equilíbrio, contenção e gravitas.

Na conjuntura atual, um Presidente sem a independência necessária afunila a democracia. Por isso, a bem do sistema democrático, devemos querer um Presidente isento e independente de lealdades partidárias.

O PODER DE CONVOCAR ELEIÇÕES ANTECIPADAS

A democracia é um sistema político que tem por base um contrato social entre a população e o Governo. Este contrato não é intemporal e muito menos absoluto. As eleições gerais e periódicas visam precisamente limitar a duração do contrato, evitar uma deriva e entronização despótica do poder e restabelecer uma nova sintonia entre o Governo e a população governada.

Os mediadores deste contrato são os partidos políticos, que representam os diversos interesses, orientações e opiniões da população que os elege. Daí serem verdadeiramente essenciais ao processo democrático representativo.

Nunca é demais recordar que nas democracias liberais, o poder do Estado está dividido entre um poder legislativo e um executivo, independentes entre si, com tendencial preponderância para o primeiro. Existe ainda um terceiro poder, o judicial, com o fim de administrar a justiça de forma equitativa e independente, com base nas leis promulgadas.

As liberdades de informação, expressão e contestação devem estar devidamente salvaguardadas. No entanto, sendo a democracia tolerante por natureza, não deverá, em defesa própria, permitir ideias e práticas intolerantes, sob o risco de estas comprometerem a própria tolerância e, consequentemente, a democracia (paradoxo da tolerância de Karl Popper, 1945).

No regime semipresidencial português, o Presidente da República é o garante último da Constituição, da unidade nacional e do regime democrático. É-lhe conferido o poder de convocar eleições antecipadas e reiniciar o sistema fora dos períodos eleitorais previstos, ou mesmo, em situações especiais, demitir o Governo. Este poder só deve ser exercido quando existir a forte convicção que o contrato entre governados e governantes foi significativamente comprometido: por uma perda de confiança insanável do povo no Parlamento e/ou no Governo em funções; por um desfasamento grave entre os objetivos-prática do Governo e a vontade previamente sufragada pelo povo; ou por uma tentativa de usurpação de poder e subversão da Constituição, à margem da lei.

É precisamente por isso que o Presidente é eleito por sufrágio universal e direto em Portugal. Os poderes presidenciais, previstos na Constituição, servem exclusivamente este propósito. Sejam eles:

— de representação do Estado Português no estrangeiro;

— de atuação como comandante Supremo das Forças Armadas (que jura a Constituição e se compromete a defender o país contra agressões externas);

— ou até na prerrogativa que lhe é conferida de acompanhamento político da atividade legislativa dos outros órgãos de soberania, através da fiscalização preventiva da constitucionalidade, ou veto político das leis.

Estes últimos poderes têm, contudo, limitações impostas pela Constituição, mais uma vez, num sistema pensado em pesos e contrapesos, cujo equilíbrio considero que tem sido virtuoso e adequado.

A capacidade de isenção e de promoção da unidade nacional aumenta proporcionalmente ao afastamento e independência do Presidente dos interesses partidários. Pois, esses, já estão suficientemente representados no poder legislativo e executivo. Aos partidos, a Constituição reservou exclusivamente as eleições legislativas, das quais emanam os poderes legislativo e executivo. As eleições presidenciais são, por isso, nominais.

Sendo a democracia tolerante por natureza, não deverá, em defesa própria, permitir ideias e práticas intolerantes, sob o risco de estas comprometerem a própria democracia

O Presidente não governa. Acompanha, verifica, questiona e facilita, mas deve manter-se isento, evitando a tentação de se imiscuir nos assuntos político-partidários.

O legislador constitucional, em concordância com os princípios da democracia liberal, visou criar um sistema de pesos-contrapesos, gerando o equilíbrio necessário para preservar o regime democrático. No entanto, a prática que se vem estabelecendo é a de todas as eleições se tornarem derivadas dos interesses partidários, incluindo as presidenciais, o que limita e reduz a amplitude da democracia.

Apesar desta tendência, o povo tem demonstrado sabedoria ao votar de forma equilibrada, optando, na nossa história democrática recente, por eleger poderes legislativo-executivos de uma área do espectro político e Presidentes de uma área distinta.

Os compromissos políticos assumidos pelas diferentes forças partidárias nas últimas eleições legislativas e a atual composição da Assembleia da República não permitem vislumbrar a existência de condições para soluções maioritárias, à esquerda e à direita, nesta legislatura. Igualmente, a maioria dos eleitores rejeitou os extremos do espectro político.

É neste contexto que se compreende a tentação dos principais partidos procurarem eleger um Presidente alinhado com a sua área política. Ou seja, um Presidente que seja um instrumento partidário para desequilibrar ou sustentar a governação atual. Contudo, transformar a Presidência num apêndice dos interesses partidários é uma ameaça à capacidade da democracia liberal de manter um sistema equilibrado e funcional — o chamado sistema de “checks and balances”.

Importa também considerar que nenhum Presidente pode ser verdadeiramente “de todos” se estiver claramente associado a uma fação política, pois não terá a independência necessária para representar o interesse coletivo.

Um sistema político sem pesos-contrapesos é um sistema mais frágil, sem escrutínio e, consequentemente, mais vulnerável aos ventos que sopram hoje, da radicalização e da proliferação de ideias autocráticas e iliberais.

A radicalização das sociedades, o apelo por soluções simplificadas e imediatas resultam normalmente de:

— uma incapacidade para proporcionar os fins últimos da democracia — liberdade, segurança, equidade e prosperidade — que geram um perigoso desencanto;

— uma perceção negativa do comportamento dos atores políticos que acaba por fomentar o descrédito no sistema democrático, ou no mínimo o alheamento deste;

— uma dissonância entre preocupações urgentes sentidas pela população e as carreadas pela área da governação, o que beneficia os extremos;

— uma agenda transnacional de diversos tipos de extremismos, com incidência na política interna dos Estados.

Estamos a viver momentos verdadeiramente singulares da evolução humana e das relações internacionais, com fortes reflexos internos. A liberdade, a equidade, prosperidade e a segurança estão em risco.

É tempo de ir além do óbvio e dos interesses imediatos, sem afunilamentos. É tempo de cuidar, proteger e honrar a democracia. Não nos podemos alhear. Assim o exige o tempo que vivemos."

                                                    

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