Thursday, October 12, 2023

O MURO

 
Em 1986 decidimos dar um salto a Berlim.
Dar um salto tem, neste caso, razão de ser, no sentido de uma visita que não passou, desde Lisboa, por qualquer outro lado, salvo uma mudança de voo em Munique.
Poderíamos ter ido de carro, como tantas vezes tínhamos feito, e continuámos a fazer, mas a viagem seria longa, com requisitos burocráticos, e para o tal salto não tínhamos mais que uma semana.
Gorbachev tinha anunciado medidas que iriam ter um impacto, que se tornou irreverssível, no modo como se propunha tornar transparente (Glasnost) a política na União Soviética e abrir e reestruturar toda a sua economia (Perestroika). 
Nunca se tinha ouvido, vindos de leste, anúncios revolucionários da sociedade soviética, embalada numa modorra que, se dava às populações segurança de emprego, saúde e habitação, claramente fracassava na produção de alimentação suficiente, uma situação que popularizava o anedotário sobre filas de gente à espera para encher os sacos, geralmente pequenos.

E, para ver o que se passava fomos a Berlim.
Fomos a Berlim Ocidental, com um pequeno salto a Berlim Oriental, num circuito de meio dia saindo no Checkpoint Charlie e voltando pelo mesmo ponto.
O que vimos em tão pouco tempo: avenidas largas, estátuas de enaltecimento da Revolução de 1917, com particular destaque para Lenine. 
E o Pergamon Museum, que deve o seu nome ao conjunto reconstruido de ruínas encontradas da cidade de Pérgamo, uma cidade rica e poderosa na Eólia, que hoje se chama Bergama e fica em território turco. O Pergamon Museum não é apenas o altar de Pérgamo, possui outros tesouros históricos o mais reverenciado é o busto da rainha do Egitpto faraónico.
Percebeu-se que a vida em Berlim Oriental era pacata e, à espera de saída no Checkpoint Charlie fomos atendidos, para beber um café, por uma funcionário nitidamente desmotivada.
 
Em Berlim Ocidental havia uma exuberância de música, uma alegria incomum em cidades como Paris ou Londres naquele tempo. 
Tínhamos marcado hotel nas proximidades da catedral bombardeada, quase totalmente destruída durante a Segunda Grande Guerra e, as nossas excursões a pé, nomeadamente para visitar o muro de separação, partiam dali. 
Da janela do quarto, avistávamos, à noite, a Berlim Oriental mal iluminada. Do lado de cá, a iluminação era feérica, e a música continuava a entrar no quarto até horas tardias.
Tanto frenesim deste lado, pensámos, vai mais tarde ou mais cedo derrubar as barreiras que separam os dois lados de Berlim.
 
E o muro foi derrubado a partir de uma autorização em 1989 que permitia a travessia sem risco de levar um tiro, logo aproveitada pelos alemães dos dois lados para destruírem o muro.

Voltámos a Berlim em 1990.
Ainda havia gente junto ao muro a escavacar o que sobrava dele. Pedaços do muro eram vendidos como relíquias.

E voltámos a semana passada, trinta e três anos depois da primeira visita, com a guerra fria ultrapassada e os mísseis a destruírem, ainda longe dali, mas sabe-se lá durante quanto tempo, pessoas, velhos e novos, construções militares e civis.
Pequena parte do muro ainda lá continua, segundo depreendi, em parte recolocado após a destruição quase total. Ninguém vai a Berlim sem ver o que resta do muro.
Berlim sem muro, agora não seria a mesma.
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Se as pessoas soubessem quanto pouco cérebro está a governar o mundo, morreriam de medo - Ivo Andrić (Nobel da Literatura - 1961)

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