CONDOMÍNIO FECHADO
(CONTO INFANTIL PARA ADULTOS COM DEFICIÊNCIA DE ENTENDIMENTO)
Tem gás em botija?
Não, não tenho; há muito tempo que deixei de vender gás; aqui nos condomínios fechados já todos têm gás natural; o senhor não tem gás canalizado em sua casa?, desculpe perguntar.
Tenho, tenho, mas diz-se para aí que vai haver falta de gás …
Hum! Ainda não tinha ouvido essa; de qualquer modo, posso encomendar uma garrafa para si; se encomendar hoje, amanhã está cá; quer que encomende?
Está bem. Pode encomendar dez.
Dez? Disse dez ou ouvi mal?
Dez, sim dez, preciso de dez botijas, para já.
Fiquei sem perceber, mas fiz a encomenda. Dez garrafas de gás, por junto, o homem deve pensar que vai estar sem gás canalizado durante um ano…E onde é que ele vai guardar tanta botija? Tanto quanto sei, habita num andar alto e amplo; na garagem não vão permitir-lhe que guarde o gás lá. Nem na arrecadação. Muito menos no terraço, à vista de terraços vizinhos. Chegou o gás no dia seguinte; disse ao rapaz das entregas que naquele dia tinha trabalho extra e pesado, mas, com o carro de mão até ao monta cargas, seria coisa para se despachar em meia hora; era um oitavo andar, pois era, mas o monta cargas vai com tanta facilidade ao oitavo como ao primeiro e, sendo a viagem mais longa, maior era o período de descanso entre cada entrega; talvez até pudesse fazer o trabalho com três viagens, o monta cargas aguentaria.
Quem não aguentou foi o vizinho ao lado, que, ao sair do elevador, reparou no rapaz a preparar-se para subir no monta cargas no meio de quatro botijas de gás; para quem é isto? para que é isto? o rapaz disse o que sabia; o vizinho encheu e saiu, disse-me o rapaz quando voltou da entrega, parecia ter inchado de um momento para o outro. Deve ter vindo, imediatamente, para aqui, porque chegou antes do rapaz voltar à loja.
O senhor tem gás?
Gás, não tenho, não; há muito tempo que deixei de vender gás em botija, deixou de haver procura; agora toda a gente tem gás canalizado. O senhor não?
Tenho, mas vi há momentos um rapaz a entregar botijas lá no prédio, no apartamento mesmo ao lado meu. Dez botijas! É muita botija não lhe parece?
Parece, claro que parece, mas …
Não foi o senhor que lhe forneceu as botijas?
Para falar verdade, fui eu que lhe forneci as botijas.
E esgotou o stock!
Não senhor. Eu não tenho stock de botijas de gás há muito tempo; é artigo que, como lhe disse, deixou de ter procura. Mas como o senhor seu vizinho me pareceu tão necessitado, prometi-lhe arranjar gás em botijas; como conheço o mercado, encomendei o que ele precisava. Se o senhor quiser, poderei também encomendar para si…
Muito bem. Encomende!
E quantas?
Dez.
Não posso garantir que consiga tantas, mas vou fazer o possível.
Vai fazer o possível?!
Vou encomendar, é o máximo que posso fazer. Não garanto, no entanto, que o preço seja o mesmo que facturei ao seu vizinho.
Essa é boa! Aumentam-se os preços no espaço de umas horas?; estamos no aproveitamento duma espiral de preços por açambarcamento?, é isso?
Não é isso. Eu deixei de ser distribuidor de gás em botija há muito tempo pelas razões que lhe disse; mas conheço quem se tenha mantido como distribuidor; se esse distribuidor, que conheço, mantiver o preço, eu mantenho o preço; não estou, nem quero, fazer nenhum aproveitamento de uma súbita procura; a minha função é servir os meus clientes sem aproveitamento especulativo seja do que for; quer que encomende?
Sim, encomende … doze botijas!
Vou encomendar. Conto que possam chegar amanhã ou ainda hoje; logo que cheguem, aviso.
Não teria passado mais de uma hora, se tanto, entra-me na loja outro freguês; era o vizinho do primeiro no andar de baixo; entrou afogueado, tanto que comecei por não entender o que ele dizia; as palavras dele soavam-me soltas, …bandido, … vigarista …, por fim, percebi que estava assustado com a entrada de doze botijas de gás no último piso, doze botijas! mesmo em cima dele e da família, mulher e três filhos, a sogra, o cão e dois gatos, que também são seres viventes, não concorda?
Em absoluto; já agora, não sendo importante para o caso, é interessante saber que o seu vizinho terá no andar acima do seu, se bem entendo, armazenadas doze garrafas de gás …
Doze, pelo menos …
É interessante saber isso porque eu só lhe forneci dez.
Não devia ter fornecido tantas, mas ele não pára de armazenar gás; ainda hoje de manhã, que eu tenha visto, entraram mais duas; é uma ameaça, entende?, uma ameaça, que é a continuação de ameaça que começou há tempos por outros meios.
Outros meios?
Sim outros meios, vários meios; tem feito tudo para correr comigo da casa que habito, que paguei, que é minha; começou por colocar música maluca, fora de horas, a decibéis de rebentar os tímpanos, depois, ou tudo ao mesmo tempo, deixou as torneiras da casa de banho que fica por cima da minha a correr até que alguém gritou, há água a correr pela escada!; resultado caiu-me o tecto no chão … enfim, o fulano não pára com desmandos para me obrigar a sair da casa que é minha …
Mas todas essas agressões contra si também o afectam a ele; a inundação que lhe estraga o seu tecto também estraga a casa dele, não?
Quando essas coisas acontecem, ele não está lá, sai com a família para outra casa qualquer, tem várias, ou vai para um hotel de luxo.
E a polícia, os tribunais, não intervêm?
Nunca ninguém o apanhou lá; tem mesmo o desplante de afirmar que o que acontece é obra de alguém que se infiltra na casa dele;
A mim o que, agora, mais me intriga é a acumulação de botijas de gás que ele está fazer; ele e o vizinho do lado, que, se bem o entendo, não tem nenhuma pretensão de o afastar, a si, da casa onde reside.
Pois não terá essa razão mas terá outras!
Outras?
Detestam-se!...
Estava a conversa neste ponto, quando entrou outro cliente.
Tem gás?
Não, não tenho, agora o gás é canalizado;
Era! Ouvi dizer que há cortes de gás, que há explosões de oleodutos em todo o lado.
O senhor sabia disto?, perguntei ao cliente com a conversa interrompida.
Não, não ouvi nada sobre esse assunto; mas é bem possível que haja explosões em oleodutos… não tardará que haja também explosões de gás em botija … são produtos concorrentes, não são?
Talvez; nunca tinha pensado nisso. Mas quem é que vai fazer explodir botijas dentro da sua casa?
Um acidente, pode acontecer; estão sempre a acontecer acidentes.
Com botijas de gás?
Também com botijas de gás, sim senhor; o condomínio fechado é grande, apesar de parecer cada vez mais pequeno, há sempre acidentes em toda a parte; a mim, parece-me que, de qualquer modo, é prudente ter em casa uma botija de gás.
Só uma?, perguntei-lhe.
Porque pergunta? disse-me que já não vende.
E é verdade; há muito tempo que deixei de ser distribuidor de gás em botijas; mas também é verdade que consegui, junto de um distribuidor que conheço, dez botijas para um cliente e acabei de encomendar doze para outro; se precisa de uma botija, posso encomendar e logo se vê se o distribuidor que conheço ainda tem stock disponível.
Só preciso de uma, mas, com a sua informação de que há quem no condomínio fechado esteja a comprar uma dúzia, não sei se será prudente ter uma e imprudente ter tantas juntas ou o contrário; se o gás canalizado vai faltar mesmo, ter uma ou não ter nenhuma, pouco adianta; se fizer da casa armazém de botijas, ficarei com gás suficiente para seis meses, se tanto, mas o risco de explosão é um risco de vida para mim e para os meus mas também para todo condomínio fechado; não sei que faça.
Quando não se sabe o que fazer, manda a prudência que não se faça nada.
Quer o senhor dizer que, no meu caso, …
Não comprava
nenhuma; quando faltar gás para si faltará para toda a gente, ou quase; se essa situação vier a ocorrer, se acabar o gás, se acabar a energia, o condomínio fechado entrará em conflito global, e de nada lhe servirá ter uma ou muitas dúzias de botijas de gás.
A menos que esteja a ser ameaçado, interveio o da conversa interrompida.
Ameaçado? O senhor falou em ameaçado?
Foi o que disse, sim; estava a contar o que se passa quando o senhor entrou …
Peço desculpa ter interrompido; se me permite a pergunta, a ameaça a que se refere tem que ver com a acumulação de gás …
Tal e qual; acontece que o indivíduo que mora no último andar do prédio quer, à viva força, obrigar-me a sair de minha casa, que fica no andar imediatamente abaixo do dele; o tal que encomendou dez garrafas de gás a este senhor, a juntar mais algumas que terá comprado em outros lados, segundo disse o vizinho dele, que habita o apartamento ao lado; se quer saber a razão do comportamento estranho do indivíduo só sei que ele quer ocupar a minha casa, afirmando que tem esse direito porque a casa já foi dele…
E foi?
Foi do avô dele, que era construtor, reservou para si os dois apartamentos mais altos e vendeu os outros; o meu pai comprou-lhe, e pagou-lhe, aquele onde resido com a minha família, mas ele entende, penso eu, que o espaço dele não lhe chega e quer ficar, para já, com o meu.
Hum! E a que preço?
Não sei, nunca se falou em preço; deduzo que não é sua intenção pagar seja o que for; simplesmente quer forçar-me a abandonar a casa para ele a ocupar sem pagar nada.
E o que diz disso a vizinhança?
Vive amedrontada, em pânico, excepto o vizinho do lado, o tal que também tem mais botijas em casa do que devia…
Amedrontado, porquê?
Porque o prepotente do andar de cima pode fazer explodir o gás que tem em casa e destruir todo o condomínio fechado;
Há muita gente que diz o mesmo, mas também há muita gente que não acredita nessa hipótese suicida; afinal, duma situação dessas o prepotente também não escaparia; ninguém é tão doido que, para matar os outros, se suicide a ele mesmo, à sua família, aos seu amigos …
Tem lido as notícias, ultimamente? Conhece, razoavelmente, a história dos residentes no condomínio fechado desde quando a espécie começou a matar-se e à generalidade dos seres vivos à sua volta?
Ficou esta reflexão filosófica a três interrompida neste ponto porque entrou mais um cliente na loja;
Em que posso ser-lhe útil?, perguntei-lhe.
Quero quinze botijas de gás.
Não tenho botijas de gás.
Não tem botijas de gás? Constou-me que o senhor estava a vender botijas de gás …
Constou mal; o que acontece é que …
Ia a explicar o já explicado, quando chega o rapaz da carrinha de gás com as doze garrafas encomendadas para o segundo cliente, o vizinho do homem ameaçado pelo do andar de cima.
Tentei continuar a explicar o explicado a este último cliente mas, nessa altura, já a carrinha do gás estava a ser assaltada por uns quantos que tinham feito fila de espera. Tinha sido apanhado com a boca na botija … Fiquei sem botijas para o segundo cliente, e, incapaz de suster a entrada da fila de clientes a berrar por uma botija, decidi dizer vou ali já venho, e pus-me a salvo da ira da turba esfomeada de gás de botija saindo pelas trazeiras. Soube mais tarde que a loja tinha sido saqueada de tudo o que tinha.
Entretanto, soube-se em todo condomínio fechado que …
“… que com tanta botija à solta, uma explosão inicial num sítio propagou-se em ondas de choque por todo o condomínio fechado, matando tudo. …”
Um momento! Essa informação estava eu incumbido dar; como é que soube isso? O senhor, quem é? De onde veio, se tudo foi matado no condomínio fechado?
É mais fácil responder à segunda pergunta: venho de um condomínio aberto, estive a ver o que acontecia aqui no condomínio fechado antes da explosão global ter acontecido.
Condomínio aberto? O que é isso?
Como o nome indica, trata-se de um condomínio do qual é possível sair para qualquer parte do universo;
Aqui também podíamos sair de uns condomínios fechados para outros condomínios fechados …
Pois podiam, mas se podiam sair é porque não residiam em condomínios fechados; residiam em condomínios abertos, é uma questão de linguagem. Deste condomínio fechado nunca saíram os residentes aqui porque não sabiam como sair dele; ainda não sabiam; com tempo suficiente, um dia saberiam como sair, mas mataram-se uns aos outros antes que esse conhecimento construtivo tivesse avançado até ao ponto onde tinha chegado o seu conhecimento destrutivo.
É estranho … disse-me que vem de um condomínio aberto; há disso no universo?
Há; em número muito maior de botijas que alguma vez houve neste condomínio fechado.
Tantos assim? Pode levar-me a um deles?
Não, agora não; é tarde, o senhor está morto, não sabia?
Sabia, sabia; morreu tudo neste condomínio fechado em poucos instantes…
A propósito se o senhor está morto … está morto há quantos anos?
Não sei; os mortos não têm tempo, ou seja têm o tempo todo …
Mas se o senhor está morto como é que me aparece a contar o que se passou aqui?
Como? Eu sou o necessário inventado para explicar o que se passou aqui antes da explosão global.
Explicar a quem?
A si, por exemplo.
A mim? Por mim não precisava de ter sido inventado; esperei o tempo suficiente para encontrar aqui garantidas condições de residência sem risco de destruição global; o necessário inventado, neste caso, parece que não serviu para nada.
Pois estou a ver que não… já podia ter dito …
Eu disse parece que não serviu, mas serviu…
?
…serviu para confirmar que quando o conhecimento destrutivo, supera o conhecimento construtivo, em condomínio fechado, se ninguém conhece onde se encontra a saída do condomínio fechado, nenhum dos sitiados sobrevive.
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