Tuesday, December 06, 2005

O DISCURSO DO FEITOR

É provável que Dom José ainda seja vivo mas, seguramente, mais arruinado e louco. Da última vez que o vi continuava a bradar, quando lhe davam corda, rouco, por detrás das barbas ruças que só viam água das chuvas, de olho esgazeado, o indicador direito a varrer nevrótico como um radar pifado o horizonte de um canto ao outro, é tudo meu, é tudo meu!

Dom José era o mais novo de quatro irmãos; a irmã mais velha casara com um oficial do exército e andava por onde o Ministério da Guerra mandava andar, o irmão agrónomo abominava a Quinta e tornou-se funcionário do Ministério da Terra para não lidar com trabalhos agrícolas, preferia as questões agronómicas; o irmão veterinário, preferiu juntar-se ao irmão agrónomo no mesmo Ministério e dedicar-se às questões veterinárias por considerar que a sua realização pessoal passava pelas manjedouras públicas e não pelos estábulos da Quinta. De modo que Dom José, por não ter formação específica, quando foi surpreendido pela morte do pai, viu-se obrigado a assumir as responsabilidades que os outros enjeitavam.

Como o pai morreu sem avisar, Dom José agarrou-se à primeira tábua que lhe passou à frente a boiar no seu mar de angústias e promoveu Tadeu a feitor, por ser o capataz que ele melhor conhecia, eram quase da mesma idade, talvez Tadeu fosse um pouco mais velho, e continuou a borga inerente a um herdeiro que quando veio ao mundo no mundo estava tudo feito, ou quase, talvez faltassem alguns pormenores mas desses incumbia-se o pai com tal dedicação e exclusividade que não lhe sobrava tempo para se porem um ao outro a vista em cima.

Dom José teve uma caterva de filhos, tantos que quando lhe perguntavam quantos, respondia orgulhoso, já lhe perdi a conta, e continuava a aumentar as parcelas da soma. Todos rapazes e todos filhos de mães ilegítimas. Aparentemente, estes atributos parecem desafiar as leis da demografia e a lógica mais elementar, por isso merecem explicação. Dom José só aceitava rapazes porque as filhas davam mais preocupações, dizia ele, e preocupações era o que Dom José mais abominava. Também por essa razão, Dom José nunca casou.

Os filhos perfilhava-os a todas as mães solteiras que o procuravam quando os pais biológicos enjeitavam a ninhada. Ele, compenetrado à sua maneira das responsabilidades inerentes à paternidade, ia sozinho ao Registo Civil, dava o nome aos rapazes de quem passava a ser legitimamente pai ficando as mães legalmente incógnitas.

Ganhavam todos: ele aumentava a prole mas não a sustentava, elas penduravam os rebentos na esperança de um quinhão razoável nas partilhas a haver. Dos Ministérios da Guerra e da Terra não saltavam dúvidas nem oposição, até porque Dom José comprometia, com a sua excepcional vocação de paternidade, um quarto, não mais que um quarto, da herdade.

Tadeu tinha um filho, Romeu. Quando Romeu nasceu, Dom José achou por bem seguir o exemplo do feitor. Mas, sendo solteiro e sem vocação para fecundar, decidiu adoptar. A Lei, naquele tempo, considerava ilegítimos todos os não nascidos de matrimónio civil ou religioso e aos ilegítimos só era atribuída paternidade ou maternidade dos progenitores que se apresentassem no acto do registo. Os abandonados de pai e mãe eram filhos ilegítimos de pais incógnitos, salvo se o caso fosse do conhecimento de Dom José, sempre disponível para atribuir paternidade, mais não estava ao seu alcance. O instinto de paternidade de Dom José circunscrevia-se, porém, a um sentimento diáfano de posse, em muitos casos mal conhecia os perfilhados, aliás tantos, mas deleitava-se a dizer, o meu Abreu, o meu Alceu, o meu Alfeu, o meu Amadeu, o meu Bartolomeu, o meu Dirceu, o meu Eliseu, o meu Fileu, o meu Galileu, o seu Ga-li-leu era o seu preferido a pronunciar sílaba a sílaba, ainda que o visse apenas pela Páscoa quando o rapaz se apresentava para receber o folar e não fosse sequer capaz de o distinguir dos outros. A distância que o separava dos adoptados era idêntica à que mantinha relativamente às propriedades que compunham a Herdade, conhecia-lhe os nomes mas desconhecia-lhe os limites.

Sempre que Dom José passava na rua não havia rapazote que não o saudasse, como está meu pai, ao que ele, muito compenetrado pai, respondia sempre com um como estás meu filho. Os perfilhados mantinham, deste modo, acesa a sua legitimidade à herança, não fosse alguém esquecer-se ou negar-se, os outros saudavam-no por chalaça, e, deste modo, Dom José era pai de tudo o que nas redondezas usava calças.

Tadeu era um bom feitor. Dedicado, esforçado, leal, sempre que os anos eram fartos e sobrava rendimento, Tadeu investia em melhorias na irrigação, na compra de mais alfaias, na recuperação das casas e dos telheiros; nos anos em que Deus nosso senhor não ajudava, ajudava Tadeu. Nunca se soube muito bem como, embora não faltassem as explicações em surdina, mas Tadeu conseguia, sempre que necessário, suprir a tesouraria de Dom José com fundos seus, remunerados, naturalmente, com taxas correntes para empréstimos de ocasião.

Dom José sabia que a sorte não cabe a todos e tornara-se o mais devoto dos homens por se sentir, de entre os eleitos, porventura um dos mais bafejados. Tinha os filhos que queria sem fazer por isso, todos masculinos porque era assim que ele queria, não os sustentava porque não se comprometera, a herdade crescia porque Deus assim queria ou o Tadeu abonava, circunstância que, entretanto, passou a ser constância. Dos Ministérios, o consentimento era calado.

Os anos passaram, como em todas as histórias o tempo é sempre personagem discreta mas decisiva, e quando Dom José tinha atingido a plenitude da sua bem-aventurança, disse Tadeu a Romeu, espraiando a vista sobre a herdade soberba, o indicador a agarrar todo o horizonte visível: É tudo teu, Romeu!

O resto da história é conhecido desde o princípio.


ESTADO VERSUS ESTADO


O Estado é mau gestor, é uma afirmação quase consensual.

Há quem discorde, alguns dizem sim mas, os irredutíveis crentes na mão invisível, ainda os há, não concedem excepções nem meias tintas, os outros contestam com um discurso mas geralmente confirmam com outro. Isto é, há quem não concorde mas confirme, raros contestam sem concessões.

A história do feitor, verídica na parte substancial, ocorre-me sempre que se avaliam os dotes do Estado em matéria de capacidade de gestão.

O Estado, o que é? Dom José?

1 comment:

Manolo Heredia said...

A história de como o Estado se torna mau quando não é gerido por uma classe aristocrática. Toda a gente quer mamar na teta... e ele vai deixando!