A candura de um coronel russo pôs Kasparov a pensar
- Bárbara Reis in Público - 18/05/22
Observadores atentos notaram o que disse um coronel russo reformado sobre a guerra na TV estatal russa e eu uso esta newsletter para notar o que eles notaram. As palavras foram espontâneas e corajosas ou intencionais e parte de um plano do Kremlin?
Foi esta segunda-feira, o militar chama-se Mikhail Khodarenok, o programa, 60 Minutes, e a pivot, Olga Skabeieva, conhecida como “boneca de ferro da TV de Putin”.
Se o coronel Khodarenok tivesse dito o que disse num blogue ou num jornal independente era uma coisa. Bem diferente é ter usado o palco do 60 Minutes russo, com uma audiência de milhões e que é o principal programa de entrevistas da televisão russa, onde se promove a linha do Kremlin “em absolutamente tudo”, na descrição da BBC.
O editor da Rússia na BBC, Steve Rosenberg, achou o programa de tal forma “uma peça de televisão extraordinária” que traduziu a intervenção de Khodarenok na íntegra e partilhou-a no Twitter.
Há três dias que a versão integral ou os resumos da análise de Khodarenok circulam a alta velocidade nas redes sociais. O jogador de xadrez e activista político Garry Kasparov foi um dos que notaram a invulgar análise do coronel.
Khodarenok disse que “a situação vai claramente piorar” para a Rússia, pois a Ucrânia “está a receber assistência militar adicional do Ocidente” e “o exército ucraniano consegue armar um milhão de pessoas”. Entre os soldados ucranianos, continuou, “há muito o desejo de defender a sua pátria”, uma vantagem poderosa mesmo perante um exército profissional como o russo. “A vitória final no campo de batalha é determinada pelo alto moral das tropas que estão a derramar sangue pelas ideias pelas quais estão dispostas a lutar.”
O coronel disse também que o “isolamento” é “o maior problema na situação militar e política” da Rússia: “Estamos em total isolamento político e o mundo inteiro está contra nós, mesmo que não o queiramos admitir. Precisamos de resolver esta situação. A situação não pode ser considerada normal quando, contra nós, há uma coligação de 42 países e quando os nossos recursos, político-militares e técnico-militares, são limitados.”
Num texto de hoje, Rosenberg diz que “é raro ouvir uma análise tão realista dos acontecimentos na TV russa”. Nas últimas semanas, “apareceram opiniões críticas na televisão”. O editor dá o exemplo do cineasta russo que, em Março, disse ao apresentador de outro programa de entrevistas com grande audiência que “a guerra na Ucrânia pinta um quadro assustador” e “tem uma influência muito opressiva na nossa sociedade”. Mas contam-se pelos dedos das mãos.
É sabido que o coronel Khodarenok diz coisas que outros não dizem. É isso que torna a interpretação das suas palavras numa equação tão difícil. “O que aconteceu no 60 Minutes?”, pergunta o jornalista da BBC. “Foi um alerta espontâneo, não ensaiado e inesperado que escapou aos filtros? Ou foi uma explosão de realidade pré-planeada para preparar o público russo para notícias negativas sobre o avanço da ‘operação militar especial’?” A sua resposta: “É difícil dizer. Mas, como dizem na televisão, fique ligado à TV russa para mais sinais.”
Já o jogador Kasparov está inclinado para o segundo cenário. Quando publicou no Twitter o vídeo com a tradução de Khodarenok em inglês, Kasparov escreveu uma frase taxativa: “Isto é relevante.” Mas logo a seguir alertou para a possibilidade de a intervenção do coronel ser “parte de uma campanha do Kremlin para gerir expectativas em casa” e encorajar os líderes militares a negociarem cessar-fogos. Essa campanha, a existir, será feita na TV russa. É sempre útil ver a máquina de propaganda do inimigo.
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