Monday, December 28, 2020

OUTROS TEMPOS

A meio da conversa, disse o avô, amanhã vai chegar uma prenda, mas tens de ficar acordado até à meia-noite se a quiseres ver chegar.

Fosse qual fosse a prenda, seria a primeira vez que o avô, viúvo há meses,  prometia uma prenda aquele neto que lhe fazia companhia à noite desde a passagem da avó para o outro mundo. O que seria, o que não seria, que fosse qualquer coisa menos uma ceia de Natal, há quem goste,  para ele seria uma chatice; comer, fosse qual fosse o petisco prometido, era uma contrariedade. E logo para a noite de Natal, quando outros recebiam prendas a sério, como devem ser as prendas de Natal, o avô prometia-lhe uma prenda que podia ser uma estucha.

Está muito magrinho o teu filho …

Quem dizia aquilo mais valia que estivesse calada, quanto mais ouvia aquela conversa mais a mãe o atormentava para que comesse. Mas comer porquê, se não tinha fome?

Queres viver do ar?

Calava-se e metia mais uma colher de sopa às três que já tinham entrado. A sopa, ainda assim, era o que menos trabalho lhe dava a comer. Entrava, alojava-se nas bochechas, se aquilo eram bochechas, e ao fim de algum tempo decidia-se a descer para onde devia. Menos mastigação ainda requeria o óleo de fígado de bacalhau, entrava e sumia-se logo; o pior era o tormento de ver avançar a colher com o maldito e nauseabundo líquido amarelo, tinha a mãe de levar-lhe a colher à boca, uma vergonha para um rapaz de oito anos! voltava-lhe a cara, mas a ameaça de entrar não desaparecia; depois de engolido, o vómito queria fazer marcha-atrás, andava naquela de volta não volta todo o dia; por que é que tenho de tomar isso, mãe?

Não comes, tens de o tomar; se comesses o que deves, não teria de gastar dinheiro a comprar esta mistela enjoativa e tu estavas forte e mais crescido.

Apesar da aparência, tinha a vivacidade, disponibilidade e força de formiga, na escola era o formiga e não se ralava com isso.

Queres fazer companhia ao avô durante a noite, agora que ele ficou sozinho?

Quero!, respondeu, sem porquê nem para quê.

Saía de casa para casa do avô às oito da tarde na hora de verão, às cinco na hora de inverno; no tempo do escuro e do frio, quando chegava já o avô tinha água ao lume em cima da grelha.

Vens enregelado, senta-te aí e esfrega as mãos, com as mãos mais quentes fica todo o corpo mais aquecido.

Naquela noite de Dezembro, a escuridão de breu, - agora já não há noites de breu? - ameaçava chegar mais cedo que o costume, soprada por uma nortada fria, cortante nas orelhas que nem as mãos conseguiam proteger. Apressou a passada, bateu à porta, repetidamente, a porta não se abria, para onde teria ido o avô?

Avô! …Avô! …, o avô nem aparecia nem respondia. Teria caído e não conseguia levantar-se? teria morrido? … perguntou-se e veio-lhe o sabor a óleo de fígado de bacalhau à boca.

Havia um portão ao lado de entrada para o quintal. Mediu a altura ao portão, mas por ali se via que tinha de comer muito mais sopas para poder trepar pelo portão e saltar para entrar na casa pelo alpendre, nas traseiras.

Volto para trás?, com este vento frio?  

Passou por ali um homem, que não conhecia.

O que é que se passa, homem?

Era a primeira vez que alguém o via como um homem e acreditou que ia conseguir saltar o portão se o homem ajudasse. O avô não abre a porta, não sei para onde terá ido, e não tenho altura para saltar o portão, mas com ajuda sou capaz.

Posso levantar-te até lá acima, mas depois … saltas e ainda partes uma perna.

Não, não salto, estico-me e deixo-me escorregar até ficar com os pés quase juntinhos ao chão.

Gostaria de ver isso, já vi que tens mais alma que altura. Mas, experimenta bater na porta  mais uma vez, antes de arranjares um sarilho gordo.

Bateu, e milagre dos milagres, o homem deveria ser santo porque o avô apareceu logo de seguida.

Já estavas à espera há muito tempo?

Não, não, cheguei quase agora mesmo. Se o avô não tivesse aberto a porta tinha saltado o portão.

Tu? Não acredito que sejas capaz de saltar o portão.

Sou, sou, sim senhor! consigo se alguém me ajudar a chegar lá acima.

Gosto de ver essa confiança, mas ainda bem que cheguei a tempo de não a teres posto à prova; tive de sair por uns momentos e demorei-me mais do que calculara; vá, senta-te aí à lareira e esfrega as mãos sem queimares os dedos, hoje temos mais lenha no lume e há muito mais lá fora, a noite de hoje vai ser longa, é uma noite muito especial, vamos ficar acordados, pelo menos, até à meia-noite; sentes-te capaz de ficar acordado até à meia-noite? falei-te ontem nisso, não falei?

O que é que ele podia responder se nunca tinha ficado acordado até à meia noite mas também não queria dar parte de fraco?

O avô, pouco tempo depois de enviuvar, tinha chamado os filhos e entregado as propriedades a custo de uma pequena renda; ficara com o Don, o cão, e a Carocha, a égua; uma antiga criada vinha duas horas por dia cuidar da casa e da roupa, fazer a sopa, do resto tratava ele; montava diariamente na égua, parecia um fidalgo! o Don atrás, o cão de vez em quando atrasava-se com alguma incumbência de ocasião mas depressa recuperava; percorria os caminhos num redor de cinco milhas, duas, três horas por dia, consoante o convite do estado do tempo; nunca quisera cavalo, preferia égua, cavalo é bom para cavalarias altas, não era o seu caso; para além de ser mansa, a égua pare potros quase de ano a ano, o cavalo se não é de corrida acaba no talho em bifes; já alguma vez comeste carne de cavalo? só de ouvir perguntas daquelas ficava o neto enfartado; há quem aprecie, sabes? eu nunca comi mas não me escusaria de experimentar.

Quando chegava, já o avô estava sentado no mocho do lado direito do borralho, um canivete na mão direita a fatiar boroa em que embarcava uma rodela de chouriço, uma lasca de bacalhau assado, uma rodela de ovo cozido, cada noite uma entrada diferente antes da sopa; nunca dispensava a sua sopinha; esta noite, depois da sopa, está agora a assar castanhas no brasido puxado debaixo do lume que arde preguiçoso, o suficiente para aquecer a água, com que enchem as botijas para aquecer as camas, sem incomodar quem se senta nos mochos; há outro, no lado esquerdo, para o neto, no brasido duas castanhas, que o avô vai voltando com a tenaz para que assem sem se queimarem, tira uma, coloca outra, descasca-as como se lhes retirasse cuidadosamente a roupa, abre-as em três ou quatro bocados, mastiga-as demoradamente a absorver-lhe o gosto. O Don, o cão, um Don Juan, tem muitas namoradas, por onde passa deixa descendência,  está sentado de rabo no chão mas de cabeça levantada, irrequieta, as orelhas espetadas,  a seguir atento todos os movimentos do avô, abre repetidamente a boca a dar sinal que existe, impaciente, à espera que lhe caiba uma qualquer bucha, já terá comido o suficiente segundo o critério do avô mas ver comer dá vontade de comer, os gestos repetidos que o canino vigia, tirar castanha, pôr castanha, descascar castanha, partir castanha, comer devagar, excitam a  salivação do bicho, que, percebe-se, também quer participar no magusto; o avô atira para o ar um terço de castanha, o animal dá um salto, que assusta o neto e diverte o avô; Onde está a castanha?

Onde é que poderá estar?

O cão come castanhas, avô?

Gosta mais de carne, mas quando não há pão come-se rolão; se lhe dou uma castanha, uma não, não tenho castanhas para dar ao cão, vá lá um pedaço, já descascado, come-o. Só não come quem não tem fome ou não tem nada para comer, o cão está sempre com fome.  E tu, queres uma castanha? Prova, e diz-me se é boa. É boa, claro que é boa; come também esta.

Essa é do avô …

Como pouquito, quando chegamos a velho come-se pouco, e com diabetes nem devia comer o que por vezes como; sabes o que são diabetes? nem queiras saber, não se pode comer isto, não se pode comer aquilo, vista a lista sobra quase nada. Mas um dia não são dias, hoje é dia para transigir e comer qualquer coisa que mesmo que faça mal saiba bem a quem tenha diabetes. E, afinal, ficas ou não acordado até à meia noite para veres chegar a prenda que encomendei há um ano? Como ainda faltam uma horas, jogamos à bisca, ou ao burro-em-pé, como o costume, e comemos um petisco apropriado; fiz filhós; já comeste filhós em tua casa?, tenho a certeza que a tua a mãe já fez filhós.

A mãe disse-me que me vem buscar antes da meia noite para ir com ela  à igreja, à missa do galo.

Tu decides, ou passas a meia-noite comigo, e vês chegar a prenda que tenho encomendada e deve chegar até essa hora, ou vais à igreja ver o presépio e quando voltares a encomenda já deve ter sido entregue, não estarás cá para a ver chegar …

Já hoje vi o presépio de dia. Não preciso de lá voltar à noite.

Compreendo, vais fazer companhia à tua mãe; ela não vai muitas vezes à igreja, pois não?

Só para a missa do galo….

E o teu pai, não vai com a tua mãe à missa do galo?

O pai nunca vai à missa, só vai quando o chamam para tocar lá em cima no coro, gosta de tocar mas não gosta dos padres, gosta deste, até são amigos, mas diz que não gosta da padralhada.

 … Ah!, ouviste o que ouvi? ouvi qualquer coisa, tenho de ir lá fora … … não demoro nada.

Saiu apressado da lareira, calçou as botas grossas, vestiu a samarra preta que o cobria até aos pés, acendeu o lampião, pegou-lhe, e de gorro na cabeça que lhe tapava pescoço e orelhas, saiu no meio do escuro frio da noite.

Tentou o Don sair com o avô, mas foi impedido, não saias daqui nem deixes sair o Don; toma conta das castanhas, podes comê-las todas, já comi o que podia comer, não dês nenhuma ao cão, pode engasgar-se…não, não demoro, fica sossegado que eu não demoro, volto já.

Se ao neto faltava apetite não faltava genica em qualquer circunstância, … como é que este magricelas pode ter tanto ginete? … espantava a sua atitude irrequieta, o seu desembaraço para as tarefas que lhe incumbiam, tratou de cumprir as indicações do avô, castanha assada, castanha retirada do brasido, outra para a vaga aberta, e, descascada uma, enquanto, demoradamente a comia, já estava pronta a ser retirada outra, ficaram assadas e comidas quase todas as castanhas, sobravam quatro já descascadas, não seria por quatro castanhas que ficariam por cumprir as ordens do avô. O desafio de cumprir ultrapassara o fastio do neto e as castanhas parecia terem despertado nele o apetite adormecido.

Adormecido estava agora o lume, a lenha tinha ardido, a fogueira pedia mais combustível, mas a lenha estava lá fora, no alpendre, tinha de ir lá buscá-la, sem samarra nem gorro, foi ao seu quarto, tirou uma manta da cama, enrolou-se nela e trouxe para dentro lenha suficiente para animar o lume e reaquecer o ambiente, sem consentir que o Don se escapasse durante a manobra de ir lá fora e voltar para dentro. A ver as labaredas subirem e ouvir os estalidos da lenha a contorcer-se soltando faúlhas, encheu-se-lhe o peito, tinha conseguido, talvez até tivesse crescido uns centímetros de altura. E só quando a inspiração se soltou e o peito se contraiu ao ver-se sozinho porque o avô dissera que não se demorava e o avô desaparecera na noite, sentiu um estremecimento que empurrou para a porta sem manta nem outro abrigo que o protegesse do frio que o vento gelava. 

Avô! … Avô! …Avô! …

O avô não respondia.

Voltou para dentro, sentou-se no mocho, a olhar as labaredas, mas as labaredas agora queimavam, foi até à janela que dava para as traseiras por onde perdera o avô, mas a noite era de uma escuridão onde não se vislumbrava o mínimo sinal de existência do universo,   sentiu-se, então, desesperadamente só, sem saber o que podia fazer para sossegar aquela inquietação que o esmagava, martelando-lhe na memória as últimas palavras do avô

não, não demoro, fica sossegado que eu não demoro, volto já … não, não demoro, fica sossegado que eu não demoro, volto já… não, não demoro, fica sossegado que eu não demoro, volto já… ,

… mas ele não voltava, ele não voltava, ele não voltava, ele não voltava …

A olhar fixamente nada na escuridão total, veio-lhe à memória o sol poente e a ameaça do aproximar da escuridão da noite, e os pais sem chegarem. Nesse tempo ainda não andava na escola, aquela avó ainda era viva, era com ela que ficava até os pais chegarem, os pais chegavam sempre tarde porque os dias eram curtos e ele não percebia por que eram os dias curtos quando era preciso que fossem mais compridos. Trazia um mocho para a janela, em cima do mocho chegavam-lhe os olhos rés-vés à vidraça de baixo, e era em bicos de pés que vigiava sinais de aproximação dos pais.

O que é que estás a espreitar?

Não respondia, a avó sabia porquê.

Vai deitar-te, estás cheio de sono, quando eles chegarem levam-te, não é por estares à espreita que eles vão chegar mais cedo.

Mas quem é que o convencia da inconsequência daquela vigília?

O Dom via e pressentia, ou talvez entendesse, o desespero do neto, e, agora, encostara-se à porta, gania baixo, em surdina, parecendo esperar que o rapaz abrisse outra vez a porta para poder sair à procura do avô, mas se o Don saísse ficaria em total isolamento, e pode ter sido esse medo de ficar ainda mais só que no seu subconsciente se bloqueou o entendimento da intenção do animal.

não, não demoro, fica sossegado, eu não demoro, volto já.

Há quanto tempo saíra o avô? talvez não tivesse saído assim há tanto tempo, tinha assado e comido as castanhas que o avô deixara, seis? oito?, talvez doze, talvez tivesse comido tantas castanhas, a avaliação do tempo de espera pela contagem das castanhas reduziu-lhe a carga de desespero, sossegou, cansado, adormeceu por breves momentos, ou pensou que tinha adormecido, porque sonhara que alguém batia à porta para o libertar daquela angústia, e acordou. Ouviu bater à porta, correu a abrir, era a mãe que vinha fazer-lhes companhia antes de ir para a missa do galo.

O teu avô?

O rapaz tinha emudecido, não sabia como dizer não sei, não sabia dizer que o avô tinha desaparecido, como se ele fosse culpado desse desaparecimento, ele que tinha sido destacado para fazer companhia ao avô e agora não sabia dele.

O teu avô?

Respondia com um abanar de cabeça que queria dizer não sei.

Esta é boa! Como é que entraste em casa?

O avô abriu a porta da rua …

E depois?

Depois, … não depois, … passado muito tempo o avô saiu para o quintal, … disse que voltava logo, e nunca mais voltou, … disse e agarrou-se desesperadamente à mãe, … não sei, juro que não sei porque o avô não voltou…

Soltou-se a mãe do abraço agarrado do filho, abriu a porta que dava para o alpendre, pressentindo o pior, e saiu para quintal, fica aqui um instante que já venho, volto já, espera aqui, volto já; mas a angústia abalou ainda mais o rapaz, agora era a mãe que desaparecia e o deixava ainda mais só porque o Don aproveitara  para  saltar para a noite antes que o impedissem.

Momentos depois, o animal ladrava alegria, não se via mas ouvia-se e percebia quem o conhecia, a mensagem do Don; o avô estaria ali algures no quintal, o neto animou-se, agora confiante no tom do sinal da mensagem do companheiro vinda de algures no meio de nada; Pegou na manta, enrolou-se nela, orientado pelo latido, e tropeça aqui, cai ali, levanta-se e a avançar aos tropeções, o quintal nem era plano nem de lã, chegou ao estábulo da Carocha onde, à luz frouxa do lampião, descortinou um potro a tentar equilibrar os primeiros passos na vida perante o olhar orgulhoso do avô, cara e mãos ainda a pingar sangue.

Consegui! mas não foi nada fácil, se me tivesse demorado mais uns instantes não teria conseguido salvar a mãe nem o filho.

É um macho, avô?

É um belo macho, sim senhor, mas este não irá para bifes. É a tua prometida prenda, estará pronto a ser montado e ensinado daqui a menos de um ano. Vem aí a primavera, no verão faremos aqui do quintal um recinto de equitação, assim Deus me ajude.


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