Num país onde a generalidade dos empresários se abriga, ou faz por isso, debaixo do chapéu do Estado, mal seguro pelos procuradores alternantes, Belmiro de Azevedo foi, de longe, a mais evidente excepção. Recusando a participação em jogadas de compadrios partidários, perdeu as propostas que apresentou em cursos de privatização de algumas empresas nacionalizadas em sequência do golpe 11 de Março de 1975.
Se as contas referidas num artigo do Expresso publicado ontem aqui* estão certas, e não tenho nenhum indicação em contrário, os comissários políticos a quem foram dados poderes para defender os interesses do Estado, cometeram erros, e, provavelmente crimes, que prejudicaram os interesses públicos em valores incalculáveis, mas, em qualquer caso, enormíssimos.
Belmiro de Azevedo, ainda assim, por inabilidade ou conivência de quem decidiu ou mandou decidir, ganhou, em três tentativas perdidas, muito dinheiro: cerca de 123 milhões de euros.
Provavelmente, ressabiado, o PCP votou contra o voto de pesar pelo falecimento de Belmiro de Azevedo aprovado na Assembleia da República. Não conseguem os comunistas admitir que o Estado é um ente sem capacidade volitiva e os procuradores mais propensos a defender os seus próprios interesses que o bem comum. E que, lamentavelmente para o país onde nascemos e vivemos, empresários com a dimensão e verticalidade que caracterizaram Belmiro de Azevedo, não se vislumbram, por agora.
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"... Houve um tempo em que na Sonae se gracejava sobre a semelhança entre o jornal “Público” e as privatizações. Com o “Público”, Belmiro perdia dinheiro e ganhava inimigos, com as privatizações ganhava dinheiro e inimigos. Belmiro defendia que um grupo industrial poderoso como a Sonae teria vantagens em controlar um banco. E logo na abertura das privatizações tentou o Totta & Açores mas depressa sentiu que o jogo estava viciado. Recusara uma aliança com o espanhol Banesto que se aproximaria depois de José Roquette. A aliança levou Belmiro a abdicar da luta pelo controlo, vendendo a sua posição a Roquette. Em cinco meses, ganhou 3,4 milhões de contos (€17 milhões) e teve a virtude de arrastar no negócio outros 200 acionistas que lhe permitiram representar 12% do capital. No Totta, não quis “prolongar guerras difíceis” e o banco para ele foi “just another business”.
Desafiado por Elias da Costa, secretário de Estado das Finanças à época (1991), Belmiro entusiasmou-se com o BPA, um dos bancos com que a Sonae lidava. Mas acabaria derrotado, indignado com o árbitro (Eduardo Catroga). No BPA, a batalha foi árdua, Belmiro lutou mesmo pelo seu controlo, beneficiando do apoio de um núcleo duro e da gestão do banco.
Quando, em 1994, o BCP lança uma inesperada OPA parcial sobre o BPA, o Estado tinha 24,5% e o núcleo duro de Belmiro dava sinais de incoerência e vulnerabilidade. Num primeiro momento, Catroga alinha com o núcleo de Belmiro e recusa a OPA. O BCP reincide, com uma segunda oferta sobre a totalidade do capital. Catroga está em últimas exibições, quer resolver o dossiê BPA e maximizar receitas. Aceita a operação, desprezando o compromisso que celebrara com o núcleo do norte para a venda das ações do Estado. Catroga desafia Belmiro a lançar uma OPA concorrente. Belmiro desdobra-se em reuniões em Lisboa, desde o primeiro ministro, Cavaco Silva, ao líder da oposição, António Guterres. A OPA avança e Belmiro perde a batalha. No fim, recebeu €60 milhões pelo lote de 7% com o investimento de perto de €40 milhões. Ainda recorreu a tribunal, exigindo uma indemnização ao Estado (€37,5 milhões) por quebra de compromisso. O juiz reconheceu que o Estado criara legítimas expectativas e violara o compromisso com o núcleo duro, mas que a indemnização não se justificava.
Portucel: a hostilidade de Carlos Tavares
Na Portucel, Belmiro registou o desaire mais doloroso por ter comprometido de vez o seu projeto coerente na fileira florestal. O caso Portucel dava uma novela, com namoros desfeitos, traições e um final inesperado. Belmiro reforçara em bolsa até 30%, aprovou a fusão com a Soporcel de que era acionista e desistira no fim por se sentir hostilizado pelo ministro Carlos Tavares. Por sinal, o mesmo Carlos Tavares que Belmiro defendera para ver a dirigir o BPA, quando alimentava o sonho de comandar o banco.
Também neste caso, a visão do Executivo não se encaixou no plano da Sonae. Belmiro contestou desde o primeiro momento o modelo da operação e rejeitaria um aumento de capital que viabilizaria, em 2003, a entrada, como acionista de referência, do consórcio Cofina/Lecta, selecionado após um concurso lançado pelo Governo. Desautorizado, Belmiro estraga o plano de Tavares por achar que a solução “diluía o valor das participações” dos acionistas. Belmiro pressionou o Governo até ao último momento para rever a estratégia, acreditando numa negociação direta com quem já era acionista relevante. Mas não. Tavares avisa que a solução “não privilegiaria um acionista”. Belmiro declara “não estou vendedor, mas não sou um empata”. Tavares desafiara Belmiro a lançar uma oferta geral sobre a empresa, recusando uma negociação particular da posição do Estado. A Sonae queria um controlo sem grandes despesas e afastou-se do processo. A Portucel seria disputada por dois grupos (Cofina e Semapa) e ganho por quem não tinha currículo no sector — a Semapa, de Pedro Queiroz Pereira.
A Sonae deixaria o negócio do papel com muita pasta (€297 milhões) e um ganho de €86 milhões, o mais suculento das privatizações em que esteve enredado. O desfecho levaria a Sonae a vender no ano seguinte a Gescartão. Sempre que se meteu com o Estado, Belmiro perdeu os negócios mas ganhou na tesouraria. E fez a promessa de nunca mais falar com Carlos Tavares... - aqui
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