Saturday, August 03, 2019

MELANCIAS





MELANCIAS 


O que é que eu posso dizer-lhe sobre Justa?
Somos vizinhos, ou éramos, porque pelo que li no jornal da manhã de hoje ela ainda não tinha sido encontrada e era cada vez mais remota a possibilidade de a encontrarem viva, mas sobre isso os senhores saberiam certamente mais que eu se não se desse o caso de, segundo as notícias deste canal de televisão que as exigências da clientela me obrigam a ter todo o dia aberto, a Justa ter sido encontrada morta há momentos. Enfim, por mais esforçados que sejam os agentes da polícia, as notícias dos repórteres chegam-nos à velocidade da luz, e, quero acreditar que os senhores guardas ainda não conhecem as últimas sobre o caso que aqui vos trouxe e que ouvi agora mesmo.


Pago-lhe renda há muitos anos por este espaço, ela mora, morava, por cima, é, era, também a minha cliente mais assídua, tomava aqui todas as refeições desde que ficou viúva.
Vivia no primeiro andar deste prédio de cinco andares, que, aliás, lhe pertencia na totalidade, agora não sei a quem vai pertencer. Foi construído pelo pai, que era empreiteiro, um homem simples, iniciou-se na profissão como trolha e fez uma fortuna considerável, teve quatro filhos, dois homens, duas mulheres, a Justa, a mais velha, herdou este prédio, os irmãos ficaram com outros, preferiu ficar no primeiro andar por não gostar de morar em andares altos. Casou-se com o engenheiro das obras que o pai construiu, mas não tiveram filhos. O engenheiro sofria de problemas respiratórios, nos últimos anos de vida tinha dificuldades em caminhar, faleceu há uns cinco anos, ou mais, o tempo foge-nos, não é?
Quando o engenheiro ainda era vivo, saíam os dois, normalmente dia sim, dia não, no Ford Sierra, que agora terá uns vinte e cinco anos, não menos, almoçavam fora, teriam levado uma vida regalada se ao homem, que nunca fumara, não tivesse calhado o azar de uma insuficiência pulmonar grave. Era, ou tornara-se, uma pessoa reservada, nunca se ouviu qualquer desentendimento entre eles, apesar de alguns caprichos, chamemos-lhes assim, da Justa. Ambos tinham carta de condução mas a Justa nunca conduzia. Estrada fora, a Justa queria ter toda a atenção disponível para ver a paisagem e observar o trânsito. Se havia carro parado na berma ou vislumbrava ao longe cenário de acidente pedia ao marido para abrandar e parar uma dezena de metros depois. Abria a porta e saía desenfreada para o local do acidente. Era uma tara?
Só podia ser uma tara, penso eu, porque, não sendo médica nem enfermeira, nem prática de primeiros socorros, não resistia a observar de perto se havia sangue, osso partido, traumatismo craniano, ou, na pior das hipóteses, alguém já cobrira com uma manta os cadáveres. Em qualquer caso, nunca saía do local do acidente sem as informações mais detalhadas que conseguia espremer de quem estivesse junto dos acidentados. E, à socapa, fotografava o que via. Uma vez, na pesca da fotografia, foi surpreendida por um agente da polícia e ficou sem a máquina e o registo de situações anteriores. Nunca a vi tão transtornada quando viu recusados todos os pedidos e empenhos que colocou na recuperação da sua Super Canon.
Enquanto esperava que Justa visse o que queria ver, o engenheiro entretinha-se com um caderno de charadas que trazia sempre consigo para relaxar a irritação que lhe causavam as ânsias da Justa pela visão dos desastres, que intimamente considerava absurdas.
Depois da morte do marido, Justa empederniu, nunca mais tomou qualquer refeição em casa. De manhã, mal este café abre, entrava a Justa, macambúzia, nem bom dia nem boa tarde, sentava-se na primeira mesa voltada para a televisão. Conhecia-lhe os hábitos e as exigências há anos sem conta, logo que abro a porta ligo o televisor sempre sintonizado no canal que chega quase sempre aos locais dos acontecimentos antes de eles terem acontecido. Justa salivava-se com as facadas ou os tiros nos bairros onde reina a marginalidade, com as rusgas no encalço do tráfico de drogas, com crimes passionais, com violência doméstica, com assaltos nos comboios, com as imagens intermináveis dos incêndios.

A beber as notícias da televisão, mastigava lentamente o pão com uma fatia de queijo flamengo e sorvia em goles compassados e distraídos o copo de café com leite que lhe colocava à frente. Como as notícias na televisão se repetem duas ou três vezes, Justa depois pegava no jornal, o seu jornal, que já estava à sua espera, e procurava nas notícias impressas aquelas que o seu canal televisivo não transmitira com os detalhes que a notícia escrita oferece. Uma hora depois dava os trabalhos matinais de observação por concluídos e ia a pé até à baixa.
Voltava cerca do meio-dia, geralmente comia o prato do dia, preferia a carne, raramente o peixe, acompanhada de uma salada e um copo de água. Sempre a acompanhar as notícias do canal do costume.
Por volta das duas subia para uma sesta no apartamento, pelas cinco da tarde estava de volta para um bolo seco e um copo de leite, e sempre de olhos postos no canal preferido.
Muitas vezes me perguntei que razões levavam Justa aquela obsessão mórbida pelo visionamento insistente de notícias geralmente trágicas. Nunca lhe perguntei nem directa nem por portas travessas com receio de a magoar, mas mil e uma vezes ensaiei a recomendação de consultar alguém, um psicólogo, um psiquiatra, um psiquiatra, não, porque pensaria que a considerava doida, com quem dialogasse e lhe restabelecesse pelo menos parte do equilíbrio emocional perdido, mas desisti sempre. E desisti porque outra questão se me colocava: a Justa, sozinha na vida, sem companheiro, nem cão nem gato, parecia compensar as suas depressões ou angústias com a visão de situações, pelo menos aparentemente, muito mais deprimentes que a sua. Mas, os outros?
Abro o canal preferido da Justa, a Justa saía e, se mudava de canal, quem entrava pedia, quando não exigia, que repusesse a transmissão no canal preferido pela clientela. Estão todos doidos? Os jornais, televisivos ou impressos fazem, salvo algumas excepções, manchete ou notícia de abertura, dos incêndios no verão, das inundações em qualquer estação do ano, dos crimes aqui ao pé da porta ou em cascos-de-rolha porque não há dia nem hora em que uma desgraça comestível não nos entre em casa vinda de um qualquer lugar do mundo. Digo desgraça comestível porque, não só a Justa, mas a generalidade dos consumidores de imagens televisivas, acompanham as refeições com as notícias trágicas acabadas de chegar às redacções.

O Ford Sierra estava sempre estacionado à porta, Justa não se aventurava a conduzi-lo ainda que tivesse carta de condução sempre revalidada a tempo. De vez em quando pedia-me que desse ao carro meia dúzia de voltas nas redondezas para lhe sustentar a bateria e desemperrar-lhe a mecânica, ela ficava  de guarda  ao lugar transitoriamente vago não fosse alguém tirar-lhe o espaço de estacionamento. Do aspecto exterior ocupava-se ela, lavava limpava, puxava-lhe pelo brilho, ninguém dá ao Sierra a idade que ele tem.
Por que é que não toma umas lições de refrescamento dos hábitos de condução e vai por essas estradas fora, se lhe apetecer? Justa ouvia, calava-se e suspirava recordando os tempos em que tinha motorista privativo a quem dava ordens de parar, o carro parava e ela saltava para ver e fotografar os acidentes na estrada. Agora temia-se mas prometia rever a matéria dada e tomar meia dúzia de lições práticas.


Há cinco dias que o Ford Sierra desapareceu do seu aparcamento privativo e Justa, pela primeira vez em tantos anos, deixou de comparecer para as refeições acompanhadas das notícias que, por qualquer motivo, lhe enchiam o dia.
Anteontem, de manhã, preocupado, liguei para a polícia, não sei se foi algum dos senhores que me atendeu, a dar-lhes conta de uma situação que, para mim, era uma anormalidade inquietante. Que idade tem a senhora? A mesma que a minha, sessenta e seis. Sabe qual é a matrícula do carro? Evidentemente. Disse que era um Ford Sierra? Isso mesmo. Já deve ser muito velho. É mesmo velho, sim senhor, mas, ultimamente, tem andado pouco, tem sido bem tratado, ninguém lhe dá a idade que tem. Pois não temos notícia de qualquer ocorrência ou acidente com a viatura que refere. Tão pouco temos notícias de entrada nos hospitais de alguém ferido com o nome que indicou. Vamos esperar mais dois dias e vai ver que a sua amiga reaparece. Sosseguei. Mas à noite não consegui dormir. Algum pressentimento de que algo acontecera a Justa que não poderia ser bom, impedia-me de pregar olho.
Parece que adivinhava: Hoje de manhã, entro e ligo o canal dos desastres e o que ouço, todo o mundo ouviu, os senhores talvez não tenham ouvido porque vinham a caminho, fez-me cambalear obrigando-me a sentar até entrar o primeiro cliente da manhã.
A notícia estava, como é prática corrente nestes casos, a ser transmitida pela enésima vez: O Ford Fiesta tinha sido localizado estacionado na berma de uma estrada à beira de uma ravina que cai abruptamente até ao rio que corre a uns cem metros abaixo do nível da estrada. Junto ao Ford Fiesta, sem qualquer sinal de colisão, estava em avançado estado de degradação um monte de melancias. Alguém deve ter, finalmente, observado, ao fim de três, quatro, cinco dias?, de trânsito intenso, que algo de anormal teria ocorrido ali. Saiu, como teria saído Justa, e olhou para baixo. Pela ravina abaixo tinham-se prendido na vegetação rasteira as melancias transportadas por um camião descontrolado parado na queda por uns salgueiros junto ao rio.
O motorista, admitiam as autoridades quando abri o televisor, devia ter sido projectado e, muito provavelmente, teria caído no rio. Não tinha ainda sido encontrado. Quanto a Justa, na sua ânsia de ver e fotografar acidentes, por não ter resistido à curiosidade, tentou descer a ravina até ao rio e era também muito provável que tivesse resvalado para o rio.
Há momentos, antes dos senhores chegarem, chega-nos a notícia em directo de que os corpos foram encontrados juntos, a cem metros a jusante do local da queda, retidos por vegetação que avança pelo rio dentro nesta época mais seca do ano.
Encontraram a máquina da Justa a meio da ravina. Há várias fotos tiradas nesse dia, numa das imagens, percebe-se que foi tirada a uns duzentos metros do local, e parece a foto de um monte de carne e sangue. Na seguinte a objectiva está virada para a ravina e a imagem mostra a um rasto de sangue na paisagem em direcção ao rio. Depois, mais nada.
Justa conduzia sozinha, pela primeira vez depois de muitos anos. Terá passado no local com a atenção concentrada na estrada e no trânsito e visto de relance o que acreditou ser um monte de cabeças ensanguentadas. Parou o carro, saiu para uma primeira imagem à distância, e só quando recuou para se aproximar do monte ensanguentado constatou que uma camioneta carregada de melancias teria resvalado, há muito pouco tempo, porque as melancias rachadas estavam frescas, e no tombo algumas ficaram na berma e o grosso da carga espalhara-se ao longo da queda do veículo que as transportava. Talvez desiludida com a ilusão óptica que as melancias lhe haviam provocado, procurou tirar partido do erro inicial e fotografar o fim
da tragédia. E, involuntariamente, matou-se.  

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