Entrou, tropeçou numa
caixa desarrumada à entrada da porta, e só não se estatelou porque conseguiu
segurar-se ao balcão e dar de frente com o comerciante que rodara do arrumo de
uma prateleira para olhar pasmado o desequilíbrio da cliente.
- Não ouviu o estrondo?,
perguntou ela, assustada, enquanto se reequilibrava.
- Estrondo?,
respondeu ele, com interrogação prolongada. Não ... não dei por nada. Desculpe
ter deixado ali a caixa ... Não se magoou, não?, disse com displicência
enquanto arrumava a caixa.
- Não, não ...
segurei-me a tempo ...
Comprou meia dúzia de
alperces, pagou, e perguntou, quando o comerciante lhe dava o troco:
- Ainda mora gente
naquela moradia da esquina?
- Mora, mora ...,
Moram lá o doutora e o senhor engenheiro com os filhos ... , respondeu o
comerciante em tom evasivo.
Ainda assim, ela
insistiu:
- Sabe, por acaso, se
eles estão cá este fim-de-semana?
- Por acaso sei que
não estão. A doutora esteve aqui ontem de manhã a comprar fruta para levar para
a viagem. Foram para o norte, para um casamento.
- Pois, agora mesmo,
quando rodei o carro para entrar na rua, assustei-me com um estrondo vindo do
lado daquela casa e ainda vi, pelo retrovisor, escapar-se pela direita, pelo
passeio da avenida, um homem, seguido de um rapaz com um cão pela trela.
Estacionei logo que pude, e vi, vê-se daqui, que há uma janela arrombada, e
muitos vidros no chão.
O merceeiro tinha-se,
entretanto, voltado de costas a continuar a arrumação da prateleira da fruta e
manteve-se calado. Beatriz, que tinha entrado perplexa com a cena a que tinha
assistido momentos antes, ficou intrigada com a indiferença do merceeiro, pegou
no saco das compras, boa tarde!, e saiu.
Naquela moradia antiga, exteriormente degradada, situada numa esquina de uma das avenidas de saída da cidade, a entrada estava voltada para a rua da loja onde Beatriz comprava habitualmente frutas. Àquela hora de fim de tarde de um sábado quente, a
rua habitualmente pouco movimentada, estava deserta, e na avenida passava uma
ou outra viatura apressada. Beatriz vivia do outro lado do quarteirão.
Antes de entrar na loja, tinha atravessado para o outro lado da rua, descido
até junto da moradia, olhou para os vidros partidos na janela e no chão, deu
uma espreitadela para onde tinham desaparecido o homem, o garoto e o cão, e já
não viu nenhum deles. De dentro da moradia não ouviu sair qualquer sinal de vida,
por detrás das vidraças as portadas de madeira pareciam fechadas, a quietude do
lugar tinha apenas estremecido por breves instantes com o estilhaçar das
vidraças.
De volta a casa,
acompanhou-a, mais do que a recordação do susto do estilhaçar dos vidros, a
intriga que o tom da resposta do homem da loja lhe provocara e a tentativa de
descortinar razões para a displicência dele perante a informação que ela lhe
transmitira.
Um casal ausenta-se
para o norte, leva os filhos, não fica ninguém em casa, o lojista é informado
disso pela cliente, moradora na casa, ouve-se um estrondo, um estilhaçar de
vidros, a cinquenta metros de distância, se tanto, e o lojista não ouviu nada?
Mas se não ouviu o estrondo, por que fez que não ouviu o que ela lhe
disse?
Com a janela partida,
o mais provável é que a casa seja arrombada esta noite? Talvez não. Os vidros
estão partidos mas as portadas pareciam fechadas. Por outro lado, quem quer
assaltar uma casa não escolhe uma hora do dia, ainda que de um sábado à tarde,
para partir as vidraças de uma janela da frente com uma pedra e um senhor
estrondo. Quem quiser entrar sorrateiramente, entra pelas traseiras, não quebra
as vidros com um pedregulho, corta-os com uma ponta de diamante,
silenciosamente, sem deixar suspeitas no chão nem atrair as atenções de quem
passa ou vive por perto. Hoje em dia, o instinto de solidariedade da vizinhança
apagou-se com a deslocação das populações para os centros urbanos. Quem é que
conhece os vizinhos que habitam no mesmo prédio de apartamentos? Sobe-se e
desce-se no elevador, os olhos pregados no tecto ou no chão, muitas vezes nem
bom dia nem boa tarde. Quem é que mexe uma palha ou pega no telefone se um
alarme dispara num dos edifícios mais próximos ou num automóvel
estacionado por perto? Vive-se em regime de vizinhança clandestina, vão longe
os tempos em que todos se conheciam, o mundo agora é uma aldeia de tocas.
Quando chegou a casa,
Beatriz já tinha decidido que telefonaria para a polícia.
A dizer o quê,
Beatriz? Que ouviste um estrondo quando entravas na rua vinda da avenida, que
te apercebeste pelo retrovisor que um homem e um garoto com um cão pela trela
se escapavam à tua visão dando a volta pela direita à moradia de esquina e que,
confirmaste logo depois, uma das janelas da frente tinha sido partida e que
havia vidros caídos no chão? Que esperas que a polícia faça? Que envie ao local
uma patrulha para confirmar a tua informação ou te convoque para compareceres
no posto a prestar declarações por escrito? Quem, para partir a janela,
provocou um estrondo daqueles, precisamente na altura em que alguém, por acaso,
tu, passava na rua de automóvel, e depois fugiu, vai voltar ao local do crime?
Ninguém. Considerando as declarações que possas prestar o mais provável é que a
vandalização tenha sido gratuita, sem racional subjacente, provocada por
indivíduo sem tino, ou por represália ou vingança de alguém que não tens
qualquer possibilidade de dar indicações de identificação minimamente precisas.
E o alheamento do comerciante só reforça o argumento de que, nos tempos que
correm, o melhor que tens a fazer é andar e ignorar. Se telefonas à polícia
arriscas-te a ser convocada vezes sem conta, com perdas de tempo para ti
e sem proveito para alguém. Esquece.
Mas o diabo da
consciência continuou a inquietar Beatriz.
Não lhe tinha dito
uma amiga, há já algum tempo, que tinha uma colega de emprego que residia no
bairro em que Beatriz habitava? E, se a memória não lhe falhava, que a tal
colega morava numa vivenda antiga, de aspecto degradado, na esquina daquela rua
com a avenida? E que estava, nessa altura, a construir casa em urbanização de
luxo nos arredores da cidade? Que a casa velha era arrendada, renda antiga, a
colega tinha vivido lá sempre com os pais, e, depois, com o marido e os filhos?
E que, a casa era velha, mas o recheio valiosíssimo, mobiliário antigo,
requintado, quilos de pratas à vista, tinha-lhe dito amiga que um dia
tinha sido convidada, ela e o marido, para um jantar lá em casa? Telefonou à
amiga.
Que confirmou que o
casal continuava a habitar a velha moradia, a renda era muito baixa, não
contavam entregar a casa enquanto o proprietário não lhes oferecesse uma
indemnização satisfatória. Entretanto, dispunham de um espaço habitável, apesar
do mau aspecto exterior do imóvel, no centro da cidade, onde manteriam a maior
parte do mobiliário e algum recheio, tudo o que não se coadunasse com o estilo
contemporâneo da casa para onde estavam agora em mudanças. Mudanças que, aliás,
cabiam na carrinha do homem da fruta, que se oferecera para fazer o transporte.
Do mobiliário, não mais que duas ou três peças, a dar um toque de classicismo
num ambiente modernista. O resto eram roupas, louças, e nem todas. As pratas?
Ah! As pratas não iriam ficar na casa antiga. Nem pensar. Se alguém está a
tramar um assalto à moradia antiga não vai fazer grande colheita. Os móveis são
pesados e tudo o resto também não são coisas que os larápios procurem. Em todo
o caso, acho que a polícia deveria ser avisada, se não conseguir falar com
ela.
Tentou telefonar mas
ninguém atendeu. Deixou mensagem a informar o que se passara poucas horas antes
e que iriam avisar a polícia.
Beatriz não
telefonou, foi ao posto da polícia mais próximo dar conta do que tinha ouvido e
visto.
O agente que a
atendeu, um quarentão anafado pela imobilidade da função, dactilografou o
depoimento com evidente enfado, não disse mas percebeu-se, casos daqueles
entravam ali como formigas no formigueiro. No fim, a perguntou habitual, tem
mais alguma coisa a acrescentar? Não, não tinha, disse Beatriz como se
perguntasse, o que é que seria esperável que dissesse mais? O agente
entendeu-lhe a dúvida no tom da resposta e perguntou-lhe, enquanto lhe dava o
depoimento para assinar, se, vivendo ela nas proximidades, tinha sido aquela a
primeira vez que tinha visto por ali um homem e um rapaz a passearem um cão.
Não, Beatriz nunca tinha reparado, o tempo anda sempre a fugir-lhe, é casa,
emprego, casa, emprego, sai e regressa sempre mais tarde para reparar no que se
passa na rua. Pois muito bem, rematou o agente, assine onde está essa cruz. É
tudo? A senhora disse que sim, que é tudo, não me compete a mim acrescentar
seja o que for. Perguntei-lhe se, antes, nunca tinha visto aquele trio, porque,
normalmente, quem passeia um cão passeia-o no bairro em que habita. Só por
isso.
Na manhã de
segunda-feira, Beatriz telefonou à amiga logo que chegou ao escritório. Diz-me
uma coisa, tu que conheces bem a tua colega, e o marido, e os filhos, e o cão,
como é que os descreverias se tivesses que o relatar a um agente da polícia?
Pergunto isto porque, conforme sugeriste, fui ao posto, disse o que tinha
visto, mas na descrição dos personagens não podia ir além de um esboço
impreciso. No fim, já depois do depoimento, pergunta-me o agente se eu nunca
tinha visto aquele trio por ali, uma vez que resido perto. Disse-lhe que não me
recordo, ando sempre atrás do tempo, conheço pouca gente no bairro, vejo por
ali muita gente, mas não reparo, não tenho tempo para reparar ou conversar seja
com quem for. Penso que se passa o mesmo com as outras pessoas com quem me
cruzo na rua ou que só vejo de relance quando saio ou entro de carro. E, foi
então, que o polícia chamou a minha atenção para uma circunstância elementar
que não me tinha ocorrido. O trio que eu vi de relance é, muito provavelmente,
o engenheiro, marido da tua colega, o filho e o cão. Ninguém passeia o cão
longe do local onde habita.
- Mas o homem do lugar
de frutas e legumes não te disse que eles foram durante o fim-se-semana para o
norte?
- Dizer, é uma coisa …
Diz-me como é ele, o engenheiro, o filho, um deles, os dois, como é o cão?
- O engenheiro tem
agora cinquenta anos, é alto e forte, mas não gordo, os filhos, o mais velho
tem vinte, penso que estuda no estrangeiro, o mais novo terá uns sete, talvez, mas
parece ter mais, há uma diferença de oito anos entre os dois, isso eu sei, o
cão é um cão grande, um pastor alemão, se bem me recordo, castanho, mesclado de
preto, mais escuro nas costas, mais claro para baixo.
- Bate certo com o esboço
que consegui reter e transmitir ao polícia.
- Não posso crer …
- Em quê?
- Naquilo que estás a
pensar.
- Ah! Já chegaste
onde eu cheguei. És mais rápida que eu. Levei o domingo a pensar na observação que
o polícia me fez.
- Não posso crer … São
gente bem. Ela é agora vogal do conselho de administração, era directora dos
serviços jurídicos, foi promovida há pouco tempo, ele é director de serviços na
Câmara, além de que ela foi herdeira única de uma fortuna, têm rendimentos
elevados … por que razão iriam simular um assalto para receber uma indemnização
da seguradora? se é nisso que estás a pensar. E por quanto? Pelo valor das
pratas? São muitas mas a prata não vale assim tanto.
- Que sabes tu da fome que a gente bem tem de fortuna?
- E depois, nunca mais
poderiam expor as pratas. Tudo se sabe, vivemos numa aldeia …
- De tocas.
- De quê?
- Vivemos em buracos.
Ninguém sabe nada nem quer saber da vizinhança. Para onde vão agora viver, os
convidados pouco saberão deles e, sobretudo, ninguém ousará pensar mal de gente
bem. Ou, se pensam, dão-lhes, implicitamente, as boas vindas ao clube.
- Acredito que acertaste. Sabes porquê?
- Diz.
- Cruzei-me com ela há uma hora, se tanto, no corredor. Não lhe saiu mais que um bom dia, tão seco que nunca lhe tinha ouvido outro tão seco.
- E não lhe falaste da mensagem que deixaste no telefone?
- Nem tive tempo. Mas não é difícil adivinhar que diria que não costuma ouvir as mensagens deixadas no telefone de casa.