(Ao Artur M., que me contou uma história diferente)
Estávamos sentados no alpendre voltado para o quintal da casa a olhar
a chegada da primavera a pintar-se no pomar e no jardim que o Tio plantou ali
desde quando, há anos sem conta, ele e a Tia se mudaram para lá. Para
acompanhar a conversa a Tia tinha fervido água e, com duas rodelas de limão e
uma torrada de um papo-seco, tínhamos um chá quentinho para toda a tarde. E
senti que a tranquilidade da tarde musicada pela passarada e pelas abelhas a compor
aquele quadro, era, para além da minha presença, o melhor lenitivo para a
amargura que a despedida inesperada do Tio tinha deixado na alma da Tia. O que
é a alma Tia?, perguntara-lhe, um dia, era ainda garoto. A alma é o que sentimos,
se sentimos temos alma, estás a ver? E os animais, têm alma? Pois claro que
têm. Todos os seres vivos têm alma, menino. As flores também? Aí, a Tia tinha
desviado a conversa. Não os via há três anos, tinha cancelado todos os compromissos
para poder estar ali com ela, ainda que os tempos da viagem e os atrasos nas
ligações de voos me tenham obrigado a chegar atrasado à despedida do Tio.
Aqueles tios, sem filhos, tinham-nos adoptado, a mim e ao meu irmão, seis anos
mais novo que eu, quando o pai e a mãe desapareceram num acidente de viação. Na
falta de filhos, a Tia tinha dado lar aos instintos maternais rodeando-se de
uma prole zoológica mesmo antes de nós, os sobrinhos, termos passado a viver
com eles. Cães, tinha dois, vadios, recolhidos na rua, sem raça definida mas
com atitude bastante para a Tia garantir que eram setters irlandeses, com pedigree,
nunca se preocupara em confirmar-lhe a linhagem, três gatas e três gatos, uma galinha,
a Virgínia, e um coelho branco, o Pimpão. Para além deste quadro permanente, o
zoo doméstico contava regularmente com convidados ou seguidores do efectivo
privado, aos quais a Tia dedicava igual carinho e distribuía o mesmo
sustento.
A
partida do Tio foi, para mim, e para o meu irmão, que deve chegar aqui ainda
esta tarde, inesperada, as notícias de que nos ia dando conta nos últimos
tempos não referiam qualquer preocupação com a sua saúde, mas dizia-se inquieto
com o comportamento da Tia que, palavras suas, não ia andando bem, sem adiantar
mais. Quando se reformou, passou a dedicar a maior parte do seu tempo à horta e ao jardim. Dizia ele, que era dos serviços
externos, e ela, dos internos, e que se davam bem com a partilha. Dez
anos mais novo que a mulher, tinham-se conhecido quando o Tio, que era polícia,
durante um serviço de ronda ao quarteirão, conseguira apanhar um gatito, que ela
mimava no colo, dera um salto para a rua. Entre ambos tinham os anos estabelecido um acordo implícito,
nem a Tia questionava o Tio sobre as suas actividades, incluindo as deslocações
ao exterior, expressão dele para almoços com amigos e antigos colegas na
esquadra, nem ele reparava na dimensão e no crescimento do zoo nem dava sinais de pouco
satisfeito com a liberdade concedida aos bichos em todos os cantos da casa. Quando
não vagueavam pelo quintal ou pelas redondezas, sem que a Tia receasse
contactos exteriores que lhes arruinassem o pedigree, os caninos sentavam-se em
imobilidade de porcelana esfíngica neste alpendre onde discorro com a Tia
temas triviais ao mesmo tempo que se me desfilam na memória estas
recordações. Os gatos, quando não estavam por fora, deambulavam preguiçosamente
pela casa ronronando à volta dos passos da Tia, a Virgínia, quando não debicava
no quintal, a testar os limites da pachorra do Tio, ensaiava tentativas em voos
frustrados para saltar o muro que dava para o quintal vizinho onde cantava um
galo. Mas era o coelho branco, enorme de velho, sempre enrolado nos braços da
Tia, que desfrutava o calor do carinho dela. De ver, durante os anos em que
vivemos nesta casa, aquela quase umbilicalidade com o bicho, insinuou-se-nos, a mim e ao meu
irmão, a ideia de que coelho cozinhado era petisco para antropófagos. Estava o desfile das minhas recordações neste ponto e a conversa numa discreta lisonja minha sobre o bom
aspecto da Tia, não me queixo da aparência, disse ela, estou cada vez mais
gorda, mas agora é tarde para voltar ao que era, quando, a rodar o corpo para se
voltar para trás, chamou, Oh!, Olegário, traz-nos mais um pouco de açúcar, este
limão assim é uma amargura. Não veio o açúcar nem o Olegário, a conversa
continuou como se aquele parêntesis sem sentido não tivesse acontecido, mas o
insólito bloqueou-me por instantes o fluir das recordações. E, só então, dei
conta que, desde que chegara não vira cão nem gato em casa, nem galinha no
quintal, nem sombra do Pimpão no regaço espaçoso da Tia. Por um momento ínfimo,
assaltou-me a dúvida óbvia, felizmente ultrapassada em velocidade por um
relâmpago de clarividência, e repôs-se-me na mente a projecção do passado,
agora sobressaltado pela entrada de um Olegário desconhecido. `
Aquela
casa, mais do que um zoo, era uma maternidade zoológica, só não procriavam o
Tio e Tia por razões desconhecidas, a Virgínia por falta de golpe de asa, o
Pimpão por não sair do colo da Tia. Cães e gatos cresciam e multiplicavam-se, a
Tia continuava a usar o processo com que encontrara o Tio para fazer chegar a
cada lar do lugar exemplares com raça garantida pela supervisão da criadora. À
noite dormiam todos no mesmo quarto: na cama, o Pimpão, os tios e os gatos, aos pés da
cama os caninos, a Virgínia empoleirada no alçado traseiro da cama. Ao fim de
duas horas, estavam as divagações a mostrar cansaço, quando entrou em casa o
meu irmão. Já não nos víamos há anos, estávamos ambos na mesma, reconhecemos
com recíproca falta de verdade, ele, por residir mais próximo que eu, visitava
os tios com alguma frequência, uma vez por ano, às vezes duas. Ao rosto da Tia
veio a felicidade, logo traduzida em lágrimas de contentamento, de ver
novamente juntos os sobrinhos. Durante as nossas duas horas de conversa, ela
não recordou o Tio e eu evitei tocar, mesmo que de passagem, no súbito
acontecimento que nos roubara o Tio. Chegado o meu irmão, nas conversas agora
trocadas a três, a morte do Tio continuou ausente.
Sabes
quem é um tal Olegário, perguntei ao meu irmão quando a Tia se levantou para,
disse ela em tom de confidência, ir começar a fazer o jantarinho para os seus
meninos. Olegário? Ah! Tu não sabias?
O
Olegário foi o primeiro marido da Tia. Morreu de tifo por ingestão de uns
tremoços que ela tinha comprado na praça. E, ela, não comeu? Não, ela nunca
gostou de tremoços. Já agora, esclarece-me mais uma coisa: da última vez que cá
estive, a casa continuava a ser o zoo em que ambos tínhamos vivido. Hoje, não
resta nenhum exemplar, porquê?
Resta
um, respondeu ele, suponho que ainda reste o Pimpão, os outros foram
desaparecendo por força da idade e destrambelhamento do siso da Tia. Não te
apercebeste disso? Sim, quando ela chamou pelo Olegário. Está sempre a chamar pelo
Olegário, desde há
algum tempo … o Tio nunca te disse nada? Disse, disse vagamente, dizia que ela
não ia andando bem, só isso. E, não andando ela bem, começou ele também a dar
de lado. Sempre foi pequeno e magro, mas, ultimamente, definhava enquanto ela
enlouquecia e engordava. As coisas precipitaram-se quando, certo dia, aqui há
dois anos, mais ou menos, ela encontrou na rua um gato abandonado, com um
inchaço enorme na cabeça. De quem era o bichano, ninguém sabia nem queria
saber. Ninguém, salvo ela. Levou o animal ao veterinário, foi examinado, com
todos os meios complementares de diagnóstico disponíveis, o caso era grave, vai
custar-lhe caro minha senhora, avisou o clínico, responsabiliza-se pela conta?
Com certeza, respondeu ela, e, irmão, foi uma batelada que colocou a
propriedade desta casa em risco, o Tio foi obrigado a contrair um empréstimo
dando a casa de hipoteca, na volta, ela ficou mais louca e ele gravemente
deprimido. Tanto que, um dia, melhor dizendo, uma noite, agarrou na Virgínia,
que tinha o hábito de cantarolar quando ouvia o galo da vizinha a cantar à meia-noite,
e apertou-lhe o gasganete, e, era uma vez uma galinha chamada Virgínia. Se bem
me recordo, foi a partir dessa altura, ou pouco tempo depois, que só o Pimpão
se manteve sobrevivente. Terá morrido, entretanto, não sei, mas é o mais certo,
de outro modo estaria, como sempre no regaço da Tia. Foi neste momento, precisamente
quando o meu irmão
baixou
a voz para completar a frase que a Tia apareceu, sorridente, de ar
estranhamente jovial para a idade que
tem, para informar os seus meninos, ao
mesmo tempo que tirava o seu avental de cozinheira, que o jantarinho estava pronto.
Adivinhem o que vão jantar?
Adivinhámos
ambos, imediatamente, por ser a mais óbvia, ainda que ao mesmo tempo a mais
insólita, a resposta. Adivinhámos e sentimos ao mesmo tempo um vómito tão sufocante
que nos deixou prostrados por largos instantes que, vá lá saber-se porquê,
provocaram na Tia um histérico ataque de riso que a fulminou de engasgo.
---
-
E o Tio? Sabes de que morreu o Tio?
-
Sufocado.
-
Sufocado, como?
-
Foi esse o resultado da autópsia.
-
O resultado, percebo, mas a causa, qual foi a causa?
-
Inconclusiva.
-
Terá sido ela … que o abafou?
-
É possível.
-
E isso não é crime?
-
Talvez. Mas a criminosa, se foi ela, é claramente inimputável.
No comments:
Post a Comment