Sunday, June 13, 2010

HÉRCULES

Logo que, daquela vez, passou a porta de entrada, viu o avantesma negro ao fundo da sala, junto ao sofá onde costumava sentar-se quando voltava do giro ao longo da praia antes de entrar na casa, à espera da hora de almoço, lendo revistas que o genro trazia da fábrica, pensou, é o gajo! Esteve para dizer, parece um burro, mas conteve-se, e ainda bem, teria estragado o almoço, e logo num dos raros dias em que o tinham convidado para almoçar e a Diana viera passar o fim-de-semana a casa. A sua Diana. A quem lhe perguntasse pela família respondia que a Diana estava bem, mas via-a cada vez menos, andava sempre por fora, coisas da Universidade, sabes como é.

Deu dois passos em direcção à sala, o olhar encadeado por aquele monte negro que já conhecia de nome. A Diana não lhe falava ultimamente noutra coisa. Nem lhe perguntava pela saúde abalada, pelos morangos, que ele criava e ela adorava, pelas cerejas, pelos melros que as comeriam todas se ele não tivesse engenho para os afastar,  pelos damascos, pelos dióspiros, pelas tangerinas e laranjas, pelas framboesas, a suprema delícia. Mal começava, atravessava-se o monstro entre eles. Fazia que ouvia mas, a ouvi-la regalar-se a relatar histórias sem sentido do mastodonte, doiam-lhe ainda mais as costas que o costume. Mas aguentava a parada, que remédio, não ia amolgar o único elo sólido que lhe sobrava na vida.

E agora ali estava diante daquela bisarma, que era o encanto da Diana, um mostrengo, uma coisa medonha sem jeito nenhum, mas tinha de afirmar o contrário.
- É o Hércules, avô, já te tinha falado nele. Não é tão querido?
- É, é, disse à medida que se aproximava do sofá, mas o gajo, há medida que ele avançava, recuava e estirava-se de um lado ao outro sem lhe conceder um palmo de assento. Sacana! Pensou, tão intensamente que ficou preocupado se não teria sido ouvido. Voltou-se, disfarçou o incómodo com um sorriso, ainda à procura de equilíbrio nas palavras e de um estupor de um banco para se sentar.
- Vá lá, senta-te aqui, disse-lhe a filha, que lhe trouxera uma cadeira da sala ao lado.
Sentou-se, e pôs-se a olhar o Hércules tentando descortinar o que havia naquele monstro para além da anormalidade de um corpo pouco próprio para a sua espécie.
- Avô, é um Grand Danois.
- Ah! Pegou uma revista, folheou distraído e logo que a filha passou perto perguntou-lhe em voz baixa para Diana não ouvir:
- Morde?
- Que disparate, avô! (Diana, afinal, estava por perto). Os Grand Danois são bons gigantes, dóceis, civilizados…
- Quantos anos tem?, perguntou para mostrar que estava convencido e interessado.
- Só dois, mas não vai crescer mais, descansa. Já atingiu o tamanho adulto.
- E quanto pesa?
- Sessenta quilos. Tem o peso ideal para o corpo que tem.
Pesava o mesmo que ele pesava, agora que o estado do corpo o obrigara a dieta. Gostaria de perguntar que préstimo tinha uma coisa daquelas em casa se nem para morder quem quisesse assaltar a casa servia. Mas passou à frente.
- E quantos anos vive? perguntou, mas já estava arrependido da pergunta a meio dela, ao olhar o olhar deprimido da neta, um olhar de quem se confrontava pela primeira vez com a mortalidade do Hércules.
Na idade dele, há muito tempo que se perdeu a imortalidade que na juventude dá sentido à vida, e ele esqueceu-se disso.
- Cerca de oito, disse ela, triste, mas pode chegar aos doze...
Sentiu-se angustiado com a tortura que, desastradamente, tinha provocado à neta. Tanto que, a partir dali, sempre que a encontrava ou lhe telefonava, começava pelo Hércules.
- O Hércules, como é que tem passado o Hércules? E Diana emocionava-se com a transformação que o Hércules fora capaz de incutir na empedernida sensibilidade do avô, sedimentada no pragmatismo que o instinto de sobrevivência sempre lhe impusera.
- O Hércules está óptimo, avô. E voltava a contar-lhe tim-tim-por-tim-tim o dia a dia do Hércules. Ficou a saber que o Hércules tinha veterinário, não se pode dizer, de família, mas a ideia era a mesma, fazia regularmente o seu check-up, todas as vacinas em dia, ia ao salão de cuidados de higiene regularmente, de manhã, a filha antes de sair para o colégio, dava-lhe uma passeata junto ao mar, à tarde, estava incumbido do passeio o engenheiro. A comida era especial, o avô não sabia mas um cão hoje em dia não se alimenta com os restos do almoço.
Um dia, desastradamente, para ser simpático meteu uns ossos do frango que tinha almoçado e deu-os ao tipo. Ia morrendo engasgado. Encheram-no de mimos logo que lhe tiraram o osso atravessado. Um felizardo, enfim, aquele Hércules, porque restos do almoço era a sua ementa do jantar, pensava e calava o avô. E quando dava o seu passeio tinha de o fazer sozinho.
Que diabo de vantagem teria o safado para ter direito a cama, mesa e roupa lavada, um monte de pele preta incapaz de fazer fosse o que fosse? Não descortinava por mais que puxasse pelas mininges.
A ele, que apesar da idade, ainda era capaz de fazer um sem número de coisas úteis em casa ou fora dela, ninguém convidava a viver ali, ninguém o acompanhava num passeio, raramente o acompanhavam ao médico.
A certa altura, tentou telefonar à neta, sem sucesso, durante uma semana inteira, e o coração que já tinha razões de queixa arruinou-se-lhe a ponto de ter de pedir socorro à filha que o levou às urgências do hospital.
- E o Hércules, que tal tem passado, o Hércules, perguntou ele logo que lhe deixaram perguntar qualquer coisa.
- Mal, respondeu a filha, tem de ser operado.
- Operado?
- Operado, sim. Tem um quisto num pulmão, deixou de comer, a Diana levou-o ao veterinário, vai ser operado depois de amanhã. Foi uma semana de arrasar: análises, ecografias, o stress da espera dos resultados, imagina o estado em que ficou a Diana. Não fez outra coisa, não foi à Universidade uma hora sequer.
- Tentei falar-lhe...
- Pois tentaste. Ela deu por isso mas não poude atender o telefone, ou porque estava no consultório do veterinário, ou no laboratório, ou no radiologista, chegava a casa estafada ... Está desesperada, e agora vão ser mais dois dias de arrasar.
- Coitado do Hércules... Viverá mais dois, três anos talvez, não?
- O veterinário garante que pode viver pelo menos mais três.
Calou-se a fazer contas de cabeça. Três anos ... Teria ele mesmo mais três anos de vida?
- Deve ser carote...
- Sabes lá. Custa uma pequena fortuna.
Voltou às comparações, às horas de espera no centro de saúde, aos meses de espera para uma ecografia pelo preço da taxa moderadora.

O malandro safou-se. A Diana telefonou-lhe logo que o Hércules saiu do recobro. Iria imediatamente para casa, estava tudo preparado para o receber na sua condição de convalescente. Deu-lhe os parabéns, e, acreditem, ficou feliz por ela. Mas dormiu mal nessa noite. Ou porque o calor apertara durante o dia e a casa  aquecera mais que lá fora, ou porque o frango do almoço ainda estava por digerir ao jantar, o coração voltou a atormentá-lo e viu-se obrigado a lançar um SOS à filha.
- Estamos no Algarve, pai. Viemos até ao Algarve por uns dias, só voltamos aí daqui a duas semanas. Vou pedir que te enviem aí uma ambulância. Mantem-te calmo, não demoram. Beijinhos.
Vá lá, vá lá. Quem também estaria no Algarve, de férias, era o molengão preto que aquilo não era menino para ficar sozinho em casa, como ele, sem tratador às ordens.
A partir do momento que o malandro entrara lá em casa nunca mais ele tivera oportunidade de entrar no automóvel do genro ou da filha porque, com o velhaco atrás, só sobravam os dois lugares da frente para o casal ou para um deles e a Diana. Na escala de prioridades, ele estava abaixo do cão.
A recordar a preterência a que era votado agudizou-se-lhe a taquicardia e a ansiedade numa roda viva que o deixou quase morto quando a ambulância parou à porta.

Recuperou a consciência umas horas depois no hospital, estava lá Diana, regressada nessa tarde de mais uma estadia no estrangeiro. Animou-se e sussurrou como poude e os aparelhos lhe consentiam:
- O Hércules? Como vai o Hércules.
- Vai óptimo, avô. Recuperou muito bem, já voltou aos passeios, à alimentação normal, agora só tem de voltar ao consultório daqui a duas semanas. Uma visita de rotina, apenas.

Ele levou muito mais tempo a recuperar. Só nos cuidados intensivos, penou uma semana. Sai hoje, sai amanhã, a situação estava estável, diziam-lhe, mas não o deixavam arredar dali. Quando saiu da gaiola, pensou que lhe iam dar alta. Era o davam. E tudo a precisar de cuidados lá em casa: as plantas, as árvores, os animais. Sim, também tinha animais lá em casa, mas tinham préstimo. Até o rafeiro, incumbido de arreganhar os dentes aos intrusos, cumpria a missão como devia, contentava-se com os ossos, tanto que dava ao rabo maravilhado com a delícia.  E, como nem lhe passava pela cabeça o que era um veterinário, nunca adoecia nem podia. Enrijava-se à custa de dormir ao luar e namorava as vizinhas pela calada da noite sem perder o tino do que se passava no território que tinha que defender.

Ao fim de duas semanas de clausura, entre os cuidados intensivos e o ranger dos corpos vizinhos na enfermaria, chegou a filha, e o genro atrás dela.
- Ainda bem chegaste, disse ele antes que ela dissesse qualquer coisa, acho que me vão dar alta hoje ... podes levar-me a casa, não podes?, perguntou ele, desconfiado que o Hércules o obrigasse a chamar um táxi.
- Como se sente, pai?
- Bem. Estou bem. Agora quero é ir para casa.
- Mas, pai ...
- Ah, percebo, não faz mal, chama-se um táxi.
- Não é isso pai, o médico é que nos disse que o pai não pode continuar sózinho em casa ...
Momentâneamente, esqueceu-se das plantas e dos bichos que tinha abandonados há duas semanas, talvez a vizinha tivesse tomado conta deles, e ponderou a hipótese de ficar em casa da filha, por uns dias, mas ...
- E o Hércules?
- O Hércules está bem, está completamente restabelecido. E a Diana recuperou do susto.
Percebeu que ela não tinha entendido a sua dúvida e foi directo ao assunto.
- E onde é que eu fico lá em casa?
- Lá em casa, pai, é difícil ... bem sabe ...estamos todo o dia fora ... e o pai precisa de assistência permanente pelo menos durante uns tempos. Depois volta para casa. Já arranjámos um centro de assistência ... muito bom ... muito bom mesmo.
Ele baixou a cabeça, e emudeceu.

A neta foi visitá-lo daí a uma semana. trazia o Hércules com ela. Encontrou-o sentado numa cadeira de rodas, muito bem cuidado, a barba feita, o cabelo alinhado, a roupa impecável, cabisbaixo.
- As instalações são magníficas, cinco estrelas, não são?, disse ela para o arrancar do torpor a que se remetera.
Nem levantou a cabeça para olhar a neta.
- Não pude vir antes antes, avô, estive fora. Ouves-me?
Respondeu-lhe um estremecimento do corpo incontrolado.
Dirigiu-se a uma assistente que viu ao fundo da sala.
- Nunca fala?
- Nunca falou até agora. Nem com o pessoal nem com as visitas. Mas come. Alimenta-se razoavelmente. Só não fala. De resto, comporta-se normalmente.

Quando se voltou, Diana não queria acreditar no que via. Ao lado do avô, o Hércules contorcia-se mortalmente engasgado com um osso, e ninguém sabia onde o desencantara.

Ele morreria pouco tempo depois.

1 comment:

Anonymous said...

Apreciei!