Tuesday, November 29, 2016

PINTO DA COSTA CEDE IKER CASILLHAS AO BENFICA

Imaginem que a notícia do dia era a decisão do presidente do FC Porto  de cedência gratuita de Iker Casillas ao SL Benfica. E que, para maior pasmo dos leitores, ouvintes ou telespectadores, o sr. Pinto da Costa tinha acrescentado à oferta mais quatro ou cinco jogadores do plantel principal da equipa portista. Ocorreu-me o nome do guarda-redes do FC Porto porque, valha a verdade, desconheço o nome de outros jogadores. Poderia ter imaginado a cedência de Rui Patrício e mais quatro ou cinco leões ao Benfica, ou ao FC Porto, porque, aonde quero chegar, qualquer exemplo, assim ou vice-versa, serve.

Mais irónicos, ou realistas, alguns diriam, se a notícia fosse verdadeira, que o sr. Pinto da Costa demonstraria, mais uma vez, com este inconcebível negócio, uma sagacidade que a idade não atrofia. Pois que se com o Casillas e os outros andam os dragões à deriva, oferecê-los à concorrência seria a melhor jogada de Pinto da Costa nesta temporada.

Imaginem agora que onde se lê (notícia falsa) presidente do FC Porto, ou do Benfica ou do Sporting, se lia presidente do BPI (ou presidente do La Caixa, que es quien tiene más poder). E que (notícia verídica) o BPI cedeu à Caixa Geral de Depósitos, por tempo indeterminado, o seu vice-presidente e mais quatro ou cinco altos quadros do banco. 

Ouço na rádio esta manhã que, mesmo depois de ter o sr. António Domingues e mais uns quantos terem apresentado demissão dos cargos de administradores da Caixa, o líder do partido mais votado, na oposição, insiste em reclamar ao primeiro-ministro explicações para o sucedido.
Não sei se vão deitar mais molho ou a caldeirada já está pronta. Mas a ninguém, minimamente atento, escapou o modo como foi cozinhada.

O que parece escapar a toda a gente, incluindo o líder do partido mais votado, na oposição, é a razão pela qual o sr. Fernando Ulrich, (ou o sr. Gonzalo Gortázar Rotaeche) se dispôs a oferecer à concorrência, aparentemente gratuitamente, quatro ou cinco titulares do seu plantel.
Que agora, sendo eles tão bons como os melhores, serão certamente recebidos de volta a casa de braços abertos.
E o que faria Pinto da Costa?

Sunday, November 27, 2016

ACERCA DA INVENÇÃO DE DEUSES

Morreu Fidel Castro, tinha noventa anos, uma longevidade conquistada à custa de muita sorte a escapar às balas dos que o queriam matar, aos prognósticos médicos e aos rumores que prematuramente o davam como morto. Mas é a natureza quem mais ordena, e ao guerrilheiro estava destinado  não morrer a combater na serra Maestra mas em casa, na cama, a mais provável casualidade que pode ocorrer no termo da vida de cada mortal. Que, até prova em contrário, somos todos, os seres vivos.  

Ontem à noite, não havendo mirabolantes notícias da bola para encantar os que veneram os deuses dos estádios - ainda assim, em rodapé, lia-se que o Ronaldo bisou contra o Gijón -, a morte de Fidel tomou conta de todos os noticiários e comentários televisivos, nos jornais e outros meios comunicacionais. 
Morto, Fidel foi o deus do dia. Do bem e do mal, como é próprio da natureza dos deuses que a condição humana inventa. 

De um lado e do outro do estreito da Flórida, apenas cerca 150 quilómetros a separar o território cubano do extremo sul do território norte-americano, o contraste das reacções ao acontecimento dia não podia ser maior. Enquanto uns, os que fugiram para norte por medo ou oportunidade de melhores condições de vida, rejubilavam estrondosamente, os outros, os que ficaram, por submissão, oportunismo ou convicção ideológica, choravam nas ruas o perecimento do seu bem amado líder.

Haverá luto em Cuba durante nove dias e durante quatro as cinzas do líder endeusado atravessarão a ilha de ponta a ponta para veneração do povo. É, no entanto, muito improvável que o futuro cubano o venha a canonizar apesar desta peregrinação de adoração quase religiosa. Os ventos da história que o absolveu já não sopram de feição as suas cinzas.


Friday, November 25, 2016

RIQUEZA ENVERGONHADA

Aqui próximo da área em que resido há uma propriedade ladeada por um muro alto, talvez quatro metros, laranja ocre, sempre bem cuidado. Visíveis da estrada, tem dois portões, mas só hoje, de relance, quando passei de carro defronte daquela que julgo ser a entrada lateral, percebi que por detrás dos muros da fortaleza se esconde uma majestosa mansão que deve ter sido construída no tempo da outra senhora. Nas proximidades há outros muros longos e altos que devem esconder outras propriedades da mesma geração onde só o google, suponho, é capaz de meter olho míope. 

Não são apenas as fortunas antigas que escondem as residências dos olhares de quem passa. Se há portugueses que exibem, sem complexos de qualquer dimensão, e, talvez, até com orgulho ou demonstração ou presunção de sucesso, as mansões em que habitam, há outros que rodeiam os edifícios de muros tamanhos ou paliçadas de vegetação cerrada. 

A pobreza envergonhada esconde a perda de bens ou rendimentos que a posicionavam em escalão alto ou remediado da sociedade e que se viu privada, por razões diversas, do suporte financeiro que lhe dava prestígio social, apartando-se discretamente da sociedade a que pertenceu. 
Da riqueza envergonhada não se ouve falar. E, no entanto, ela existe e esconde-se, sabe-se lá porquê, em mansões requintadas mas camufladas na paisagem. 

Nos EUA, e em geral nos países do norte da Europa, os proprietários de moradias, desde as mais grandiosas às mais discretas, não as escondem e percebe-se até a intenção de as fazer participar no prestígio dos locais em que se situam. Por cá, os muros escondem a beleza de muita riqueza estética que o conjunto poderia, sem perda de valor para os proprietários, dar ao meio em que se insere.
Há pudor neste recolhimento de alguns muito ricos, simétrico daquele que leva a marginalizar-se quem perdeu o que tinha?

Relembrei-me disto quando ouvi esta manhã na rádio que o sr. António Domingues continua sem apresentar as declarações que deve. Riqueza envergonhada de quê, neste caso? À custa de que pobreza envergonhada?


Wednesday, November 23, 2016

A GUERRA DOS GOVERNADORES

O Jornal de Negócios transcreve hoje aqui alguns excertos da intervenção do governador do Banco de Portugal feita hoje no "Fórum Banca" organizado pelo Jornal Económico e a PwC. 
O jornalista do JN resume no título do artigo o propósito mais polémico da intervenção do sr. Carlos Costa: denunciar que os "problemas na banca surgiram nos anos de Constâncio na supervisão".
C. Costa não menciona explicitamente o nome do actual vice-governador do Banco Central Europeu, e seu antecessor no cargo, mas a alusão é tão evidente como ser a galinha quem põe a coisa branca.

Que às distracções, contemporizações ou pusilanimidades do sr. Constâncio cabe uma grande parte das culpas nas operações que arrombaram a banca, só tem dúvidas quem é devoto ou conivente. Neste obscuro caderno de apontamentos apontei múltiplas vezes o sr. Constâncio como culpado, opondo-me a todos aqueles que invocavam a "impossibilidade do Banco de Portugal" poder ter evitado grande parte dos abusos e crimes praticados, para proveito próprio, pelos banqueiros, à custa dos contribuintes. Uma culpabilização que, obviamente, não retira um cêntimo à responsabilidade material dos autores das moscambilhas. Não fica menos culpado quem rouba se há coniventes que, por acção ou omissão, colocam o delinquente fora da alçada da justiça. 

Do discurso do sr. Carlos Costa pode, pois, legitimamente, inferir-se que o Banco de Portugal dispunha de meios para desempenhar com eficácia as responsabilidades de supervisão que lhe estavam cometidas. E que, estando na altura em que - segundo Carlos Costa - as moscambilhas foram gizadas, o sr. Vítor Constâncio na presidência do supervisor - o Banco de Portugal - o sr. Vítor Constâncio é desafiado pelo sr. Carlos Costa a defender a sua honra.

O sr. Vítor Constâncio, um homem honesto e letrado, um economista competente, um cidadão de primeira água, vai, certamente, ainda que contrariado pela sua natural discrição, defender a sua honra. Não em duelo, à moda romântica, em que o mais provável era desandar um dos contendores para o outro mundo, mas, cientificamente, demonstrar que os resultados das análises publicadas pelo sr. Carlos Costa são inconsistentes, não verdadeiros, provavelmente malévolos, e que a quota de responsabilidades do Carlos Costa na atribuição de culpas neste cartório supera, se é que não anula, a sua. 



A menos que, como é seu hábito, prefira encolher a cabeça entre os ombros levantados, aguardando no seu cantinho, morninho, abrigado e bem pago, que a ofensa passe.

Monday, November 21, 2016

À ESPERA DOS ROBÔS


Estimada Margarida C.A.,

A 27/11/2005 escrevi aqui um texto longo demais para poder caber nesta caixa de comentários.

Espero que, de tão longo, não desanime a sua paciência.

Depois, voltei ao tema várias vezes durante os últimos onze anos:

a globalização, inevitável porque o mundo é cada vez mais pequeno, incita a competitividade e, implicitamente, o crescimento da produtividade (os robôs são um instrumento ideal de aumento da produtividade), e, também inevitavelmente, a redução global de empregos.

E há muito que afirmo, para risada dos meus amigos, que um dia quem quiser trabalhar terá de pagar por isso. 

O que é chocante, verdadeiramente chocante, mais chocante que a ameaça robótica, são as imagens de miséria, fome, doença, guerra, que nos entram em casa se lhe abrimos a porta. 

Ontem estive a ver uma reportagem sobre Angola. 
Eu nunca visitei Angola, mas tenho amigos que nasceram lá ou que lá vão com frequência e já me tinham dado conta da coabitação entre a extrema opulência (Luanda é recordista no consumo de champanhe ...) e a miséria extrema. Ainda assim, não imaginava que o contraste fosse tão profundo, sobretudo considerando as riquezas naturais do país.

E interrogo-me (dúvida pela positiva): O que poderão fazer os robôs por isto?

ELA

ELA é Isabelle Huppert, agora com 63 anos, protagonista de um thriller psicologicamente perverso que a crítica considera excepcional sobretudo pelo desempenho da actriz principal. 
Tão estrelado, fomos ver o filme.
Que é o retrato de um sub mundo (se não estou a ser optimista) na sociedade parisiense da actualidade, povoado por indivíduos que, de um modo ou outro, gravitam à volta de Ela: uma empresária vocacionada para a criação vídeo-jogos explorando o filão da monstruosidade, subliminar ou ostensiva, filha de um condenado a prisão perpétua por crimes de infanticídio que ela presenciou em criança. O guião do thriller passa, no entanto, por outro lado: Ela é violada de forma sádica em sua casa por um mascarado, mas não recorre à polícia, preferindo urdir uma teia onde irá cair o violador sádico. 
Quando o descobre, não o denuncia, submetendo-se à mais que provável hipótese de repetição dos actos. Pelo meio intersectam-se outras relações sexuais entre membros do clã, em que Ela é também participante. Cândido, só o filho de Ela, que teima ser pai de quem, claramente, não foi progenitor. 

Relembre-se que Isabelle Huppert protagonizou em 2000 "A pianista", um enredo de jogos sadomasoquistas. 


Muito aplaudido em Cannes, ELA, de um espectador, que não deve ter lido os críticos, ouvimos, à saída da sala, um sardónico comentário apenas audível nas proximidades "É tudo um putedo, senhor Alfredo!"

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Sunday, November 20, 2016

DE LESTE E OESTE SOPRAM NUVENS NEGRAS SOBRE A EUROPA

Não compreendo, mas reconheço, que a tese do politicamente correcto, como justificação da vitória de Trump, esteja a prevalecer na identificação das causas de um sucesso que, não muitos dias antes de 8 de Novembro, era considerado pela generalidade das sondagens como altamente improvável. 

Coloquem-se de parte as causas dos erros das sondagens e foquemos-nos nos resultados. Quem venceu?
Claramente, aqueles que aderiram ao discurso de Trump.
Foi o discurso de Trump um discurso "politicamente incorrecto" e, por esse motivo, sobrepôs-se ao discurso "politicamente correcto" dos seus opositores nas primárias e de Hillary Clinton na corrida final?

Houve, obviamente, uma inversão do sentido das palavras que parece estar a ser geralmente despercebido. Uma mensagem "politicamente correcta" é (ou era) aquela com a qual o emissor procura ir de encontro aquilo que os receptores, na sua maioria, querem ouvir. 
Ou não?
Se assim é, foi Trump e não Clinton quem discursou de forma mais politicamente eficaz, i.e., da forma mais politicamente correcta.

Pelos vistos os norte-americanos que votaram em Trump (menos do que aqueles que votaram em Clinton, mas com melhores resultados pelas razões conhecidas) não votaram por melhor assistência na doença, por melhor segurança social, por mais e melhor emprego (a economia dos EUA está a crescer bem e em quase em situação de pleno emprego) nem por mais igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. As mulheres brancas, aliás, votaram maioritariamente (53%) em Trump. São masoquistas, estúpidas ou adoram ser pegadas pela vagina como disse Trump?

Para mim, a resposta é clara: Trump venceu porque apelou aos instintos nacionalistas, xenófobos, racistas de muitos norte-americanos. Se não porque outra razão? Neste sentido, fez um discurso "politicamente correcto". Ou não?
Não quero acreditar que, os que votaram em Trump, o tenham feito por birra a quem apetece mas não se pode dar uma palmada. Ou por estouvamento juvenil geralmente mal desculpado. 
Agora, não resta senão esperar que a dignidade democrática amadureça os "imaturos" sem palmadas. 

E que a Europa, onde as vagas de nacionalismo atingem alturas assustadoras, não caia nas mãos de trumpitos**.

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*  Comentário colocado aqui a propósito desta e desta reflexões de J C Alexandre.
**Em França estão a decorrer as primárias para a nomeação do candidato da direita moderada que deverá enfrentar Marine Le Pen, já que a esquerda se encontra desbaratada à partida. Um dos candidatos, Sarkozy, ex-presidente da República, e também o mais mediático, segundo li algures, "mimetiza nos seus discursos os discursos de Marine Le Pen". 
Um trumpito.

Saturday, November 19, 2016

HISTÓRIAS PARALELAS - LUCINDA

A Lucinda telefonou há dias, meio satisfeita meio acabrunhada. Tinha, finalmente, metido os papeis para a reforma. Quando informou o chefe, o bruto desejou-lhe uma longa e feliz vida na reforma. Não teve uma palavra, uma palavrinha sequer, a incentivá-la a continuar. O mais certo é já terem outra, ou outro, a caminho para o lugar, mas não lhe disseram que sim nem que não quando ela perguntou se iriam preencher a vaga ou redistribuir serviço pelos outros que ficam. Eu nem quero imaginar, dizia ela, como é que eles podem pensar em redistribuir trabalho que a mim me ocupava o dia inteiro sem ter tempo  para me coçar. O problema é deles, talvez, então, enfim percebam a falta que lhes faço. 
Custou-lhe decidir-se, mas, desta vez, atirou-se para a reforma. Vocês, compreendam: foram muitos anos dentro de um mundo que, de repente, se deixa para trás. São os colegas, os amigos, os tipos do bar onde se toma a bica, o dos jornais onde passamos o olhar pelos títulos expostos no quiosque, os do restaurante onde se almoça, as ruas que se atravessam, as montras que nos piscam o olho, enfim, é como sair deste planeta. A esmagadora maioria daquela gente, com quem convivemos durante quase toda a vida, fica-nos lá para trás, noutro cosmos, para sempre, não é? Não, necessariamente, não se percam os amigos e não se perdem as ocasiões. Há quem continue a encontrar-se em almoços, semanais, mensais, o que entenderem, quanto mais não seja para continuar a dizer mal de quem sempre se disse. Pois é, pois é, ainda há dias encontrei o Vítor, ele já tem agora uns setenta e tais, não menos, está velho, eu não lhe disse isso, mas não o reconheci à primeira vista, olhei, ele olhou, de onde é que eu conheço esta cara, era ele mesmo. Depois de se ter reformado, ele já deve estar na reforma há mais de dez anos, acho eu, só lhe aconteceram desgraças, tantas que nem vou contar-te porque, de cada vez que me recordo do que ele me disse, dá-me vontade de ir à Caixa e pedir que me devolvam os papeis. E disse-lhe, para o animar: temos de ir almoçar com o resto da malta do nosso tempo. Concordou, e, como não tem mais que fazer, fiquei de lhe dar a lista dos contactos, ele perdeu a dele, e é ele que vai organizar um almoço. Um dia destes, vai telefonar-te. Prometeu-me que vai telefonar a toda a gente, sem falta, contamos aí com umas vinte presenças. Vai ser uma animação.
Depois, o que me mais me preocupa não é a mudança de planeta, são as condições de existência noutro planeta, que já habitava, mas a tempo parcial. Em casa, o que é que eu tenho à espera? O meu marido e os gatos, tenho dois. Ele está cada vez mais chato de aturar. Não faz nada, nadinha mesmo, não sabe sequer estrelar um ovo, senta-se à mesa à espera que eu o sirva, eu que nunca gostei, nem sei cozinhar, mas agora tenho de arranjar qualquer coisa, senta-se a ler o jornal e a ver televisão ao mesmo tempo, adormece, acorda, levanta-se, anda a pensar comprar um cão para levar a passear. Só me faltava mais esta: onde é que vamos por o cão? Na varanda. Na varanda, imagina! Se o cão ladra levo com toda a malta do prédio em cima. E com razão! Quem não tem quintal não compra um cão! Gatos, acomodam-se, mesmo assim, são os gatos que me dão menos preocupações. E tenho os netos. Quatro. As minhas filhas, logo que me viram começar a trazer caixotes de papeis para casa, mobilizaram-me para levar e trazer os miúdos da escola. Ah, sim, estou a trazer papéis para casa, claro, se os deixo lá no dia seguinte estão nos reciclados. Aquela gente não faz a mínima ideia da importância que pode ter a papelada antiga. Não lhes diz nada, a mim dizem-me tudo o que fiz na vida naquela casa. São meus, muito meus. Só não vou trazer a secretária porque me disseram que ainda não está totalmente amortizada, mas prometeram-me que, no dia em houver mudança de mobiliário, me telefonam para me entregar a secretária que foi minha toda a vida. Tu sabes bem que que me dediquei inteiramente ao trabalho. Queres crer que nunca saí daqui? Fomos um dia a Madrid e outro a Sevilha. Ah! E fui uma vez a Estrasburgo, havia lá uma conferência, deram-me essa oportunidade dessa vez. Bem, tive outras oportunidades, diga-se em abono da verdade, não muitas, mas tive algumas, mas tinha tanto trabalho às costas que acabei por agradecer mas não aceitar. Ao cinema? Ao teatro? Há anos que não entro numa sala de cinema, de teatro só no tempo da Amélia Rey Colaço, no Dona Maria, já não me recordo o que vi, depois o teatro ardeu, e nunca mais voltei lá. Ah, sim, já lá vão mais de cinquenta anos, eu ainda andava no liceu, devia ter uns catorze anos. Pois é isso, cinquenta mais catorze, mais ano menos ano, é isso mesmo. Já lhe tenho dito, devíamos ir aqui, devíamos ir ali, aos fins-de-semana, porque durante a semana temos os netos, não quer. Arranja sempre desculpa para não sair da toca. Agora queixa-se do reumatismo. É da humidade, claro que é da humidade, precisava de sair, apanhar ar, sair do sofá, vê futebol horas seguidas, parece que há um canal que não dá outra coisa, é o canal dele, só dele. Um dia destes ainda concordo com a compra de um cão para ver se o tiro de casa, por umas horas que seja. Se o cão fosse pequeno, talvez o pudéssemos acomodar dentro de casa, mas ele quer um cão grande ... com barraca na varanda! 

Hoje, a Lucinda voltou a telefonar. Excitadíssima!
Tinha encontrado a Belmira, vocês lembram-se da Belmira?, aquela que, mal passou por lá, não mais que dois anos, foi colocada em Bruxelas? Voltou agora, reformada, claro, com uma pensão de arregalar a vista a qualquer um sem padrinho nem partido. A Belmira está gorda! Ela era uma magricelas, pois era, mas agora está uma matrona. Casou com um francês, depois divorciou-se, casou com um holandês, depois voltou a divorciar-se, e juntou-se há cerca de um ano com um segundo primo que raramente saiu de Braga. Rico, podre de rico. Ela nunca teve filhos, ele tem três, e cinco netos, está divorciado há muitos anos já. Mas a Belmira não aguentou Braga mais que meia dúzia de meses. Começou por vir frequentemente a Lisboa, e o primo em Braga. Um dia, voltou a Braga e disse ao primo que tinha de fixar residência em Lisboa, mas, prometeu-lhe, ir passar todos os fins-de-semana a Braga. E porquê? Adivinham?  Ela esteve sempre bem relacionada com os partidos, no poder ou fora dele, não tem escrúpulos ideológicos, o lema da Belmira é vive e deixa viver. À conta dos conhecimentos em Bruxelas abichou a presidência de um instituto do Estado em Lisboa. Quando a vi no Centro Comercial, estava ela a comprar perfume, reconheci-a logo, mesmo gorda a Belmira era a Belmira que eu conhecia tão bem. Fomos colegas de curso, éramos amigas desde a infância, habitávamos na mesma rua, e mesmo durante todos aqueles anos em que ela trabalhou em Bruxelas, pelo menos no Natal trocávamos cartões de Boas-Festas. O que é que tu fazes, e o que fazes tu, ela estava radiante e eu fazia por isso, estava contente por voltar a vê-la, claro,  mas não me contagiava a felicidade que transbordava dos olhos dela. Com que idade estás, Lucinda? Pois, somos da mesma idade, claro. Toma lá o meu número de telefone, dá cá o teu, um dia destes telefono-te para irmos almoçar juntas. Agora tenho de me despachar, tenho uma reunião às duas e meia. 
E telefonou.
Telefonou anteontem. Ouviste as notícias? Ouviste que agora quem quiser pode trabalhar para além dos setenta? Tinha ouvido, claro que tinha ouvido, e até tinha telefonado para o chefe a perguntar-lhe se podia retirar o pedido e voltar ao trabalho. O bruto respondeu-me que não, que o trabalho tinha sido redistribuído, não tinha havido sequer abertura de vaga. E, malcriadamente, acrescentou que a reorganização dos serviços estava a dar resultados espectaculares. Que não me preocupasse, que gozasse a minha bem merecida reforma ... para quem trabalhou tanto, a reforma deve ser um merecimento irrecusável. Apeteceu-me mandar-lhe com o telefone acima... Mandei-o contra a parede, tive de comprar outro. 
Mas estás assim tão interessada em voltar a trabalhar? perguntou-me ela.
Se estou! Aceito qualquer proposta nem que seja pro bono... Estou farta de estar em casa, e ainda só estou há dois meses reformada ... Aliás, disse lá em casa, quando entrar o cão saio eu. O cão não entrou, se eu sair dou licença para o cão entrar.
Há bocado, há coisa de uma hora, voltou a telefonar-me a Belmira! Sabes o que me disse?
Que me arranja um lugar de vogal no Instituto a que vai presidir! Acreditas? Eu quase que ainda não acredito.
Vamos assinar amanhã a tomada de posse!
Para já, chegamos aos setenta no posto, depois logo se verá. Nunca o futuro me sorriu tanto nem tão bem pago. Com pensão e a retribuição como vogal passo a ganhar o triplo do que ganhava há dois meses ao fim de quase quarenta anos de serviço. E não tenho que aturar marido, nem cão, nem netos, nem matar-me a trabalhar na cozinha. Um dia destes vamos almoçar. Só nós as duas. Não sei é se tenho tempo para ir ao almoço que o Vítor está a programar.
Se puder ir, não falto. Não faltes tu. Preciso de notícias daquela malta.  

Friday, November 18, 2016

O ESTADO NÃO É UMA PESSOA

Uma pessoa não é o Estado nem o Estado uma pessoa. O sr. Luís XVI foi guilhotinado por falta de esclarecimento em tempo oportuno.
Ontem, de zapping, ouvi o sr. Luís Nobre Guedes em frente-a-frente com o sr. Marçal Grilo, afirmar,
"não quero acreditar que o Estado não seja uma pessoa de bem e não respeite os compromissos assumidos ..."

Isto, a propósito da já nauseabunda recusa da entrega das declarações dos administradores da Caixa no Tribunal Constitucional. (Ontem, esperavam-se notícias sobre o tema, mas não foram vistas nem ouvidas)

O sr. Nobre Guedes é jurista e, supõe-se, domina o sentido das palavras, ou pelo menos o das mais elementares. Mas, como tantos outros, propositadamente ou não, confunde o Governo com o Estado. 
Quem assumiu compromissos (se os assumiu!) no sentido de dispensar o sr. Domingues e a sua equipa de apresentar as declarações foi o Governo, o ministro das Finanças, ou o porteiro do ministério. O Estado, certamente, não foi. 

Se o Estado fosse culpado de tudo o que o acusam os mais ou menos letrados deste país, há muito tempo que algum tresloucado lhe teria dado um tiro se soubesse onde ele morava.

Thursday, November 17, 2016

O JOGO DA CABRA CEGA

Ouço esta manhã na rádio que os administradores da Caixa Geral de Depósitos se reúnem hoje para decidir se obedecem às ordens do Tribunal Constitucional, e entregam as declarações de património e rendimentos, ou, hipótese mais provável avançada pela Antena 1, se enviam argumentos que sustentam, do ponto de vista deles, e dos seus advogados, a legalidade da não entrega.

Tudo se encaminha, portanto, para a desobediência ao Tribunal Constitucional  e indiferença perante o parecer público do Presidente da República. Se assim for, e os administradores não se demitirem, só resta ao representante do accionista, o Governo, demiti-los.  
Como a favor dos administradores rebeldes assiste o compromisso escrito da não exigência da apresentação dos famigerados documentos no Constitucional como condição de aceitação do convite feito pelo Governo, vai, certamente, seguir-se a negociação das indemnizações aos despedidos sem justa causa.  Uns milhões ...
Quem paga?
Não o ministro Centeno.

Entretanto soube-se ontem que, vd. aqui, há dois juízes do TC que, incumbidos da verificação do cumprimento da exigência legal das entregas das declarações de património e rendimentos, também não entregaram as suas...

O Trump também não, e vai ser presidente dos Estados Unidos da América daqui a dois meses. 

Wednesday, November 16, 2016

O TESOURO


O Tesouro, do romeno Corneliu Porumboiu, recordou-me "A Batalha Sem Fim" de Aquilino Ribeiro,
com um fim feliz, enternecedor.

Voltou ao Nimas. Vale a pena ir lá.
***

Tuesday, November 15, 2016

O CERCO DO HOMEM SOVIÉTICO*


Há oito dias ganhou Trump, amigo de Putin.
Dias depois, foram eleitos presidentes na Bulgária e na Moldávia os candidatos que se afirmaram pró- Rússia.
Na Hungria, o chefe é indisfarçável admirador de Putin desde que - cf. aqui - se fez eleger.
Marine Le Pen, cada vez mais próxima do Palácio do Eliseu, e Putin admiram-se mutuamente.
E as outras extremas-direitas para onde se voltarão se voltam costas à UE? Holanda, Áustria, ...
O Brêxit unirá mais os interesses do Reino Unido aos dos Estados Unidos, Teresa May estará do lado de Trump, e, pasme-se!, amigos dos meus amigos ... 
Há dois anos na imprensa britânica o actual presidente da Comissão Europeia era considerado - vd. aqui - "bêbado e perigoso". Depois Cameron, sem outra saída, arriscou o Brêxit e perdeu.
---
Sugestão de leituras durante o cerco : O Fim do Homem Soviético, de Svetlana Alexijevich (Nobel da Literatura 2015); Hitler de Ian Kershaw


A OUTRA GERINGONÇA

O sr. António Costa é um homem bem equipado.  Geringonças, tem duas.
Se a da esquerda embirra e não arranca, ele salta para a do lado, que com toda a boa vontade o leva onde ele quer. Aqui, por exemplo.

A propósito da revogação do limite de idade para continuar ao serviço na função pública depois dos 70 anos, comentei aqui:

Estou de acordo que as pessoas possam continuar a trabalhar para além dos 70 anos de idade, e enquanto quiserem, em funções públicas ou privadas.
Não estou de acordo que se acumulem remunerações de trabalho e pensões de reforma. Salvo se a pensão de reforma fique aquém, e na medida em que fique aquém, do rendimento líquido enquanto trabalhador.

Se, p.e., o rendimento líquido era de 1000 euros mensais e a pensão de 900, se continuar a trabalhar a reforma deverá ser de 100 enquanto se mantiver como trabalhador remunerado.

Afirma, e eu estou de acordo, que muita gente está ainda aos 70 anos com capacidade e competência que não deve ser desperdiçada. Pois muito bem: se o argumento é esse, e não o interesse na acumulação de rendimentos, a vontade de trabalhar fica confirmada com a minha proposta.

Acontece que muita gente na função pública, sobretudo, onde a avaliação de competências é geralmente excessivamente benevolente, há muito tempo que deixou de ser competente, se alguma vez o foi no exercício das funções pelas quais é remunerada.
Quem pretende continuar para além dos 70 nem sempre é competente mas porque se julga competente ou porque não se preparou psicologicamente para deixar o local de trabalho onde, não poucas vezes, há muito tempo é redundante.

Acontece ainda que - para usar o exemplo que deu da docência universitária - a idade média dos professores é já, nas nossas universidades, bastante elevada. Há eugenia típica do recrutamento de docentes no ensino superior alia-se a resistência dos que garantiram inamovibilidade enquanto aqueles que se vão doutorando no país e no estrangeiro se vêm rejeitados no seu país e têm de procurar lugar lá fora.
Não, por acaso, houve um crescimento exponencial de doutoramentos nas duas últimas décadas, mas o número de patentes registadas em Portugal continua a ser, relativamente, muito baixo. Há, felizmente, alguns raros casos de sucesso internacional que apenas confirmam a regra que referi.

Quanto à chamada ao serviço de médicos reformados é uma história que se explica, em parte, com o que atrás escrevi.
Todos sabemos que as notícias oscilaram nas últimas décadas entre a excessiva entrada de alunos para medicina - argumento da Ordem - e a necessidade de recrutamento no exterior e chamada de médicos reformados. E porquê?

Porque, para além, da política de admissão aos cursos de medicina ser influenciada pelos interesses corporativos da Ordem, também os sucessivos governos, ao introduzirem instabilidade nas regras de acesso à reforma, incentivaram muitos clínicos na função pública a reformarem-se e a passarem, muitos deles, a continuar a exercer clínica privada, acumulando pensões e rendimentos que, na totalidade, excedem bastante os seus rendimentos líquidos antes da reforma.

Evidentemente, a saída por entrada não beneficia apenas os médicos reformados. Longe disso.
Para citar um caso público recente temos o sr. António Domingues. 
Reformou-se do BPI, onde era vice-presidente - antes dos 65 anos (esgotou a competência no banco onde trabalhou durante 27 anos?) para passar a acumular a reforma com as retribuições e prémios como presidente da Caixa Geral de Depósitos.
Onde poderá trabalhar bem para além dos 70 anos.


De insubstituíveis, garante a filosofia popular, estão os cemitérios cheios.

Monday, November 14, 2016

QUANTO MAIS ME BATES

Raramente, dou uma olhadela pelo retrovisor.

Mas ontem, a propósito de uma reportagem publicada no Expresso,

- Como votou a América - Quem votou em Trump 
- 53% de mulheres brancas votaram em Trump

observei que, há mais de um ano, anotei aqui :

THURSDAY, AUGUST 27, 2015

QUANTO MAIS ME BATES

Anda meia América abismada com a progressão do "The Trump" para a sua nomeação como candidato republicano às eleições presidenciais de 8 Novembro de 2016, uma terça-feira. Do lado republicano, estão acabrunhados, ninguém avança decididamente para o travar, do lado democrático porque receiam que Hillary Clinton não seja capaz de enfrentar a bisarma que, como a hidra, parece multiplicar-se à medida que lhe caem em cima  acusações de fanatismo e brutalidade, e Joe Biden, o actual vice-presidente, está a ser incentivado a avançar.
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Para além de várias outras repelências, "The Trump" é um misógino gabadamente assumido. Num país onde 53% do eleitorado são mulheres, como se compreende esta aparente condescendência, de que resulta inequívoco implícito aplauso, relativamente a um fulano que obstinadamente as insulta?
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Está muito generalizada a ideia de que a grande vantagem de Donald Trump é dizer, alto e bom som, o que os outros pensam mas calam. Se isto é verdade, ou mesmo meia verdade apenas, "God save America" porque os norte-americanos perderam o tino.


Sunday, November 13, 2016

OUTRO OVO DE SERPENTE


Sinceramente, Estimada Suzana Toscano, não compreendo os seus argumentos e muito menos as suas conclusões.

Hillary Clinton reconheceu a derrota e telefonou a Trump. Este disse depois que ela tinha tido palavras amáveis para com ele.
Até aqui, ao comportamento dos Democratas não são atribuíveis reparos.
Concorda?

Depois refere o comportamento não democrático de milhares de cidadãos que se manifestaram nas ruas e uma petição que já terá três milhões de assinaturas.

Ora os "Democratas", eleitores ou não, contam-se em números muitíssimo mais elevados. Pode retirar-se, mesmo validando os seus argumentos, que os "Democratas" estão a ter um comportamento anti democrático porque alguns deles, na realidade uma pequena parte, se manifesta e protesta? Confundir uma parte com o todo não me parece uma aceitável indução estatística. Não concorda?

Por outro lado, uma manifestação de desagrado não é, não pode ser, em democracia considerado um comportamento antidemocrático porque a essência da democracia sustenta-se na liberdade de expressão. 

A mim, porque tenho família nos EUA, o comportamento de Trump preocupa-me não apenas pela soberba e falta de civismo que demonstrou ao longo da campanha mas pelos comportamentos que os seus dislates já estão a promover. 

Na imprensa norte-americana de referência li ontem que em várias escolas começaram a aparecer slogans racistas e inscrições de suásticas nas paredes. E que alguns jovens alarves terão acossado colegas pegando nelas pela vagina porque se Trump o fez por que razão não podem eles fazer o mesmo? São apenas casos isolados, facilmente controláveis pelas instituições?
Hitler, publicamente, não ordenava matar nem perseguir. Regozijava-se com as iniciativas dos que o idolatravam e actuavam de forma que eles acreditavam agradar ao führer.

Estimada Suzana Toscano,

A sociedade norte-americana está agora mais dividida que antes. 
Os sintomas são claros: o racismo, a xenofobia, a misoginia, a intolerância e o fanatismo religioso vão galopar com Trump. É preciso muita ingenuidade para supor que Trump não vai prosseguir pelo caminho que prometeu prosseguir. As primeiras indicações já chegaram. Os resultados prometem um desastre social, não só a nível norte-americano como mundial. 

Pela Europa são vários os trumpitos a esfregar as mãos de contentamento. Foi mais ou menos assim que foi chocado há cerca de oito décadas atrás o ovo da serpente.
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Correl.


Cartaz convocando manifestação Klu Klux Klan para o dia 3 de Dezembro na Carolina do Norte
c/p aqui

Saturday, November 12, 2016

EXPLICAÇÕES DOS PAPAGAIOS


Caríssimo António,

Se houve, e houve certamente, influência da comunicação social na opção de voto dos menos informados (foram sobretudo eles que decidiram as eleições num sistema que não se decide pela maioria do voto popular), essa influência beneficiou Trump porque lhe concedeu muito maior permanência em palco. "Não receio que falem mal de mim desde que falem de mim", foi o mote que o catapultou.

Poderia ou deveria a comunicação social, e não estamos a falar de tablóides, mas de media prestigiados como o New York Times, o Wall Street Journal, o Washington Post, o Financial Times, o Economist, etc., ignorar as alarvidades que Trump bolsou?

Não, Caríssimo António.

O cronista que citas, que não podemos esquecer teve um papel muito interventivo há umas décadas atrás num semanário de vida curta, foi especialista na intriga política. Depois foi romancista de fôlego fátuo. Ultimamente dedica-se a cronicar lamechas e apreciações gastronómicas. Faz pela vida, mas não deixou de ser um cabotino.

As suas afirmações não explicam porque é que Donald Trump foi o candidato dos republicanos contra a clara vontade de uma grande parte do GOP. Do meu ponto de vista, o que explica a vitória de Trump contra o "seu" partido explica também a vitória dele contra Clinton. 

Para perceber o que se passou temos de perceber as razões de sucesso
do populismo que alastra agora por todo o mundo ocidental.Mesmo considerando a enorme disparidade dos contextos históricos, vale a pena reler a biografia de Hitler de Ian Kershaw. 

Obama herdou o governo de um país em crise explosiva e deixa a Casa Branca com cerca de 57% de popularidade.

O MEC, cronista gastronómico, poderia ter-se dedicado a perceber o resultado do cozinhado analisando como se comportaram os diferentes ingredientes. Optou pelo caminho mais fácil: culpou o grupo daqueles de que já fez parte. Problema de má consciência claramente mal resolvido.

Friday, November 11, 2016

DOMINGUES VERSUS TRUMP

Ouço na rádio esta manhã que, quanto muito, o sr. António Domingues estará disponível para entregar a declaração de património no Tribunal Constitucional se for garantida confidencialidade do seu conteúdo até ao fim do seu mandato como presidente da Caixa, admitindo, contudo, que o referido documento possa ser consultado pelo Ministério Público e pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Percebe-se o pudor do sr. Domingues em consentir que a opinião pública conheça o enriquecimento que ele, e a generalidade daqueles que na banca motivaram a crise, aproveitaram  sem rédeas dela. Mas é tocante a sua ingenuidade quando espera que a divulgação dos valores da lista não apareça mais dia menos dia soprados por quem geralmente costuma soprar o que é por lei considerado em segredo.


Por outro lado, é  espantoso que ao sr. Domingues seja exigida a declaração de património para poder presidir a um banco de reduzida dimensão, se comparado a nível mundial, quando ao sr. Trump se preparam para estender a passadeira vermelha por onde ele passará para presidir aos destinos dos Estados Unidos da América, e, por tabela, do mundo, sem que os norte-americanos saibam se ele se evadiu ilegalmente ao pagamento de impostos ou se está ou não envolvido numa rede de branqueamento de capitais, segundo notícias publicadas em diários de prestigio mundial como o New York Times ou o Financial Times, que ontem referi aqui.

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Correl . - (12/11) Carlos Santos Ferreira nunca declarou ao TC os rendimentos que auferia na CGD
E o TC também nunca deu por isso. É um depósito.

Thursday, November 10, 2016

QUEM TEM MEDO DE DONALD TRUMP?

Al Capone, o célebre gangster ítalo-americano durante as primeiras três décadas do século passado, com um curriculum recheado de  crimes de contrabando e outras habilidades ilegais, teve sempre arte e engenho para escapar às malhas da justiça. 
Até ao dia em que ficou confirmado que fugia aos impostos. 
E foi por esta habilidade que, em 1931, foi condenado pela justiça americana a onze anos de prisão.


Trump, o próximo presidente dos EUA, confessadamente, não pagou impostos durante 18 anos, e recusou-se a demonstrar o cumprimento das suas obrigações fiscais. Alegou publicamente que limitou-se a aproveitar as oportunidades concedidas pela lei. 
Mas o New York Times explicava na sua edição de 31 de Outubro - vd. aqui - a forma como Trump escapou ao pagamento de impostos usando o dinheiro de outras pessoas. Outro artigo publicado no mesmo dia no mesmo NYT afirma - vd. aqui - que Trump usou métodos legalmente duvidosos para escapar ao pagamento de impostos. 


Há duas semanas, o Financial Times publicava um extenso artigo de investigação - vd. aqui - que garante provar a evidência de ligações de Trump a uma alegada rede de branqueamento de capitais. 

Estas, algumas das notícias que foram publicadas durante a fase mais acesa da campanha. E, no entanto, aquilo que parecia ser uma enorme vulnerabilidade do candidato republicano foi, praticamente, estranhamente ignorado por Hillary Clinton, que passou a centrar os seus ataques  na misoginia alarve de Trump para conquistar o eleitorado feminino, que já tinha a seu lado. Por quê?

Por que razão não foi Trump confrontado com as notícias que denunciavam habilidades semelhantes aquelas que em 1931 algemaram Al Capone? 

Trump ganhou (com menos votos que Clinton), segundo as análises dos resultados entretanto publicados, sobretudo com os votos dos mais pobres e menos instruídos. 
Já há explicações mais que suficientes para o fenómeno de ter sido eleito presidente um bilionário de Nova Iorque, que se tem na conta de muito esperto porque, além do mais, não paga impostos, com os votos dos mais desprotegidos do interior. 

Da Justiça norte-americana, tem-se a imagem de ser célere, acertada e implacável.
Das elites norte-americanas, formadas nas universidades mais prestigiadas do mundo, a capacidade para denunciar a prepotência da imoralidade e o incumprimento da lei. 
E não acontece nada?


Tuesday, November 08, 2016

FEIJOA

Começou há milénios, mas foram os navegadores portugueses de quinhentos que deram o grande impulso à globalização botânica. Hoje, espécies oriundas dos nossos antípodas povoam intensivamente a paisagem portuguesa, com particular destaque do tão generoso quanto mal afamado eucalipto globulus, uma das variedades de uma família vastíssima, com cerca de duzentos membros conhecidos. 

Um clã que, aliás, tem vários primos que habitam connosco, que nos acenam quando passamos por eles mas que pouca gente reconhecerá: são, p.e., os metrosideros, excelsa ou tomasi, entre outras variedades, os leptospermum, rosa, vermelhos, as grevíleas, de muitas variedades, os callistemons, também com variedades diversas, as acácias, espécies invasoras, que pintam de amarelo o fim do inverno e progridem perante a aparente distracção dos responsáveis pela conservação do ambiente. 

Aqui em frente, tenho uma feijoa. Ali, ao lado, outra.
Sabe o que é uma feijoa?
Não, não é a essa que me refiro. É a esta:


Floresce  no princípio do verão, 


Colhe-se por esta altura do ano.

É boa?
Faz bem?
Tem aqui uma resposta.
Se não gostar do fruto, regale-se com a flor. 


Monday, November 07, 2016

HISTÓRIAS PARALELAS - ACONTECEU NA CAIXA

"O primeiro-ministro anunciou um investimento de 200 milhões de euros do Estado num programa de coinvestimento para empresas inovadoras que precisam de capital de risco, num evento no âmbito da Web Summit"DN, hoje, 7/11/2016
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Em 1977, O FMI entrou pela primeira vez em Portugal, a pedido de um Governo de Mário Soares, regressando em 1983, por iniciativa do Governo de Bloco Central, também liderado por Mário Soares Entre 1973 e 1985, a inflação anual média rondou os 22%. 

"É público o telefonema nocturno de Silva Lopes, então governador do Banco de Portugal, para o primeiro-ministro, Mário Soares, a avisar que no dia seguinte Portugal poderia entrar em bancarrota. Soares terá respondido que, se assim era, o melhor era deixá-lo dormir, para estar preparado para o dia seguinte" - Expresso/RevistaÚnica/07 Maio 2011
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Verão de 1980

O CMF da Silva não sabia, a esmagadora maioria dos portugueses não sabia, até que ponto as contas externas se tinham deteriorado com o aumento do preço do petróleo, a entrada de quase um  milhão de retornados, as quebras no turismo, as reduções das remessas dos emigrantes, as fugas de capitais, afugentados com os clamores revolucionários, e que nem a venda de divisas e ouro do Banco de Portugal tinha evitado o crescimento do endividamento para níveis insustentáveis sem ajuda externa.
O que o CMF da Silva sabia é que a sobrevivência da sua empresa de equipamentos para indústrias alimentares, em grande parte importados, estava ameaçada.

Porquê Carlos Manuel? 
Não me dão BRI´s, sem BRI´s não posso importar, se não importo não vendo, não pago ao pessoal, tenho de encerrar as portas, percebes? Estamos tramados. Parece que o país não tem divisas, e sem divisas não há meios de pagamento, sem meios de pagamento não há importações, é o que dizem. Este país chegou ao fundo!

E por que é que o meu amigo não pensa em produzir o que agora importa? Leva algum tempo, exige algum capital, mas daqui a um ano, no máximo, pode ter o seu negócio sustentado com produção própria. O IAPMEI e a Caixa estão anunciar em letras gordas um concurso "Aposte no futuro, Construa a sua empresa". Talvez seja uma oportunidade no meio destes tempos de ameaças.
Achas?
É um risco, não há investimento sem risco, mas, no seu caso, parece poder ser um risco calculável. V. disse-me há tempos que o seu amigo Dennis F., comprou casa no Algarve e está a pensar em retirar-se. Por que não fala com ele? Convença-o a conceder-lhe uma licença de produção dos equipamentos que ele produz em Thionville, claro que tem de pagar-lhe royalties, e comissões nas vendas a clientes 
dele em França, Inglaterra, Alemanha, ... Argélia, durante algum tempo. 

O Dennis aceitou a proposta do CMF da Silva, assinaram um acordo, o CMF da Silva submeteu ao concurso um projecto, e o projecto foi aprovado. Recebeu medalha e diploma comemorativo. 
Como possuía economias, avançou para a compra de um lote de terreno, num parque industrial em local com bons acessos rodoviários, em regime de direito de superfície por 50 anos, já não vou durar tanto, disse ele, e avançou. Avançou tanto que, em menos de quatro meses, tinha o edifício construído, pronto para receber as máquinas necessárias à produção. Tudo com os capitais próprios a que se tinha comprometido no projecto aprovado pelos promotores do concurso, a Caixa e o IAPMEI.
Desvanecido, olhava para o edifício, e concluía que tinha ficado teso mas orgulhoso da obra feita.

E, agora, quando é que se montam as máquinas?
Já estão encomendadas, temos que entregar os 30% da ordem para os fornecedores avançarem. 
Estamos à espera que a Caixa desbloqueie a massa. Já perdemos um mês. 

Então Carlos Manuel, quando é que se instalam as máquinas?
Imagina que a Caixa disse-nos ontem que está à espera das facturas pró-forma para desbloquear a massa, e já lá vão dois meses ...
Mas as facturas pró-forma já foram entregues, não foram?
Há mais que tempo. Estamos em Setembro, entregámos em Junho, estava a construção do edifício quase a acabar.  
E que dizem eles?
Que não as receberam. Isto dá comigo em doido! Conheces alguém na Caixa?
Conheço muita gente lá, mas primeiro precisamos de saber onde param as facturas. 
É complicado ...
Talvez não seja assim tanto. Onde é que o meu amigo entregou as facturas?
Naquela entrada que fica nas traseiras da entrada principal, que dá para o Calhariz. 
Então faça como lhe digo: eles fazem micro filmagem de todos os documentos entrados. Lembra-se da data em que entregou as facturas pró-forma?
Perfeitamente.
Então vá até lá e peça que eles visualizem todos os documentos entrados nesse dia.
E eles vão nessa?
É questão de experimentar.

O CMF da Silva assim fez e, porque tinha boa memória, em menos de meia hora ficou provado que as facturas tinham dado entrada na Caixa quatro meses antes, não menos.
A esta altura da saga seria esperável que ao meu amigo fossem apresentadas desculpas pela Caixa e desbloqueado o financiamento contratado, mas a Caixa foi (parece que, trinta e seis anos depois, continua a ser), insensível a razões éticas, e demorou mais um mês para convocar o CMF da Silva e exigir-lhe que entregasse novas facturas pró-forma porque as anteriores tinham caducado ao fim de dois meses das respectivas datas. Com efeito, regra geral, os fornecedores colocam datas limite para os preços indicados nas facturas pró-forma, mas que culpa tinha ele, o meu amigo Carlos Manuel, que na Caixa tivessem perdido os documentos? Nenhuma.

Protestou, escreveu ao presidente da Caixa, não obteve resposta, e resignou-se a pedir novas facturas pró-forma aos fornecedores. Um mês depois, foi convocado para uma reunião.
Saiu-lhe para o encontro um sujeito que ele nunca tinha visto na vida, homem na casa dos trinta e muitos, com cara de poucos amigos.

- Sente-se!, disse ele, enquanto traçava a perna e folheava o projecto.
Consta aqui no relatório do projecto um objectivo de exportação de 4% do total da produção durante os primeiros cinco anos ...
- Sim, pareceu-me prudente não apontar para objectivos ambiciosos em países onde nunca vendemos.
Temos um agente, que conhece bem os mercados, aliás é nosso parceiro neste projecto, temos um contrato que o obriga a dar-nos todas as informações e especificações técnicas de produção, mas queremos abalançar-nos no estrangeiro só quando estivermos bem firmes no mercado interno. 
- Então não há estudo de mercado que justifique este objectivo!
- Há, há. O sr. Dennis F., tem uma carteira de clientes vastíssima que vai, contratualmente, passar a fornecer a partir da produção aqui em Portugal. Aliás, ele tem casa no Algarve, passa cá a maior parte do ano.
- Mas não há estudo de mercado!
- Não sei a que se refere, francamente. Sabemos a dimensão dos mercados, sabemos que quota podemos facilmente atingir, desde que tenhamos produção, que já deveria ter começado há seis meses e ainda não arrancou porque, como deve saber, perderam as facturas pró-forma aqui, na Caixa....

O interrogatório foi suspenso durante largos minutos, enquanto o técnico folheava o relatório, de trás para a frente, da frente para trás.

- Quatro por cento, hem? Por quê quatro por cento? Porque não cinco por cento?
- Dá quase no mesmo. Se há problema nisso, recalcula-se o projecto com outros valores dessa ordem de grandeza, mas estou certo que o resultado final não muda de forma significativa. 
- Por que não dez por cento? Por que não dois por cento?
- Dá quase no mesmo ... Mas se quatro por cento não serve, muda-se ...
- Muda-se, como?
- O sr. dirá o que lhe parecer aceitável ...
- Para eu lhe dizer teria o senhor que me pagar!,

(Nesta altura, houve um largo compasso de espera para o meu amigo Carlos Manuel digerir uma indignação imensa)

- Não, isso não posso pagar. Já esgotei! E para esse peditório nunca paguei, nem pagarei!

E o projecto desmoronou-se naquele dia. 

O técnico reduziu unilateralmente e de forma perturbadora o valor contratado, a Caixa dispunha naquele tempo de prerrogativas de cobrança de débitos idênticas aos que assistiam às Finanças, qualquer processo contra a Caixa demoraria anos, porque não poderia a empresa defender-se num processo executivo movido pela Caixa. À Caixa bastava apresentar, como título executivo, o valor em dívida do empréstimo que a empresa, sem os meios contratados, não poderia reembolsar. 
Caiu antes de começar a gatinhar.

Sunday, November 06, 2016

LEILA ALAOUI EM CASCAIS



“Courage”, de Leila Alaoui


Exposição no Palácio da Cidadela de Cascais de alguns trabalhos - fotografia e vídeo - de Alaoui, uma artista nascida em Paris, filha de um marroquino e de uma francesa. Vítima de um ataque terrorista no Burkina Faso, morreu em Janeiro deste ano, tinha 34 anos de idade.
Nos trabalhos expostos, Leila Aloui recolhe as diversidades culturais  e os dramas da fuga através do Mediterrâneo para chegar, neste caso, a Espanha"  

Vá até lá.
E não saia sem visitar a capela do Museu.

Saturday, November 05, 2016

HISTÓRIAS PARALELAS - PAPEL DE JORNAL*

Primavera, 1986

- Telefonaram para aí, da parte do gabinete do Ministro, a perguntar se tínhamos suspendido o fornecimento de papel de jornal. Sabe o que se passa?
- Sei. Fui eu que mandei suspender o fornecimento ...
- A todos???
- Aos que não pagam e já nos devem muita massa. Ao Expresso, que continua a pagar, continuamos a fornecer, ao "Diário de Lisboa" que fez um acordo de pagamento do atrasado, e que por enquanto está a cumprir, não suspendemos. Suspendemos aos que não pagam e que, repetidamente, foram avisados de que não poderíamos continuar a fornecer sem receber...
- Fez bem, fez bem. Mas agora vamos ter chatice com o governo ... Sem jornais, amanhã voltam a sair os blindados para a rua ...
- Talvez nos bombardeiem e fica resolvido o assunto. Que quer que eu faça?
- ... ... ...
- Mando retomar as entregas?
- Manda nada. Fez bem, fez muito bem. Já devíamos ter tomado essa decisão há mais tempo.
- E tomámos. Vezes sem conta, mas do ministério mandaram sempre aguentar até terem uma solução alternativa.
- Pois é. ... A porra do governo ... bom, vou falar com o chefe de gabinete do ministro e depois digo-lhe alguma coisa. Até lá, não há mais papel para quem não paga. Ausente-se! Diga ao pessoal que teve de ir ao médico ....
- Isso não, pode dar azar ...
- Então mantenha-se no posto até novas ordens. Quanto é que nos devem?
- Já passa dos cinquenta mil contos ...
- Tanto???
- Está escrito em todos relatórios mensais ...
- Pois está, pois está .... Pois está .... Já lhe digo alguma coisa.
....
....
....

 - Ficou tudo excitado no ministério! Sem papel, amanhã não haverá jornais ... Parece que já estávamos a fornecer só para o dia seguinte ...
- É o que tínhamos combinado ... Mas só para os que não pagam. O Expresso tem papel. O Diário de Lisboa também...
- Pois é, pois é, mas o Expresso só sai aos sábados e hoje é ... Que dia é hoje?
- Segunda ... - E nós não fornecemos papel de jornal. Quem fornece são os finlandeses, nós pagamos aos finlandeses e deveríamos receber dos jornais ... mas a quase totalidade destes não paga.
- É uma porra de negócio, este, em que o Estado nos meteu ...
- Não foi o Estado, foi o governo.
- Pois, pois, o governo ... Este ou anterior?
- Todos, desde 1976, 1977, por aí ...
- Há dias o ministro voltou a perguntar por que razão não produzimos papel de jornal em Portugal.
- Perguntam todos.
- É. São uns ignorantes. ...
- Voltou a explicar porquê?
- Mil vezes! Mas naquelas cabecinhas só entra o que não os chateia ...
- E o que é que eu faço? Mando entregar ou mantenho a suspensão?
- Mande entregar mas só o papel que está em stock, no armazém, e o que vem no barco que já saiu da Finlândia. Depois ... Não há mais nada para ninguém. Entretanto, prepare as contas para as ir explicar amanhã ao ministro, as dívidas de cada jornal, você conhece o ministro não conhece?
- De vista.
- Então vai conhecê-lo pessoalmente. É um tipo simpático, não sabe o que está a fazer mas é simpático. Ele quer ficar bem inteirado do assunto. A coisa escalda, e ele quer ver se não se queima.
Você vai lá na qualidade de administrador-delegado da empresa que nem produz, nem vende, só paga e não recebe, ou quase.
- Espere aí. Eu não sou administrador-delegado da coisa, se fosse, a coisa já teria acabado há muito ...
- Vai passar a ser a partir desta tarde. Já mandei fazer acta.  Ah! E já vai estar na reunião do CA, que se realiza na sexta-feira da semana que vem para aprovação das contas, as tretas habituais.
E não há aumento de ordenado pelo exercício do cargo mas vai almoçar ao Aviz com os outros membros do conselho, são sete, todos não executivos,  três finlandeses, três portugueses e o administrador-delegado, que passa a ser você em substituição do Pilar. No Aviz, hem! Contas aprovadas em menos de um quarto de hora, e depois ala, para o Aviz! Quer melhor?
...
...
...
- É isso, é isso, é dos corredores do Quelhas. Lembro-me de si, só pode ser de lá.  Vamos lá, então, a ver essas contas e as histórias que tem para contar ...
... ...  ...

- Hum! Temos que acabar com isto ... Desta vez vamos mesmo acabar com isto. Depois de esgotado o que está em armazém e o que já foi embarcado na Finlândia não há mais crédito para ninguém ...
- Não chega ...
- Ah! não??
- Não, não chega. Se não suspendemos os embarques na Finlândia, deixando de avançar com o pagamento antecipado aos finlandeses, continua a pressão para o entregarmos ...
- Pois, pois, é verdade. É isso mesmo que devemos fazer, aliás já o deveríamos ter feito há muito tempo. Avisa-se os finlandeses que este barco que aí vem é "la dernière". Depois, eles que arranjem agente. Deve haver quem queira, que lhe parece?
- Parece-me que o problema deixa de ser nosso. E quanto aos créditos a cobrar, que fazemos?
- Cobramos!
- Em tribunal?
- Acha que só podemos apanhá-los em tribunal? Quanto é que temos de incobráveis, você já disse, mas passou-me...
- Para cima de cinquenta mil contos, a subir todos os dias. Não vejo alternativa senão metê-los no tribunal.
- Nem eu... ... ... Bom. Para já estancamos a dívida, não é?  Depois levamos a perdas os valores incobrados. Este ano, vinte por cento, para o ano ... é, em cinco anos temos as contas limpas. Parece-lhe bem?
- Bem, não me parece, mas o senhor ministro manda.
...
...
...
- Meus senhores, agradeço muito a gentileza das vossas palavras de boas-vindas, mas teria de haver grande falta de sinceridade da minha parte para escusar-me a dizer-vos que, tendo analisado as contas de exploração dos últimos cinco anos encontrei nelas várias imprecisões e alguns erros materialmente relevantes. Passo a detalhar;
... ... ...

Quero, contudo, antes de irmos almoçar no Aviz informar este  conselho de administração que a minha representada pretende anunciar hoje a dissolução da empresa e a denúncia do contrato de agência em consequência das suas características claramente leoninas. Os nossos amigos finlandeses aqui presentes sabem bem que recebem antecipadamente os fornecimentos que vêm fazendo há vários anos mas também não ignoram que não temos recebido dos clientes a maioria dos valores facturados.
Não é culpa deles, vai deixa de ser culpa nossa.
... ... ...
- (Quer dizer que este  o almoço de hoje vai ser o nosso último almoço no Aviz?)
- (Comigo, sim)

E foi.
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*A semelhança entre estas "Histórias" e a realidade contemporânea não é pura coincidência. Como neste caso, o Estado, isto é, o dinheiro dos contribuintes, continua a ser chapéu debaixo do qual se abriga gente pouco séria.