Saturday, December 31, 2005

A ESTRADA DA BEIRA E A BEIRA DA ESTRADA

As mais citadas causas do nosso atraso e perda de passada relativamente à Europa são a nossa gritante falta de capacidades que possam confrontar-se com a globalização, a relativamente baixa percentagem de jovens que completam o ensino secundário ou a elevada percentagem dos que o abandonam a meio, a nossa elevada ileteracia, a vergonha do nosso analfabetismo. Interrogamo-nos das razões que levam jovens portugueses a marearem-se com a matemática e a somar pelos dedos, universitários a frequentarem o curso errado, o ensino secundário a preparar profissionalmente para nada, muitos atribuem à extinção do ensino técnico grande parte da nossa geral inabilidade.

E muita gente reclama mais e melhor educação, mais e melhor formação profissional, menos cimento e mais conhecimento. Não há político candidato que não prometa mais planos para nos tirar de vez da nossa relapsa burrice. O choque tecnológico, que agora virou plano, estas coisas não vão lá com choques, é a nova panaceia para nos curar de vez ou, pelo menos, nos garantir algumas melhoras.

Que o nosso ensino secundário não prepara quanto deve nem como deve é conclusão que não merece contestação; porque é que isto acontece, já exige resposta mais bicuda. Que o Estado continue a pagar diplomas em cursos superiores sem saídas profissionais, quando o que nos falta são enfermeiros, por exemplo, é um mistério insondável.

O fim do ensino técnico, que muitos consideram como uma das medidas negativas tomadas no pós 25 de Abril e em cuja reposição vêm como a melhor receita para formar pessoas capazes de produzir mais e melhor, não podia deixar de ter chegado ao fim. Criado pelo antigo regime com o objectivo de formar escriturários e operários qualificados, respondeu relativamente bem num enquadramento tecnológico muito simplificado quando comparado com a diversidade e complexidade do aparelho produtivo actual. Alguns, que as capacidades intrínsecas e as circunstâncias permitiram singrar para além das barreiras que as instituições do regime de então lhes haviam levantado, viriam a subir a degraus elevados e num caso ou noutro mesmo a posições de topo. Mas tal facto teve pouco a ver com a formação de base, se é que teve alguma.

Hoje, um ensino técnico decalcado daquele figurino não faria qualquer sentido porque cada forma de produção requer conhecimentos específicos que se desactualizam à velocidade do avanço das mais diversas tecnologias, das mais variadas soluções informáticas, dos mais díspares meios técnicos de produção, dos mais particulares processos produtivos.

Seria impossível ao Estado, hoje, garantir aos jovens um ensino técnico que correspondesse às necessidades específicas das empresas. Nem estas, evidentemente, pedem isso, a menos que se situem num estádio de desenvolvimento tecnológico pouco avançado relativamente ao de há trinta anos atrás. Nos tempos que correm, os livros selados não são livros nem selados, não se escrituram com letra francesa e cursivo inglês, a contabilidade é descentralizada em cada secção de trabalho onde se realiza uma função directa ou indirectamente produtiva, a soldadura de metais tornou-se uma especialidade, as madeiras trabalham-se com máquinas cada vez mais sofisticadas e cada vez menos universais, as montagens eléctricas obedecem a esquemas complexos mas a formação de instaladores electricistas tem que realizar-se nas empresas (on job) e o mesmo se aplica à generalidade das funções de produção nas indústrias transformadoras.

Por outro lado, a transferência cada vez mais acentuada do emprego nos sectores primário e secundário para os serviços mais acentua a diversidade do trabalho e a impossibilidade de o Estado munir os jovens com formação específica e muito diferenciada. Ainda recentemente a revista Atlantis, da TAP, noticiava a existência de uma escola no Canadá, privada, a formar candidatos a São Nicolau, emprego sazonal que pode render 40 mil dólares pelo Natal e Ano Novo.

O que se deve exigir ao Estado é que a formação dos jovens, a nível do ensino secundário, para além das matérias tradicionalmente ligadas às humanidades e às ciências da Natureza e que constituem o suporte necessário a qualquer formação profissional específica ou ao prosseguimento para o patamar académico seguinte, imprima hábitos de trabalho e inclua o ensino dos conceitos técnicos e sociais com que todos irão deparar no dia a dia, independentemente das funções que vierem a desempenhar.

Os hábitos de trabalho são entre nós, teremos de convir, um problema complicado que se prende com a dificuldade em transmitir aos jovens uma atitude que muitos portugueses prezam pouco. Mas não é insolúvel e, querendo-se, podem fixar-se objectivos e medir a sua realização porque todo o trabalho é mensurável, e não só o dos alunos mas também o dos professores, o dos pais e o das comunidades em que as escolas se inserem. Definitivamente, os portugueses devem começar por compreender que vivem num mundo que é e será cada vez mais globalizado e que não podem querer melhorar o seu PIB per capita sem que cada capita produza mais PIB.

A adequação dos conhecimentos às exigências do dia a dia não parece que devesse colocar grandes dificuldades de para um consenso alargado: Se é consensual que aos jovens se ministrem no ensino secundário conhecimentos médios de português, inglês, matemática, química, física, biologia, mineralogia, lógica, informática e educação sexual, por exemplo, não deveria ignorar-se o ensino de conceitos com que eles vão ter certamente que lidar de perto, qualquer que seja a função que vierem a realizar, é importante para a sua integração na vida profissional: conceitos elementares de direito, de economia, mecânica, electricidade e electrónica, etc. A todos é importante saber, por exemplo, o que é um balanço de uma empresa, o que são acções e o que são obrigações, o que é uma sociedade por quotas e o que é uma sociedade anónima, o que é um monopólio, o que é que significa a concorrência nos mercados. Para além deste conjunto de conhecimentos indispensáveis para qualquer cidadão poder, a partir deles, adquirir todas as competências necessárias ao exercício de uma função na sociedade, a formação especializada não pode deixar de ser, patrocinada ou não pelo Estado, realizada on job. Havendo patrocínio do Estado, é fundamental que não se repita a experiência passada com a utilização desregrada dos fundos comunitários em acções de formação que, em muitos casos apenas camuflaram temporariamente o desemprego e aproveitaram a empregadores sem escrúpulos e não só.

Mas, acima de tudo, é inquestionável que o Estado deve privilegiar o esforço de garantir que todos os jovens frequentem o ensino secundário e nenhum o abandone. Também parece inquestionável que o Governo leve por diante a sua anunciada política de promoção de acções tendentes ao completamento do ensino secundário por parte daqueles que o abandonaram e ainda à equiparação dos conhecimentos adquiridos de forma auto didáctica ou outras não reconhecidas oficialmente, mediante provas.


Quanto ao ensino superior, o estado actual das coisas já deveria ter feito compreender ao Estado, aos professores, aos alunos, aos pais dos alunos, ao País inteiro, que não é admissível que os impostos de todos os contribuintes continuem a pagar a obtenção de cursos que não têm saídas profissionais e que, em muitos casos, não concedem conhecimentos que valham uma licenciatura e perseguem a mirífica e provinciana ambição de exibirem um penacho de falso doutor. Está fora de causa que a todos assiste o inegável direito de tirar um curso superior e, um dia, todos os cidadãos terão essa possibilidade e a esmagadora maioria aproveitá-la-á. O que está em causa é a quem cabe pagar o custo desse ensino. Se for o próprio, com possibilidades para o fazer, antes ou depois da obtenção do diploma, seguramente que a escolha do seu futuro profissional será mais ponderada e responsável evitando-se o malbaratar de meios e a redução de frustrações.


Chegado a este ponto, voltamos à questão inicial: Sendo a formação condição inicial para o suporte de uma sociedade evoluída e competitiva, porque dificilmente será evoluída se não for competitiva, as sociedades ao contrário de alguns indivíduos não costumam receber heranças embora algumas recebam finezas, é também condição suficiente?

Não é.

E não é porque todos sabemos que, neste momento, o desemprego aflige em elevado grau aqueles que obtiveram um curso dito superior. Se a formação académica fosse, só por si, motora do crescimento, seguramente que a nossa economia não estaria em divergência com a Europa e muitos desses jovens estariam a trabalhar.

Não há, ao contrário do que geralmente se quer fazer crer, falta de gente com preparação suficiente para trabalhar em novos projectos. Aliás, uma parte muito significativa daqueles que obtiveram graus académicos acima da licenciatura, procura no estrangeiro as oportunidades que não encontra no país onde nasceu e que até lhes pagou essa formação. É frequentemente referido na Imprensa a opinião, que se pretende abalizada, de que existe insuficiência de licenciados nas áreas científicas e tecnológicas. No entanto, mesmo licenciados nos diversos ramos de engenharia, incluindo a engenharia informática, por exemplo, não encontram facilmente colocação para o desempenho de funções para as quais têm habilitação académica e muitos acabam por enveredar por uma carreira profissional completamente diferente daquela para que se prepararam. A oferta de emprego continua a estar voltada para funções comerciais e administrativas, raramente tecnológicas e quase nenhumas científicas.

Argumenta-se, por outro lado, que não existem em número suficiente profissionais para trabalhos funcionalmente manuais: carpinteiros, canalizadores, electricistas, pintores da construção civil, mecânicos, técnicos de electrónica, etc. O que pode ser verdade mas não tem que ver com o déficit de formação a nível do ensino secundário, a menos que quem assim argumenta pretenda repor o sistema de castas que vigorou até ao 25 de Abril: o ensino liceal, para os mais favorecidos, como antecâmara para a Universidade e o ensino técnico destinado aos outros. A carência de profissionais para o desempenho daquelas tarefas não decorre da falta de formação suficiente já que qualquer jovem habilitado com o ensino secundário estará preparado para aprender facilmente, on job, o desempenho daquelas funções, o problema é que não quer porque supõe-se com direito a função socialmente mais prestigiada. Levada às últimas consequências esta atitude conduz-nos a um corolário obtuso: Seria prejudicial para a economia do País que os jovens completassem todos o ensino secundário porque no dia em que tal facto ocorresse deixaríamos de ter candidatos às profissões que requerem o insubstituível emprego das mãos, e que são quase todas.

O que falta, antes de mais, são projectos e empresários que os concretizem, porque sem novos projectos que produzam riqueza transaccionável não há crescimento económico sustentado nem criação de emprego.

Temos de cuidar da educação, claro que temos, mas temos sobretudo que nos interrogar porque razão não cresce o investimento reprodutivo em Portugal e acertar na resposta conveniente. Ao Estado compete criar as condições necessárias à incubação de novos projectos, nomeadamente tornando competitivas as condições envolventes que estão para lá da disponibilidade de recursos humanos e até mesmo financeiros.

Há falta de gente formada, ou susceptível de formação on job, que possa trabalhar de forma competitiva? Não há. Podia haver mais, temos quer ter mais, mas temos para já a suficiente e não é por essa razão que o investimento reprodutivo não nos procura. A Irlanda é citada vezes sem conta como um exemplo extraordinário de desenvolvimento bem sucedido suportado por uma política que privilegiou a formação e não valorizou as infra-estruturas. Não pode, no entanto, deixar de considerar-se o que ofereceu o Estado irlandês aos investidores para além de recursos humanos competentes.

Há falta de meios financeiros? Não há. Se houvesse falta de liquidez não se empenhavam tanto os bancos a convencer-nos a gastar naquilo que muitas vezes já não precisamos e de que a construção civil é o exemplo mais flagrante e pode ser o mais dramático: o nosso stock de casas excede largamente a procura não especulativa por mais optimistas que sejam as perspectivas que se queiram tomar.

Os mega projectos TGV e aeroporto da Ota, vão criar, segundo o Governo cem mil postos de trabalho e requerem meios financeiros fabulosos. Independentemente do juízo que possamos fazer acerca dos méritos e deméritos de tais projectos e do número de empregos anunciados, o que sabemos é que uma grande parte desses empregos serão do tipo dos que têm sido importados para as grandes obras públicas (ponte Vasco da Gama, Parque das Nações, estádios de futebol, etc.), correspondem ao modelo de crescimento que tanto tem sido criticado e só terão repercussões a longo prazo.

Até lá os projectos criadores de emprego e produtores de bens e serviços transaccionáveis, já a curto e médio prazos, têm de ser outros.

O caminho para o desenvolvimento passa pela identificação correcta dos obstáculos que em cada fase terão de ultrapassar-se, caso contrário a fuga em frente é, quanto muito, fuga para o lado.

Na Estrada da Beira, não vai para lá quem vai para a beira.

Wednesday, December 21, 2005

2 GALOS NA CAPOEIRA 2

“Dois galos na capoeira é asneira, a menos que um deles seja capado”
do Tratado Popular de Ciência Política


A eleição do Presidente da República em Portugal por sufrágio directo e universal confere a este Órgão de Soberania uma intensidade de representação da vontade popular, democraticamente expressa, bem acima daquela que sustenta os outros.

E, no entanto, dizem-nos e repetem-nos que, em Portugal, o Presidente da República tem poderes de intervenção muito limitados aparte o poder, eventualmente desproporcionado, de dissolver a Assembleia da República.

Todos os candidatos às próximas eleições concordam num ponto: O País está em crise. Todos se propõem tirar ou ajudar a tirar o País da crise, acrescentando a maior parte ser essa a razão fundamental da sua candidatura. Não houvesse crise e não teríamos candidatos...

A enigmática questão por onde se têm de desenvencilhar os candidatos durante a campanha eleitoral é, então esta: Com poderes tão limitados como podem os candidatos prometer o que não podem realizar ou como podem os candidatos candidatarem-se sem prometer já que não há candidatura sem promessa?

É a quadratura do círculo em todo o seu esplendor: Se promete, aqui d´el-rei, o Candidato vai subverter o sistema e não respeitar a Constituição! Se não promete, está visto, o Candidato não tem ideias para o País ou se tem não lhes pode dar corda!

Mas preso por prometer, preso por não prometer, um dos Candidatos um dia destes é Presidente e o mais certo é ter hipotecado a sua palavra a algumas promessas, explícitas ou implícitas, que fez aos eleitores. Se for homem de palavra o que é que ele pode fazer?

A democracia é para os guardiões do Templo um sistema político que se alimenta dos conflitos entre os desígnios contrários, ainda que para manter a conflituosidade se tenham de trocar os desígnios, qualquer sugestão de consenso tresanda-lhes a pensamento único.
Desconhecem que para lá da sabedoria popular a respeito da relapsa falta convivência dos galos se desenvolveram sofisticadas teorias dos jogos.

Por estas e por outras razões, os guardiões do Templo não toleram que seja democraticamente desejável a cooperação entre as diferentes forças políticas e os órgãos de soberania para a realização de estratégias consensuais e a remoção de bloqueios.

Porque os bloqueios são como as bruxas, podemos não acreditar que existam mas que os há, há. E até sabemos onde moram.






Wednesday, December 14, 2005

O PACTO



Os debates para as Presidenciais, realizados até agora, demonstraram que o limão não tem muito sumo para espremer. A não ser que haja algum deslize grave ou alguma falta à margem da lei, o jogo está jogado.

A diferença mais significativa entre as propostas dos candidatos com mais possibilidades de serem eleitos (CS,MS,MA) reside naquela que foi formulada por CS e que ele designou por “cooperação estratégica” com os governos, sejam eles quais forem. Esta designação tem sido a peça de caça preferida por MA, vai ser, provavelmente, acusada no último round por MS, fez saltar a tampa ao geralmente destampado Vasco Pulido Valente. Mas a maior parte dos analistas políticos ou não valorizou a proposta e continuou a dizer que o candidato ainda não disse nada, ou deixou escapar um sorriso condescendente.

A questão é esta: Se dois (ou mais) indivíduos dispuserem da mesma informação e igual capacidade de a interpretarem e concordarem entre si atingir os mesmos objectivos é indiscutível que concertarão o melhor caminho a seguir?

É, responderá quem não quiser arranjar, facilmente, argumentos para defender o contrário.

Nada é igual e muito menos a informação e as capacidades, os objectivos não são pontos geometricamente definíveis, quanto aos caminhos nem sempre a distância mais curta é em linha recta. A democracia, etimologicamente o governo do povo, não é uma méritocracia governada por um iluminado eleito. Em democracia os caminhos traçam-se por tentativas e aproximações sucessivas.

A democracia representativa assenta no princípio um-homem-um voto mas pode no voto germinar-se o seu descrédito. A democracia não nasceu sozinha mas de parto gemelado com a demagogia que nasceu instantes depois dela, tinha a democracia dado os berros primordiais. A sobrevivência da primeira é o resultado de uma luta interminável com a segunda. Com a evolução tecnológica dos meios de comunicação, as possibilidades de insinuação da demagogia têm-se fortalecido na disputa acérrima com as capacidades de afirmação da democracia.

E nisto reside o busílis da questão: na lota democrática dos votos os lances tendem a ser licitados com promessas frequentemente incumpridas, muitas vezes as mesmas, variando de sentido consoante os licitantes estejam no poder ou na oposição. A perversão é tanto mais acentuada quanto menor for a maturidade democrática dos votantes, isto é a sua capacidade para distinguir por onde se insinuam os cânticos da demagogia. Não se cumprindo as promessas, porque elas impõem mudanças e as mudanças incomodam, os caminhos deixam de ser tentados em frente para se calcarem em círculo.

Como pode, então, romper-se o círculo e arriscar avançar?

Há sempre um momento em que a demagogia se não soçobra enviesa a passada: quando os cofres se esgotam.

Pelo menos num ponto estão de acordo os cinco candidatos a Presidente da República: Portugal está em crise, económica, financeira, social, cada um cita a lista que lhe parece mas não se detectam divergências.

Se assim é, se a crise existe e não é um fantasma, a definição de meia dúzia de caminhos consensuais para a sua ultrapassagem pode ser complicada mas tem que ser tentada e não se perde a democracia por isso.

Posto entre a espada do deficit e a parede da União Europeia, o actual Governo tem demonstrado grande determinação para romper algumas teias tecidas ao longo de muitos anos e que impedem o caminho do progresso mas também tem abusado, em algumas situações críticas para o funcionamento salutar da democracia, da maioria de votos que recebeu. Pode o Governo continuar a assumir-se auto-suficiente na sua maioria absoluta mas a erosão é incontornável e os riscos de patinar quando os rastos se alisarem terão custos insuportáveis para o País.

E quando os custos são insuportáveis os órgãos entram em falência.
Um País falido é aquele que deixou de ter capacidade para solver os seus compromissos.
Infelizmente não estamos longe disso.

Sunday, December 11, 2005

A TRAGÉDIA DE SE CHAMAR DOUTOR

Há dias, toca o telemóvel e…

- Senhor Engenheiro?
-?
- Fala Fulano, queria …
- Vou enviar hoje mesmo.
- Senhor Engenheiro, já agora, podia dar-me uma informação: tenho uns eucaliptos que plantei há um ano. Acha que está na altura de os adubar?
- Lamento Senhor Fulano, mas não é a minha especialidade.
- Não é?!! Mas então que especialidade é a do senhor engenheiro?
- Lamento desiludi-lo de novo, mas não sou engenheiro…
- Não é engenheiro? Mas então o que é que o senhor engenheiro é?

Não sei porquê, mas volta e meia tratam-me por engenheiro. Acontece o mesmo, aliás, com muito boa gente. É pecha nacional.

Um dia estava A. Celeste com o Ministro V. O. e o Ministro desata a tratar A. Celeste por engenheiro, senhor engenheiro para cá, senhor engenheiro para lá, tão insistentemente que A. Celeste se sentiu na obrigação de interromper o Ministro e esclarecer que, lamentava, mas não era engenheiro.
- Não é engenheiro?!!, interrogou o Ministro com o mesmo espanto com que interrogaria um faltoso. Mas então o que é?
- Senhor Ministro não sou engenheiro mas o que eu gostava mesmo era ser Conde, terá respondido A. Celeste e assim começado um das suas histórias intermináveis.

Em situações idênticas vem-me sempre à lembrança a saída do Celeste.
Menos que Conde, hoje em dia, são trocos.


Vem isto a despropósito de dois comentários, subtis, publicados no Público:

… Alegre fez o incrível erro de esquecer que lhe cabia então falar para todos e não para os entrevistadores. E diga-se que é ridículo que aceite ser tratado por “dr. Manuel Alegre” (AMS) – 6/12/2005

…Já agora, falando em jornalistas, alguém consegue explicar por que razão Cavaco é “professor” e Louçã é “doutor”? Já agora também, desde quando é que Manuel Alegre é “doutor”? (SJA) - 9/12/2005

A prevalência da forma sobre a substância é desde há séculos uma tara nossa. A ascensão da burguesia incorporou os penachos da fidalguia arruinada do regime antigo. Os títulos valiam por si ainda que substancialmente muitas vezes não valessem nada. Em terra de analfabetos quem era doutor era rei.

A interiorização desta atitude foi tão longe que, em Portugal hoje, enrolado num mundo altamente competitivo porque cada vez, irreversivelmente, mais globalizado, ainda se continua, geralmente, a supor que o mais importante não é saber fazer mas ter canudo e chamar-se “doutor”.

Nestas condições, não admira que estando o País recheado de “doutores” muita gente dessa não saiba que fazer ou acha que o que há para fazer não é para ela fazer, tal como os fidalgotes antigos a quem o título ridículo impedia a produção de qualquer trabalho manual e a incompetência a realização de qualquer outro.

O Manuel Alegre não é doutor, parece poder depreender-se das notas biográficas que constam do seu site na Internet.

BIOGRAFIA DE MANUEL ALEGRE Manuel Alegre de Melo Duarte nasceu a 12 de Maio de 1936 em Águeda. Estudou Direito na Universidade de Coimbra, onde foi um activo dirigente estudantil. Apoiou a candidatura do General Humberto Delgado. Foi fundador do CITAC – Centro de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra, membro do TEUC – Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra, campeão nacional de natação e atleta internacional da Associação Académica de Coimbra. Dirigiu o jornal A Briosa, foi redactor da revista Vértice e colaborador de Via Latina.

Mas o que é um doutor? Um licenciado?

É óbvio que não.

Doutor é um título atribuível apenas aqueles que prestam provas para obtenção desse grau académico e são aprovados. Todos os outros serão senhores, se forem, porque os verdadeiros senhores também vão escasseando.

Mesmo a designação de doutor atribuível aos médicos é, na tradição generalizada em muitos países, correlata com a profissão de médico e não como título.


Noventa e muitos por cento dos “doutores” deste País não o são de facto.

Se houvesse vergonha e decência os títulos deveriam desaparecer. Construir-se-ia, então, uma sociedade assente em alicerces sólidos, de competência, e não balofos de presunção.

Quanto a Manuel Alegre o “doutor” fica-lhe francamente mal.

Tuesday, December 06, 2005

O DISCURSO DO FEITOR

É provável que Dom José ainda seja vivo mas, seguramente, mais arruinado e louco. Da última vez que o vi continuava a bradar, quando lhe davam corda, rouco, por detrás das barbas ruças que só viam água das chuvas, de olho esgazeado, o indicador direito a varrer nevrótico como um radar pifado o horizonte de um canto ao outro, é tudo meu, é tudo meu!

Dom José era o mais novo de quatro irmãos; a irmã mais velha casara com um oficial do exército e andava por onde o Ministério da Guerra mandava andar, o irmão agrónomo abominava a Quinta e tornou-se funcionário do Ministério da Terra para não lidar com trabalhos agrícolas, preferia as questões agronómicas; o irmão veterinário, preferiu juntar-se ao irmão agrónomo no mesmo Ministério e dedicar-se às questões veterinárias por considerar que a sua realização pessoal passava pelas manjedouras públicas e não pelos estábulos da Quinta. De modo que Dom José, por não ter formação específica, quando foi surpreendido pela morte do pai, viu-se obrigado a assumir as responsabilidades que os outros enjeitavam.

Como o pai morreu sem avisar, Dom José agarrou-se à primeira tábua que lhe passou à frente a boiar no seu mar de angústias e promoveu Tadeu a feitor, por ser o capataz que ele melhor conhecia, eram quase da mesma idade, talvez Tadeu fosse um pouco mais velho, e continuou a borga inerente a um herdeiro que quando veio ao mundo no mundo estava tudo feito, ou quase, talvez faltassem alguns pormenores mas desses incumbia-se o pai com tal dedicação e exclusividade que não lhe sobrava tempo para se porem um ao outro a vista em cima.

Dom José teve uma caterva de filhos, tantos que quando lhe perguntavam quantos, respondia orgulhoso, já lhe perdi a conta, e continuava a aumentar as parcelas da soma. Todos rapazes e todos filhos de mães ilegítimas. Aparentemente, estes atributos parecem desafiar as leis da demografia e a lógica mais elementar, por isso merecem explicação. Dom José só aceitava rapazes porque as filhas davam mais preocupações, dizia ele, e preocupações era o que Dom José mais abominava. Também por essa razão, Dom José nunca casou.

Os filhos perfilhava-os a todas as mães solteiras que o procuravam quando os pais biológicos enjeitavam a ninhada. Ele, compenetrado à sua maneira das responsabilidades inerentes à paternidade, ia sozinho ao Registo Civil, dava o nome aos rapazes de quem passava a ser legitimamente pai ficando as mães legalmente incógnitas.

Ganhavam todos: ele aumentava a prole mas não a sustentava, elas penduravam os rebentos na esperança de um quinhão razoável nas partilhas a haver. Dos Ministérios da Guerra e da Terra não saltavam dúvidas nem oposição, até porque Dom José comprometia, com a sua excepcional vocação de paternidade, um quarto, não mais que um quarto, da herdade.

Tadeu tinha um filho, Romeu. Quando Romeu nasceu, Dom José achou por bem seguir o exemplo do feitor. Mas, sendo solteiro e sem vocação para fecundar, decidiu adoptar. A Lei, naquele tempo, considerava ilegítimos todos os não nascidos de matrimónio civil ou religioso e aos ilegítimos só era atribuída paternidade ou maternidade dos progenitores que se apresentassem no acto do registo. Os abandonados de pai e mãe eram filhos ilegítimos de pais incógnitos, salvo se o caso fosse do conhecimento de Dom José, sempre disponível para atribuir paternidade, mais não estava ao seu alcance. O instinto de paternidade de Dom José circunscrevia-se, porém, a um sentimento diáfano de posse, em muitos casos mal conhecia os perfilhados, aliás tantos, mas deleitava-se a dizer, o meu Abreu, o meu Alceu, o meu Alfeu, o meu Amadeu, o meu Bartolomeu, o meu Dirceu, o meu Eliseu, o meu Fileu, o meu Galileu, o seu Ga-li-leu era o seu preferido a pronunciar sílaba a sílaba, ainda que o visse apenas pela Páscoa quando o rapaz se apresentava para receber o folar e não fosse sequer capaz de o distinguir dos outros. A distância que o separava dos adoptados era idêntica à que mantinha relativamente às propriedades que compunham a Herdade, conhecia-lhe os nomes mas desconhecia-lhe os limites.

Sempre que Dom José passava na rua não havia rapazote que não o saudasse, como está meu pai, ao que ele, muito compenetrado pai, respondia sempre com um como estás meu filho. Os perfilhados mantinham, deste modo, acesa a sua legitimidade à herança, não fosse alguém esquecer-se ou negar-se, os outros saudavam-no por chalaça, e, deste modo, Dom José era pai de tudo o que nas redondezas usava calças.

Tadeu era um bom feitor. Dedicado, esforçado, leal, sempre que os anos eram fartos e sobrava rendimento, Tadeu investia em melhorias na irrigação, na compra de mais alfaias, na recuperação das casas e dos telheiros; nos anos em que Deus nosso senhor não ajudava, ajudava Tadeu. Nunca se soube muito bem como, embora não faltassem as explicações em surdina, mas Tadeu conseguia, sempre que necessário, suprir a tesouraria de Dom José com fundos seus, remunerados, naturalmente, com taxas correntes para empréstimos de ocasião.

Dom José sabia que a sorte não cabe a todos e tornara-se o mais devoto dos homens por se sentir, de entre os eleitos, porventura um dos mais bafejados. Tinha os filhos que queria sem fazer por isso, todos masculinos porque era assim que ele queria, não os sustentava porque não se comprometera, a herdade crescia porque Deus assim queria ou o Tadeu abonava, circunstância que, entretanto, passou a ser constância. Dos Ministérios, o consentimento era calado.

Os anos passaram, como em todas as histórias o tempo é sempre personagem discreta mas decisiva, e quando Dom José tinha atingido a plenitude da sua bem-aventurança, disse Tadeu a Romeu, espraiando a vista sobre a herdade soberba, o indicador a agarrar todo o horizonte visível: É tudo teu, Romeu!

O resto da história é conhecido desde o princípio.


ESTADO VERSUS ESTADO


O Estado é mau gestor, é uma afirmação quase consensual.

Há quem discorde, alguns dizem sim mas, os irredutíveis crentes na mão invisível, ainda os há, não concedem excepções nem meias tintas, os outros contestam com um discurso mas geralmente confirmam com outro. Isto é, há quem não concorde mas confirme, raros contestam sem concessões.

A história do feitor, verídica na parte substancial, ocorre-me sempre que se avaliam os dotes do Estado em matéria de capacidade de gestão.

O Estado, o que é? Dom José?

O DONO DOS TEMAS


A entrevista de ontem, 2005-12-05, ao “Público” é uma antologia condensada do pensamento soarista.



Público – Contudo as políticas sociais são definidas pelo Governo, não pelo Presidente.
M. Soares – Isso é verdade, mas a conflitualidade (supõe-se que MS queria dizer conflituosidade) social pode ser evitada por alguém que saiba evitá-la. Cavaco Silva até está a fazer um esforço para falar em temas que são meus, mas é porque lhe disseram que era necessário apanhar um bocado do eleitorado da esquerda, já que a maioria sociológica é de esquerda.


Público – Já houve privatizações a mais?
M. Soares – Tive o gosto de ver que Cavaco Silva concordou comigo, mas eu disse primeiro.

Numa perspectiva muito benevolente dir-se-ia que quem muito dura chega à segunda infância.

Mas não é o caso.

Uma das características de Mário Soares, para o bem e para o mal, sempre foi o de sentir-se e querer-se o “dono da bola”. E agarra-se a ela como se a ninguém mais assista o direito de jogá-la.

Monday, December 05, 2005

TEMA ANTIGO



“Quem não é por nós é contra nós”, pensam os fanáticos.


A tolerância é uma das vigas que assentam sobre os pilares da democracia. A democracia não subsiste sem a prevalência da tolerância, isto é, o respeito pelas opiniões contrárias e a discussão serena das diferenças. Frequentemente, contudo, o que reina é o insulto e o golpe baixo.

A história está repleta de exemplos de intolerância religiosa, política e, mais recentemente, desportiva.

A quem pertence a um clube não importa se o “seu clube” joga bem ou mal, importa sim que o “seu clube” ganhe. Todos os outros jogam mal e, mesmo se jogarem assim-assim porque nunca jogarão como deve ser, devem perder. Aquele que gosta do desporto pelo espectáculo em si e não pelas camisolas é uma aberração.

A intolerância religiosa foi, e continua a ser, a causa de enormes atrocidades.

A intolerância política não concebe ninguém fora dos clubes, sem palas nem cabrestos. Um homem livre será sempre um suspeito.